Justiça dos homens

Nelson Rodrigues e a Execução Criminal

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22 de julho de 2013, 7h45

Este artigo não é um artigo. Está mais para desabafo, conto de um causo, relato. Talvez uma crônica. Mas, mesmo assim, tenta mostrar um pouco da prática forense de um jovem advogado que ainda comete o erro, dia após dia, de confiar na justiça dos homens.

Advogo graciosamente para o Sr. Antônio já há alguns anos. Seu caso chegou ao escritório em 2001, trazido pelas mãos da Alexandra Szafir, conhecida por seu brilhantismo e por sua dedicação aos menos favorecidos, mesmo hoje, presa em seu próprio corpo em razão da Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA) que a atingiu feito um raio. Em sua defesa, sempre capitaneada pelo queridíssimo Alberto Toron (ex-chefe, ex-sócio, e eterno amigo e parceiro), nunca o tratamos diferente. Apesar de ser um custo para o escritório — o Sr. Antônio nunca teve condições sequer de pagar os xerox de seu processo —, sempre o tratamos (e o seu caso) como aqueles que nos pagavam honorários.

Do céu (ou do inferno, vai saber), certamente foi Nelson Rodrigues quem escreveu sua história:

Aos 18 anos, saiu de sua cidade natal e veio para São Paulo tentar a vida. Deixou para trás a D. Severina e o seu enteado, com pequeno quadro de retardo mental. Afinal, o dinheiro não daria para todos. Prometeu trazê-la, assim que arrumasse um dinheiro. Aos 20, já com um dinheirinho juntado, os trouxe.

O seu suado dinheiro de todo o mês nunca lhe permitiu luxos: nunca foi ao cinema, ao teatro ou a um museu. Da casa ao trabalho e do trabalho para casa, todos os dias. Aos finais de semana, se contenta com a televisão e com a companhia da família e dos amigos.

Sua maior extravagância? Contou-nos certa vez que, no aniversário do enteado, levara ele e Dona Severina para jantar no McDonalds, com direito a sorvete de sobremesa.

Passados 30 anos, cinquentenário, trabalhava como jardineiro de um cemitério na Zona Leste de São Paulo. Os familiares que enterravam seus entes queridos lhe pagavam uma quantia todo mês para que ele, jardineiro, cuidasse das flores que adornavam os túmulos. E, nessas, conheceu Glantina, 20 anos mais velha que ele, e que acabara de enterrar um tio e contratara os seus serviços.

Passado um mês da contratação, e sem que tivesse recebido sua justa remuneração, bateu às portas de Glantina para cobrá-la. Ela o deixou entrar e, a ele, mostrou um seio. Não houve conversa, flerte ou galanteio. Bastou um seio e o Sr. Antônio, sem dar qualquer explicação para a família e à D. Severina, largou tudo e foi morar na parte de cima da casa de Glantina que, apesar de não ter sequer o segundo grau completo, mantinha no térreo uma clínica ortopédica.

D. Severina nos conta que, passados alguns meses, encontrou o Sr. Antônio e lhe disse poucas e boas. Além da traição, o Sr. Antônio levara com ele o Fusca 72 que era do casal, e presenteara Glantina. Ele sequer respondeu. Sabia que estava errado, mas estava rendido ao sexo da outra.

Glantina, além da clínica de ortopedia, também mantinha em sua casa o Geraldo, rapaz de vinte e poucos anos que, assim como o Sr. Antônio, largara tudo, também rendido aos prazeres que Glantina, apesar de septuagenária, proporcionava. Geraldo trabalhava à noite e o Sr. Antônio de dia, de modo que quase nunca se encontravam.

Mas Geraldo perdeu o emprego. Passou a viver, noite e dia, com Glantina. Sabe-se lá a razão (talvez por sua juventude?), Geraldo virou o marido oficial e, Antônio, o “outro”. E o casal passou a maltratá-lo. Noite e dia.

Glantina vendeu o Fusca presenteado por Antônio e comprou um Passat. Proibiu-o de utilizá-lo (Geraldo podia) e, então, para economizar com o dinheiro da condução, Antônio ia e voltava a pé do trabalho. Uma caminhada de duas horas. Começou a chegar mais tarde na casa de Glantina e, quando chegava, seu prato de comida estava há horas no chão, já frio, em frente ao seu quarto.

Seu acesso à casa, ficou proibido. Era, nas palavras de Geraldo, sujo demais para colocar os pés no mesmo ambiente que ficava a cozinha. Além disso, também segundo Geraldo, sequer era coveiro de cemitério. Era mais baixo ainda. Jardineiro de cemitério, que mexe com a morte, que mexe com a terra, que pega na enxada e tem as mãos tão calejadas. A humilhação era diária. Glantina não participava, mas não impedia. E o Sr. Antônio sabia que, se dali fosse embora, não encontraria D. Severina lhe esperando de braços abertos.

