Judiciário paulista

Atraso em compra pela web gera mais dano que imóvel

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19 de julho de 2013, 7h34

Para se identificar distorções é preciso comparar bananas com bananas, reza o bom senso. Bem, numa manhã um pouco mais livre de compromissos, resolvi pesquisar bananas com bananas, ainda que de tipos diferentes. As bananas, no caso, eram casos de atraso na entrega de bens levados ao judiciário paulista. Comparei sentenças de processos buscando indenizações por atraso na entrega de bens imóveis com sentenças de processos buscando indenizações por atraso na entrega de bens adquiridos pela internet.

Minha intenção era confirmar se minha percepção estava correta. Tinha a impressão geral de que o judiciário em São Paulo é mais propenso a reconhecer um dano moral indenizável no segundo caso do que no primeiro e a pesquisa confirmou minha percepção. 

Dos 30 casos de processos por atraso na entrega de imóveis consultados, geralmente contra construtoras ou incorporadoras, cerca de 30%, apenas, obtiveram êxito em alcançar alguma indenização por dano moral, em geral em valores bem modestos (entre R$ 5 mil e R$ 10 mil). 

Consumidores que compraram bens móveis pela internet e não os receberam, contudo, têm uma chance maior de obter uma reparação pelo dano moral proveniente do atraso. Quase 50% dos 15 casos consultados tiveram reconhecido o direito a reparação por danos morais. Os valores também são maiores, se considerarmos nossas “bananas” proporcionalmente. É comum encontrar no caso de atraso de entrega de produtos pela Internet indenizações por danos morais no valor de duas, três, até dez vezes o valor do bem que se tencionava adquirir. 

O instituto do dano moral, reconhecido na Constituição Federal de 1988, tem como escopo tornar plenamente efetivo o instituto maior da responsabilidade civil. Com sua consagração, não apenas danos patrimoniais, mas também um tipo específico de dano subjetivo, o dano que provoca uma dor psicológica, um estado de aflição, angústia, frustração ou desânimo, o dano que se verifica ao infringir-se algum dos chamados “direito da personalidade”, também passa a ser objeto de reparação. 

É evidente que essa classe de dano não se repara “na mesma moeda”, como é possível fazer com o dano patrimonial. Não se trata de um “olho por olho”, eis que a cegueira do outro em nada aproveitaria à visão do lesado. Trata-se ao mesmo tempo de dar ao lesado algum consolo ao passo que se cuida de educar o ofensor, de modo que a diminuição de seu patrimônio importe na tomada de outro tipo de atitude, evitando-se que torne a infligir a mesma dor em terceiros. 

O Superior Tribunal de Justiça tem reconhecido que algumas situações conduzem à necessidade de haver reparação por danos morais in re ipsa, ou seja, sem que a parte lesada precise comprovar a sua angústia ou dor moral. Entre essas situações encontram-se casos como a indevida inserção do nome do cidadão nos cadastros de maus pagadores e atrasos de voos. 

A hipótese do descumprimento do prazo para a entrega de um bem não está nesse rol de situações que geram a necessidade de indenizar sem prova do dano, no que acredito que o Judiciário anda bem. Nesses casos, é importante averiguar se o atraso foi suficiente a produzir uma dor anímica ou psicológica mais intensa do que o normal, uma dor para além do mero aborrecimento decorrente da vida em sociedade. Um investidor que possui centenas de imóveis decerto não sofrerá o atraso na mesma proporção que uma família ansiosa por mudar-se para sua casa. 

Não deixa de ser curioso, portanto, que para o nosso judiciário alguém com o crédito restrito por um espaço de tempo faz jus à reparação da dor moral que o fato certamente lhe teria proporcionado, ainda que ele não a possa provar, mas que não veja no atraso de um ano ou dois na entrega de um imóvel algo suficiente a abalar os direitos da personalidade do comprador. Também é curioso ver que o atraso para a recepção de um produto adquirido pela internet seja, aos olhos do Judiciário paulista, algo em geral mais gravoso e digno de reparação do que o atraso do imóvel que uma família adquire no mais das vezes com grande sacrifício pessoal. 

