Atomização das ações

Poder Judiciário deve dar mais valor a tutelas coletivas

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16 de julho de 2013, 7h21

Já não choca a mais ninguém os números de novas ações judiciais apresentadas anualmente no Brasil, números que sempre se colocam na casa dos milhões.

Se, de um lado, essa procura indica um aspecto interessante de acesso à Justiça, por outro revela um complexo quadro de baixa faticidade das normas jurídicas, a reclamar, com intensidade, a heterônoma atuação do Estado-juiz, muitas vezes para fazer valer direitos fundamentais, prestações do Estado, pagamento de alimentos, acesso ao sistema de saúde, a direitos sociais ou, sem esgotar as hipóteses, para, simplesmente, assegurar o adimplemento de uma obrigação, cuja dimensão moral não foi bastante para que o seu indivíduo obrigado a cumprisse em tempo e modo.

E, mesmo quando as decisões judiciais apontam o caminho a ser observado pela sociedade, nem sempre observamos o chamado efeito natural dessas decisões, que deveria ajustar condutas.

Nesse contexto, chama a atenção também que muitos atores sociais se valem do Poder Judiciário, e, portanto, do acesso à Justiça, para a concretização de estratégias econômicas, seja no financiamento de dívidas (nomeadamente utilizada pelo Estado, inclusive com o auxilio do sistema de precatórios judiciais), seja na potencialização de ganhos, a partir da evidência de que nem todos acorrem na defesa de seus direitos.

Efeito mais grave dessa pletora de novos processos, e fator complementar à adoção dessas estratégias, é a baixa efetividade dos processos judiciais. Mesmo na Justiça do Trabalho, cujo cumprimento da sentença observa um notável protagonismo, mercê do impulso oficial, a taxa de congestionamento na execução, de acordo com levantamento do Conselho Nacional de Justiça, gravita em torno de 70%.

Esse diagnóstico, como se pode perceber, é multifatorial, e, certamente, merecerá outras avaliações e abordagens.

Desejo, por ora, realçar um aspecto do problema do congestionamento dos órgãos do Poder Judiciário que, a meu ver, tem merecido pouco aprofundamento: a baixa utilização das tutelas coletivas.

Com efeito, ainda que tenha crescido de importância dogmática e jurisprudencial, o uso das ações coletivas, na empírica percepção que tenho, pelo menos no âmbito da Justiça do Trabalho, mostra-se em descompasso com o seu potencial.

Observo que há uma clara opção dos atores da Justiça pela atomização dos processos, é dizer, pela busca individual de soluções judiciais, mesmo quando presentes interesses trans ou metaindividuais.

São bem reduzidas as ações coletivas ajuizadas por sindicatos e associações de classe. Mesmo as ações ajuizadas pelo Ministério Público do Trabalho, que formam a maior parte desse contingente visível, não chegam a ocupar a centralidade da atuação forense, contrastando com a frequente percepção de que muitos dos feitos individualmente aforados revelam lesões transindividuais.

Partindo do pressuposto que estamos em acordo com essa premissa, quais seriam as causas desse fenômeno? Por que não se mostra, como opção prioritária para os atores sociais, o manejo de ações coletivas (ação civil pública, ação civil coletiva etc.)?

Em que pese a Constituição Federal, a Lei da Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor estabelecerem as linhas do chamado microssistema processual coletivo, há bloqueios que, pelo menos processo do trabalho, mostram-se bem evidentes.

Um deles diz respeito à forma como o procedimento ordinário recebe essas ações. Não há qualquer priorização para o seu rito, como também não existem juízos especializados para o enfrentamento de tutelas coletivas.

De outra banda, na perspectiva da produtividade judicial, as ações coletivas não recebem, em regra, um “peso” diferenciado na distribuição. Isso quer dizer que uma ação dessa dimensão tem o mesmo peso que uma ação individual de rito sumaríssimo, observando uma distribuição igualitária entre os juízos.

Esses dois fatores, combinados, acabam por reduzir a priorização que a demanda carece de ter para ser mais eficiente que uma pletora de ações individuais. Sem o tratamento diferenciado e mais adequado, as ações coletivas acabam tramitando de forma mais lenta, o que resulta na sua ineficácia como meio de enfrentamento molecular das lesões transindividuais.

É preciso, aqui, um diálogo institucional para que se criem as condições necessárias à tramitação preferencial de ações coletivas que têm, como um dos seus méritos, evitar o ajuizamento de dezenas, centenas, milhares de ações individuais.

Não é possível continuar a assistir o desânimo que muitos magistrados apresentam quando, por sorteio, recebem uma ação coletiva. O potencial desta é enorme na perspectiva da racionalização do sistema, da redução das ações individuais e no ajuste da conduta dos agentes passivos das obrigações inadimplidas.

Uma democracia de alta intensidade também se mede pela capacidade da norma jurídica se internalizar no seio das relações sociais, moldando condutas e formando o tecido ético-jurídico da sociedade, sem a constante presença da tutela judicial, que se conserva como uma reserva, muita mais de cariz simbólico do que se cotidiana presença nos negócios e na vida social.

Outro aspecto que fomenta essa “crise” das tutelas coletivas diz respeito ao regime de honorários advocatícios na Justiça do Trabalho.

Do ponto de vista da advocacia sindical, por exemplo, parece-me mais previsível a obtenção de honorários sindicais em ações individuais do que em ações coletivas. Note-se que, até bem pouco tempo, a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho sequer admitia o pagamento de honorários em ações nas quais o sindicato funcionava como substituto processual.

Assim, no debate sobre os honorários advocatícios, e aqui não somente na Justiça do Trabalho, a questão das despesas sucumbenciais em ações coletivas precisa ser enfrentada. Não é possível que um aspecto desse jaez se constitua um bloqueio ao uso das ações coletivas.

O problema das execuções das ações coletivas também tem sido levantado como um empecilho para o alargamento do seu uso. Muitas tutelas são obtidas, mas a dimensão do seu cumprimento acaba por frustrar o jurisdicionado.

Nesse caso, no entanto, a questão me parece mais de logística, do que propriamente de opção pela tutela coletiva. É fundamental que o Poder Judiciário também estabeleça um planejamento estratégico para a sua atuação nessas fases críticas e essenciais das tutelas coletivas.

Por fim, há componentes políticos que, mercê do conjunto de bloqueios que procurei articular, acabam por dificultar os avanços. Veja o que sucedeu com o debate em torno da modernização da Lei da Ação Civil Pública. O projeto, ainda no seu início de debate no Congresso Nacional, foi arquivado, com claras demonstrações de resistência por representantes ligados aos agentes econômicos. Jogo legítimo numa democracia. Cabe à sociedade, no entanto, envolver-se mais nesses debates, a fim de apontar aos congressistas e ao país qual Judiciário se deseja.

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