Em 8 de maio de 2001, Geraldo saiu para encontrar com amigos no boteco e o Sr. Antônio teve com Glantina uma noite que há tempos não conhecia. Ainda entorpecidos pelo gozo, Glantina lhe contou que ouvira da boca de Geraldo planos de dar um jeito de sumir com o Sr. Antônio, tirar ele da vida do casal oficial.

O Sr. Antônio não hesitou: no dia seguinte, 9 de maio, comprou gasolina em um posto, cortou um pedaço do varal da casa e, “de tocaia” (as palavras são dele, e constam do processo), ficou esperando à espreita o momento em que Geraldo fosse até o seu quarto. Pegou-o de costas com o varal, e apertou sua garganta por 15 minutos. Suas mãos sangravam (e as marcas deixadas serviram como prova de autoria), mas o Sr. Antônio não parava de apertar.

O corpo desfalecido de Geraldo ele embrulhou num cobertor, levou até a rua, molhou com a gasolina que comprara e ateou fogo. Não para esconder o que fizera, mas para matá-lo uma segunda vez.

No bolso da calça de Geraldo, a polícia encontrou um cartão da clínica ortopédica de Glantina, e ali foi investigar, passados 5 dias do crime. O Sr. Antônio prontamente se entregou e confessou com detalhes o acontecido, desacompanhado de advogado. Foi preso em flagrante que, posteriormente, foi relaxado.

D. Severina lhe perdoou e o acolheu quando deixou o presídio. E passado um ano, conseguiu outro emprego, agora como jardineiro de um motel, na Jacu-Pêssego. Mas não havia motivo para se envergonhar. Em sua simplicidade poética, certo dia explicou que deixara de trabalhar com a morte para trabalhar com a vida. E riu gostosamente, como riria Fabiano (se lhe fosse permitido o riso), personagem imortalizado por Graciliano Ramos em Vidas Secas.

10 anos se passaram com as idas e vindas de seu processo e, finalmente, o Sr. Antônio foi submetido a júri popular por homicídio duplamente qualificado (a surpresa e a asfixia).

Após as oitivas das testemunhas e do interrogatório, o Promotor Roberto Bacal, homem de singular sensibilidade, concordou que, passados tantos anos, a cadeia não era lugar para um sexagenário com a história do Sr. Antônio. Muito embora fosse um caso clássico de homicídio qualificado-privilegiado (as qualificadoras eram bastante objetivas), a pena mínima seria de 8 anos de reclusão, em regime inicial fechado.

A defesa, nessa fase, foi exercida por mim e pelo irmão de tribuna, Thiago Anastácio. Concordamos em não sustentar a tese de inexigibilidade de conduta diversa (afinal, se não matasse Geraldo, o Sr. Antônio tinha sérias razões para acreditar que seria morto por ele), e o Dr. Bacal concordou em não sustentar as qualificadoras. Antônio terminou condenado à pena de 6 anos de reclusão, em regime inicial semiaberto, por homicídio simples.

O juiz do caso, Dr. Marcelo Oliveira — por quem passei a nutrir grande estima e respeito, ainda que tenha abandonado o júri para militar na justiça cível, privando tantos réus, vítimas, advogados e promotores de contarem com sua simpatia, simplicidade e humanidade —, permitiu, mesmo com o trânsito em julgado da condenação, que o Sr. Antônio aguardasse em liberdade até que a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) disponibilizasse uma vaga no regime adequado.

Após quase um ano, a vaga surgiu, o Sr. Antônio foi intimado via oficial de justiça e, espontaneamente, compareceu ao CDP I de Belém. A maior preocupação de Antônio, no entanto, era manter o seu emprego. Os seus empregadores, donos do motel em que por tantos anos trabalhava, conheciam ele de perto e atuaram, ativamente, em prol do Sr. Antônio. Abonaram suas faltas, encaminharam cartas demonstrando que confiavam nele, e travaram, junto conosco, árdua batalha para que o Sr. Antônio pudesse continuar trabalhando, durante o dia, na empresa que sempre trabalhara. À noite, se recolhia ao presídio.

Muito embora não tenha sido nada fácil, a partir daqui eu já contava com a ajuda do também jovem, porém brilhante, advogado Daniel Gerstler que, como eu, parece teimar em confiar na Justiça. Nessa época, A SAP explicava que o motel não era conveniado, que não haveria fiscalização e que, portanto, a única saída era a demissão de Antônio. Tinham na manga o artigo 28, §2º, da Lei de Execuções Penais, que é expresso ao reconhecer que “o trabalho do preso não está sujeito ao regime da Consolidação das Leis do Trabalho”.

