Direito Comparado

A influência do Código Civil alemão de 1900 (parte 2)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

3 de julho de 2013, 8h01

Na última coluna, iniciou-se uma série sobre a influência do Código Civil alemão (Bürgerliches Gesetzbuch — BGB) sobre o Direito Privado brasileiro e sobre a qualificação histórica desse código como a última floração do liberalismo do século XIX. É bastante curioso que, em relação ao Código Civil de 1916, se formou idêntico consenso entre os juristas nacionais.

A recepção do Direito Civil germânico no Brasil, como já assinalado, foi anterior ao BGB e remonta ao período colonial, ainda que de modo indireto, pelos costumes visigóticos. Esse fenômeno, que se verifica em diversas áreas do Direito e em face de outros países, não é desacompanhado de problemas, como se descreveu na coluna Problemas na importação de conceitos jurídicos. Independentemente das incoerências e dos equívocos, esse processo existe e merece atenção.

Note-se que, em Portugal, a “germanização” do Direito Civil também ocorreu e de modo muito mais intenso que no Brasil, no final do século XIX e início do século XX. Em larga medida, essa viragem histórica deveu-se aos ofícios de um professor da Universidade Coimbra, Guilherme Alves Moreira (1861-1922), catedrático de Direito Civil, líder republicano e ministro de Estado da Justiça (1915). Ele introduziu em Portugal os ensinamentos do movimento pandectista e o conceitualismo de Savigny. Seu magnum opus denominou-se Instituições de Direito Civil Português, de 1907. A estrutura do livro é tipicamente alemã: dividida em parte geral e parte especial; fracionada em seções (§§); com as referências bibliográficas no início de cada capítulo; precedida da exposição das categorias gerais do Direito, açambarcando conceitos de Direito Público e de Direito Privado e com forte caráter “sistemático”. A definição de “código” é bem expressiva dessa filiação epistemológica das Instituições de Guilherme Moreira:

“Os códigos são compilações sistemáticas de todas as normas jurídicas respeitantes a um determinado ramo de direito feitas pelo poder legislativo ou pelo executivo no exercício da função legislativa. Os códigos, que constituem atualmente a fonte mais importante do direito em quase todos os países civilizados, são aprovados por meio de leis ou decretos, de que ficam fazendo parte integrante”.[1]

A obra de Guilherme Alves Moreira e, mais que isso, sua docência universitária foram determinantes para a ruptura do Direito Civil português com a influência então preeminente do Code Napoleon de 1804. O Código do Visconde de Seabra[2], em vigor de 1867 até 1865, era notoriamente obsequioso ao modelo francês. Guilherme Alves Moreira, ao publicar as Instituições, de modo deliberado, estruturou a matéria em conformidade com o modelo pandectista (sujeito, bens e relações jurídicas) e procedeu à elegante crítica da legislação em vigor. A modificação operada, graças a Alves Moreira, foi de tal profundidade que as novas gerações de civilistas portugueses seguiram seus passos e abandonaram tanto o método quanto os padrões da Escola Francesa. O culminar desse processo deu-se em 1966, com a edição do novo Código Civil português, em vigor desde 1967, conhecido como Código Vaz Serra[3] ou, como preferem outros, Código Antunes Varela[4], em homenagem a seus principais elaboradores.

A vigente codificação lusitana possui uma parte geral e livros sobre o Direito das Obrigações, os Direitos Reais, o Direito da Família e o Direito das Sucessões. Adotou-se o chamado “sistema dos cinco livros”, que, à semelhança do BGB, se pretende educativo e didático.[5]

Os grandes privatistas portugueses contemporâneos permanecem fiéis ao projeto de Guilherme Alves Moreira, o que indiretamente afeta o Direito brasileiro. José de Oliveira Ascensão, catedrático da Universidade de Lisboa, mas que lecionou em instituições brasileiras nos anos 1970 e 1980, é um dos grandes responsáveis por essa recepção indireta do Direito alemão no país.[6] Nas obras de António Pinto Monteiro[7], da Universidade de Coimbra, e de António Menezes Cordeiro[8], de Lisboa, há ampla divulgação de constructos teóricos alemães e, graças a sua leitura no país, terminam por dilatar a presença do Direito alemão nos estudos civilísticos nacionais.

No caso brasileiro, como já salientado, a recepção do Direito Civil alemão ocorreu nas duas codificações, diferentemente do ocorrido em Portugal. No século XX, apesar da influência germânica na codificação de 1916 e no então Projeto Reale (da década de 1970, que se converteria no atual Código), a força da Escola Francesa manteve-se muito nítida, de modo especial na Universidade de São Paulo. Nomes como Jorge Americano, Silvio Rodrigues, Washington de Barros Monteiro, Carlos Alberto Bittar e Antonio Junqueira de Azevedo são exemplos dessa ligação com o modelo francês, embora não exclusivamente, pois em suas obras também se percebe a presença de traços da dogmática italiana e alemã. Caio Mário da Silva Pereira e Álvaro Villaça Azevedo também seguiram uma linha autônoma, mais influenciada pelo Direito Romano e pelos Direitos francês e italiano. José Carlos Moreira Alves, o último professor a ostentar formalmente o título de catedrático de Direito Civil da USP[9], combinava o Direito alemão e o Direito Romano.