O comprador de um imóvel frustrado pelo atraso geralmente encontra-se descapitalizado pelo alto investimento feito na aquisição do bem e é obrigado, frequentemente, a postergar seus planos de vida, rearranjar itinerários, projetos de educação dos filhos, sujeitar-se ao pagamento de aluguéis por longos períodos, submeter-se a contratos de aluguel desvantajosos, contar com a ajuda de familiares e tantas outras situações para as quais a expressão “mero aborrecimento” certamente não se aplicam.

A doutrina, ao menos, reconhece o elevado caráter social do contrato de empreitada para fins residenciais. Nas palavras do MM. Desembargador Ênio Zuliani: “.. A legítima aspiração de se tornar dono da casa própria, passou de sonho para se transformar no desejo primário, como se esse patrimônio material representasse um acréscimo nos dons da personalidade do indivíduo, por atrair as vantagens da segurança familiar, da independência e da intimidade. A inviolabilidade da casa, como previsto no art. 5º, XI, da Constituição Federal – CF, prova o valor moral da propriedade.”[1] 

Essa condição sagrada da casa própria foi sintetizada, com a habilidade invulgar dos (bons) literatos, por Moacyr Scliar, que principia seu conto Uma casa com esta frase: “Um homem ainda não tinha comprado sua casa quando sofreu um ataque de angina de peito. …” A brevidade da vida salta aos olhos do personagem, que passa a buscar com todas as forças essa suprema realização em vida. 

Desse notabilíssimo caráter social da propriedade privada, protegida contra as intempéries e humores da sociedade e do Estado no artigo 5º, XXII, da Constituição Federal, assoma uma profunda responsabilidade para o incorporador. Paulo Carneiro Maia[2] a coloca nestes termos: “Se o incorporador é idôneo, tudo correrá bem ou mais ou menos bem. Se, ao contrário, falta-lhe seriedade, — a desonestidade e a ganância não têm áreas delimitadas — os riscos serão fatais e imprevisíveis. Tanto mais fatais e de difícil demonstração quando é certo que os compradores, pela natural índole de o indivíduo honrado confiar na probidade do semelhante, firmam de boa-fé e sem maiores exames esses pré-contratos”. 

O mestre Silvio Rodrigues[3], por sua vez, assinala: “A responsabilidade do incorporador é implícita, desde o momento em que anuncia publicamente a venda dos apartamentos. É que o incorporador corre voluntariamente o risco da empresa, empreendimento este no qual almeja lucro. Sua responsabilidade decorre da qualidade de incorporador, da deliberação implícita de arcar com o risco”. 

Ainda que deva haver uma análise da situação caso a caso para situações de atraso na entrega de bens imóveis, o bom senso aponta para que esta análise devesse acontecer para certificar-se de que haja na hipótese algo a justificar afastar o dano moral, e não algo extraordinário a justificar seu reconhecimento. O dano moral em situações que tais deveria ser a regra, não a exceção. 

Da comparação de nossas bananas resta essa conclusão um tanto melancólica: ainda temos um caminho extenso pela frente até darmos ao instituto do dano moral a envergadura que a apurada técnica e os nobres valores que o inspiraram exigiriam. Enquanto isso não acontecer, frustrar expectativas legítimas, valer-se de artifícios maliciosos, errar no cálculo empresarial ou vender sonhos e ilusões serão práticas corriqueiras nos negócios deste país.


[1] ZULIANI, Enio Santarelli, Responsabilidade Civil nos contratos de construção, empreitadas e incorporações, inResponsabilidade Civil e sua repercussão nos tribunais, coord. Regina Beatriz Tavares da Silva, Saraiva, São Paulo:2009

[2] Citado por Zuliani, op. Citada.

[3] idem

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