Mesmo assim, a sorte de Antônio não haveria de mudar. Seu processo passara pelas mãos de tantas pessoas sensíveis… A Dra. Maria Isabel Rebello Pinho Dias concordou com a tese da defesa de que referido artigo possuía intuito libertário, de incentivar aos empregadores a contratação de presos pela facilitação na dispensa das obrigações trabalhistas decorrentes do contrato de trabalho. E que essa facilitação não seria necessária no caso concreto, pois Antônio não seria contratado, mas já estaria contratado. E seus empregadores o queriam contratado, e não precisavam de incentivo algum: precisavam mesmo somente do próprio Antônio. E estavam lutando incessantemente por isso…

E assim o Sr. Antônio cumpriu um sexto de sua pena. Trabalhando durante o dia como jardineiro no motel, e se recolhendo no CDP I de Belém durante a noite. Requeremos, então, a sua progressão. Muito embora o Ministério Público tenha se manifestado contrariamente ao pedido, entendendo ser necessária a realização de exame criminológico em Antônio, o juiz Adjair de Andrade Cintra concedeu o benefício sem qualquer exame.

Entendeu, também acertadamente, que como Antônio há anos trabalhava, não tendo deixado de trabalhar no período que passou preso, tendo sempre contado com o apoio de seus empregadores, era desnecessário o exame criminológico.

Antônio passou o natal ao lado de sua família, de D. Severina, seu enteado e o novo neto, que trouxe um pouco de alegria à família, principalmente após se submeter a 10 cirurgias para amenizar os efeitos da hidrocefalia. Doença presumida por nós, porque tudo que o Sr. Antônio e a D. Severina souberam explicar era que o bebê nascera com “um cabeção”, e que precisaria de muitas cirurgias.

O representante do Ministério Público, Dr. Pedro Baracat Guimarães Pereira, no entanto, pareceu não ler os autos. Recorreu, juntando julgados que demonstravam que não se poderia conceder o benefício sem exame criminológico em casos em que os presos tivessem registrado tentativas de fuga do presídio. Não era o caso de Antônio, mas os julgados devem ter vindo copiados de outra manifestação qualquer, escrita abstratamente. Disse, também, que o benefício seria um convite para a fuga de Antônio, esquecendo-se que, se quisesse, há muito já teria fugido (quando esperou seu julgamento por 10 anos, quando se apresentou espontaneamente para cumprir sua pena, todos os dias quando ia e vinha do presídio…).

Terminou sustentando que ele não poderia progredir de regime, já que teria um longo lapso de pena a cumprir (5 anos). O promotor, provavelmente assoberbado de trabalho, sequer deve ter corrigido a cota ministerial feita por sua estagiária, baseando-se em centenas de modelos de petições e teses. O caso concreto? Ninguém tem tempo de ler o caso concreto.

O recurso subiu ao Tribunal. No último dia 2 de julho, estava marcado o seu julgamento. Amparado pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, me dirigi ao Tribunal de Justiça para realizar a sustentação oral, contrária ao recurso do Ministério Público.

O Sr. Antônio e a D. Severina fizeram questão de ir até o Tribunal, assistir o julgamento. Vestiram suas melhores roupas, acenderam suas velas, e me encontraram no Palácio da Justiça. Esperançosos e curiosos, pois jamais haviam tido qualquer contato com o suntuoso Tribunal de Justiça paulista.

O Relator do Agravo em Execução e Presidente da 4ª Câmara, Desembargador Luís Soares de Mello, só faltou me escorraçar – a simpatia, cordialidade e humildade do Sr. Antônio e da D. Severina não é algo que se ensina, e não são todos que a possuem. Disse o relator/presidente que conhecia a jurisprudência do STJ, mas não era assim que ele, e sua turma, julgavam. Em seu feudo, eu não poderia sustentar. Pedi, então, a preferência no julgamento.

Ao iniciar a leitura de seu voto, eu, o Sr. Antônio e a D. Severina nos colocamos de pé. Como se para mostrar que, atrás daquele monte de papel, havia uma família. Havia um homem tendo seu destino julgado.

Ninguém nos olhou.

O que ouvimos, em seguida, foi a triste realidade dos julgamentos criminais: a leitura de uma ementa. O acórdão ainda não está publicado, mas me lembro das palavras “crime grave”, “longa pena a cumprir”, “determinação de realização de exame criminológico” e “decisão cassada”. O caso concreto? De novo, ninguém teria tempo para ele. Em 15 segundos, ou menos, o Agravo estava julgado. O 2º e 3º desembargadores apenas “acompanharam” a ementa tão fria e abstrata.

Deixamos a sala. Eu, com um nó na garganta. Como poderiam chamar aquilo de Justiça? O Sr. Antônio e a D. Severina, no entanto, sorriam. Não tinham entendido nada. Enquanto eu explicava para eles o ocorrido, explicando que ainda iríamos brigar contra aquela decisão, ouvíamos dezenas de funcionários públicos, em seu horário de expediente, prestando uma homenagem ao Presidente do TJSP. O telão com slides era acompanhado da música tema do “Fantasma da Ópera”.

O Sr. Antônio e a D. Severina me deram um apertado abraço, dizendo que ainda estavam confiantes. E me agradeceram por tudo que fiz (e fomos tantos) e ainda faria (e seremos tantos).

E ali fomos. Eu para um lado, Sr. Antônio e D. Severina para o outro.

*Artigo alterado às 11h34 do dia 29/7 para correção de informações

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