O Direito Civil alemão, por sua vez, sempre se mostrou prevalente nas faculdades de Direito do norte e nordeste do país, ao exemplo de autores como Clóvis Beviláqua, Eduardo Espínola, José Martins Rodrigues[10], Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda[11], Orlando Gomes[12] e Torquato Castro.

No Rio de Janeiro, foram seguidores da Escola alemã nomes como Francisco Clementino San Tiago Dantas e José Carlos Matos Peixoto[13], respectivamente catedráticos de Direito Civil e Direito Romano da Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil[14]. O Curso de Direito Civil do desembargador Miguel Maria de Serpa Lopes, do antigo Tribunal de Justiça do Distrito Federal (Rio de Janeiro), é também de ser citado como seguidor do Direito Privado germânico. Em Minas Gerais, não se pode esquecer de João Baptista Villela, titular de Direito Civil da UFMG.

Clovis Verissimo do Couto e Silva, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, foi magistral ao combinar (e equilibrar) as lições francesas e alemãs.[15] Em seu clássico A obrigação como processo, Couto e Silva apresentou aos leitores brasileiros o que havia de melhor na literatura jurídica alemã em seu tempo.[16] Nesse livro, é bem perceptível a utilização dos contributos de Josef Esser e de Karl Larenz. Sua repercussão nos meios jurídicos nacionais foi enormemente amplificada graças aos ofícios de seu discípulo Ruy Rosado de Aguiar Júnior, seja nos acórdãos por ele prolatados no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, seja quando ele se tornou ministro do Superior Tribunal de Justiça. Em muito se deve a seus julgados a popularização de conceitos relacionados à boa-fé objetiva[17], à responsabilidade pré-contratual[18] e à pós-contratual[19], ao venire contra factum proprium[20], ao adimplemento substancial[21] e às relações contratuais de fato.[22]

Evidentemente que a exposição desses nomes é incompleta e tem o objetivo de ser uma simples exemplificação do quanto foi marcante o diálogo jurídico Brasil-Alemanha no século XX. E, por uma questão de elegância, deixa-se de citar doutrinadores mais recentes, salvo os que já referidos e que assim o foram em razão das conexões de suas obras com o período pré-Código Civil de 2002.

Nas últimas três décadas, essa ligação tornou-se ainda mais sensível, o que se nota pelo número cada vez maior de civilistas com formação germanófila. Nesse aspecto, o Direito Constitucional, o Direito Penal, o Direito Processual e a Sociologia do Direito revelam-se como províncias jurídicas tão ou mais marcadas pela produção intelectual alemã do que o próprio Direito Civil. E essa não é uma novidade: Francisco Campos, Nelson Hungria, Heleno Fragoso e Haroldo Valadão, em cada uma de suas áreas de estudo, bem representam esse vínculo intelectual com a Alemanha.

Essa continuidade histórica das relações teuto-brasileiras foi interrompida em alguns momentos, especialmente durante as guerras mundiais e suas décadas imediatamente posteriores. Com o tráfego internacional obstruído, em face das restrições ditadas pela ruptura de relações diplomáticas, ou com a destruição das universidades, tanto física quanto humana, o acesso às fontes bibliográficas e a presença nessas instituições tornaram-se impossíveis por longos períodos. É até surpreendente que se haja conservado tal nível de interação acadêmica até aos dias atuais.

Especificamente no que se refere ao BGB, esse código apresenta-se como centro orgânico da recepção dos institutos jurídico-privatísticos alemães. A título de exemplo, nos 20 periódicos editados pela Revista dos Tribunais, compreensivos do período de 1976 a 2012, há nada menos que 1.008 artigos (expressão genérica que compreende também pareceres, notas, resenhas e ensaios) que citam dispositivos do BGB, com maior ou menor relevo nas conclusões apresentadas. Ao passo que há 673 artigos com menções ao Code Civil (França) e 464 ao Codice Civile (Itália).[23]

Na próxima coluna, retomar-se-á o problema do caráter liberal do Código Civil alemão, como anunciado na semana anterior, e a importância desse debate para a qualificação de nosso Código Civil.


[1] MOREIRA, Guilherme Alves. Instituições do direito civil português: Parte Geral. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1907. v. 1. p.18-19.
[2] António Luís de Seabra (1798-1895), 1º Visconde de Seabra, reitor da Universidade de Coimbra e ministro de Estado da Justiça (1852).
[3] Adriano Pais da Silva Vaz Serra (1903-1989) foi professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e ministro de Estado da Justiça (1940).
[4] João de Matos Antunes Varela (1919-2005) foi professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e ministro de Estado da Justiça. Com a queda do presidente do Conselho de Ministros de Portugal, o professor Marcelo Caetano, Antunes Varela exilou-se no Brasil, aonde chegou a ocupar cátedra na Universidade Federal da Bahia. Seu livro “Das obrigações em geral”, editado pela Almedina, em Coimbra, com dois volumes, é muito conhecido no Brasil.
[5] EICHLER, Hermann. Codificação do Direito Civil e teoria dos sistemas de Direito. Revista de Direito Civil v.2, p.36, out.-dez./1982.
[6] Sugere-se a leitura de um recente texto de José de Oliveira Ascensão, intitulado “Panorama e perspectivas do Direito Civil na União Europeia”, publicado nos anais da V Jornada de Direito Civil, organizados por Ruy Rosado de Aguiar Jr., editado em Brasília pelo CJF, p.21-37. Disponível em: http://www.jf.jus.br/cjf/CEJ-Coedi/jornadas-cej/enunciados-aprovados-da-i-iii-iv-e-v-jornada-de-direito-civil/jornadas-cej/v-jornada-direito-civil/VJornadadireitocivil2012.pdf. Acesso aos 2-7-2013.
[7] Pinto Monteiro é autor da tese Cláusula penal e indemnização, editada pela Almedina, de Coimbra, 1999, que se constitui na obra de referência em língua portuguesa sobre o tema.
[8] Sua obra mais difundida no Brasil é a tese Da boa-fé no Direito Civil, de 1984, que se encontra na quarta reimpressão, de 2011, editada pela Almedina, de Coimbra.
[9] José Carlos Moreira Alves aposentou-se no cargo de “professor catedrático”, embora, com a Reforma Universitária dos anos 1970, esse cargo haja mudado de nome para “professor titular”.
[10] José Martins Rodrigus (1901-1976) foi deputado federal e catedrático de Direito Civil da Faculdade de Direito do Ceará (atualmente unidade da Universidade Federal do Ceará), autor da primeira obra monográfica no Brasil sobre os efeitos jurídicos do silêncio. Sua obra, cujo título é Elementos geradores do vínculo obrigacional e efeitos jurídicos do silêncio, foi reeditada em 2012, por Malheiros Editores, em São Paulo.
[11] Sobre a presença de Pontes de Miranda na Alemanha, sugere-se a leitura da coluna Ernst Rabel é pai do moderno Direito Comparado alemão (http://www.conjur.com.br/2012-nov-07/ernst-rabel-pai-moderno-direito-comparado-alemanha).
[12] Com acesso às traduções em espanhol.
[13] Sobre esse jurista, que não é muito conhecido, mas que exerceu enorme influência na formação de grandes nomes do Direito no século XX, como José Carlos Moreira Alves e Diogo de Figueiredo Moreira Neto, sugere-se a leitura de sua pequena biografia na Wikipedia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Carlos_de_Matos_Peixoto.
[14] Atual Universidade Federal do Rio de Janeiro.
[15] A influência francesa no pensamento de Couto e Silva é também muito importante, a título de exemplo, cite-se: COUTO E SILVA, Clóvis V. do. Les principes fondamentaux de la responsabilité civile en droit brésilien et comparé (datilografado). Porto Alegre, 1988.
[16] A obrigação como processo corresponde à tese de cátedra apresentada por Clovis Verissimo do Couto e Silva à Universidade do Rio Grande do Sul e foi publicado, em primeira edição, em Porto Alegre, pela editora Emma, no ano de 1964. Sua segunda edição – a mais difundida no País – é de 1976, publicada em São Paulo pelo editor J. Bushatsky. Em 2006, a FGV, com edição própria, no Rio de Janeiro, lançou uma nova impressão desse livro.
[17] STJ. AgRg no Ag 47.901/SP, Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma, julgado em 12/09/1994, DJ 31/10/1994, p. 29505)
[18] TJRS. AC n. 591028295, Relator: Ruy Rosado de Aguiar Júnior, RJTJRS,v-154/378, data de julgamento: 6/6/1991
[19] TJRS. AC n. 588042580, Relator: Ruy Rosado de Aguiar Júnior, RJTJRS,v-133/401, data de julgamento: 16/8/1988.
[20] STJ. REsp 95.539/SP, Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma, julgado em 03/09/1996, DJ 14/10/1996, p. 39015; TJRS. AC n. 589073956, Relator Ruy Rosado de Aguiar Júnior, RJTJRS,v-145/320, data de julgamento: 19/12/1989.
[21] STJ. REsp 76.362/MT, Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma, julgado em 11/12/1995, DJ 01/04/1996, p. 9917.
[22] STJ. AgRg no Ag 47.901/SP, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma, julgado em 12/09/1994, DJ 31/10/1994, p. 29505.
[23] Nesse levantamento foram considerados também artigos estrangeiros publicados nesses periódicos, o que pode comprometer a absoluta fidelidade desses números. No entanto, a quantidade desses artigos é pouco significativa e, mesmo com margem de erro, não há comprometimento da elevadíssima diferença entre as remissões ou referências ao Código Civil alemão e os Códigos de França e Itália.

Autores

  • Brave

    é advogado da União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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