Contas à Vista

Passe livre no transporte depende de reserva do possível

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Melo Guimarães Pinheiro & Scaff – Advogados; é professor da Universidade de São Paulo e doutor em Direito pela mesma Universidade.

16 de julho de 2013, 8h01

Spacca
É financeiramente possível haver transporte público de massa a custo zero para os usuários? Sim, claro. E serviço público de saúde, de qualidade, em que nada seja cobrado dos usuários? Também, sim, é possível. E educação, saneamento e segurança públicas? E áreas públicas de lazer? Certamente que é possível.

Se todas as despesas que acima foram listadas podem ser realizadas de forma gratuita e com qualidade, porque não são feitas dessa forma? Trata-se de uma decisão relacionada às escolhas e prioridades políticas, que em outra coluna denominei de escolhas trágicas. Afinal, quem gerencia nossa sociedade realiza este tipo de escolhas todos os dias, sendo que uma das principais ocorre quando o orçamento é votado. Aqui se encontra a reserva do possível: no limite do PIB, do orçamento, de nossas receitas e despesas públicas e também privadas, as quais somos obrigados a analisar e realizar todos os dias.

O setor público do Brasil atual funciona assim: a cada dois anos votamos para escolher nossos representantes. Nos anos de Copa do Mundo escolhemos a maior parte de nossos representantes: chefes do Poder Executivo federal e estadual (presidente da República e governador) e membros do Poder Legislativo federal e estadual (senadores e deputados federais e estaduais). E nos anos de Olimpíadas escolhemos o chefe do Poder Executivo municipal (prefeito) e membros do Poder Legislativo municipal (vereadores). Eles votam as leis que regem o país e nós devemos obediências a estas leis. Esquematicamente funciona desse jeito. Se não gostamos da forma como eles estão atuando, basta que não votemos neles nas eleições seguintes e eles estarão fora do sistema — simples assim.

Ocorre que o sistema sucintamente descrito acima passa por dois diferentes mecanismos processuais que se encontram com sua “legitimidade” entupida, isto é, se fossem artérias, o processo estaria quase em colapso. Falo do processo eleitoral e do processo legislativo. É através do processo eleitoral que todos nós, eleitores, escolhemos quem nos representará na elaboração das leis, na gestão de nosso patrimônio coletivo e na fiscalização de sua execução. É um processo que regula a transformação da vontade da maioria na eleição de alguns. É quando a maioria da população elege quem vai representa-la pelo próximo mandato (quatro anos em geral, sendo oito para os senadores). A legitimidade desse processo, que é o sangue que alimenta o sistema político, corre em artérias entupidas, como se pode ver nas manifestações de rua nos meses de junho e julho de 2013. Quantos dos manifestantes lembram em quem votou para os cargos legislativos em 2010 e 2012?

O outro processo que está com a legitimidade em cheque é o processo legislativo, pois, como estampam as manchetes dos meios de comunicação, muitas vezes são aprovadas normas por votos de liderança e sem qualquer debate entre os parlamentares — que foram eleitos justamente para isso, podendo, inclusive, legislar sobre matéria financeira, como já expôs José Maurício Conti em outra coluna neste espaço.

É no conjunto desses dois processos, eleitoral e legislativo, que se insere a votação, aprovação, execução e fiscalização da lei orçamentária, instrumento importantíssimo para a gestão pública, pois através dela é que se distribuem os recursos arrecadados. Funciona quase à semelhança de um funil, pois se arrecada de todos, através do sistema tributário, mas distribui-se focadamente, em benefício de poucos, que podem ser os mais pobres, ou os estudantes, ou os idosos. Quanto mais democrático for esse processo orçamentário, e mais igualitária for a sociedade, o funil se transformará em um regador de jardim, fazendo com que muitos mais recebam as atenções dos gastos governamentais. Aliás, utilizei esta metáfora de praças e jardins há cerca de um ano, em 5 de junho de 2012, na primeira coluna deste espaço.

Assim, é plenamente possível existir transporte público, saúde, educação e saneamento gratuito e de qualidade para todos. Só que isso exigiria uma escolha trágica: ou aumenta-se a carga tributária, hoje de aproximadamente 35% do PIB; ou se reduz despesas públicas em outras prioridades que não são as acima destacadas; ou ainda, aumenta-se a dívida pública.

Dá para obter mais recursos sem aumentar a tributação? Só fazendo dívidas. Ocorre que dívida pública é imposto antecipado — ou seja, parcela do que será cobrado de impostos futuros fica desde já comprometida com o pagamento das parcelas do empréstimo realizado. A atual geração recebe os valores e a futura paga. Foi o que aconteceu no Brasil durante “a década perdida” dos anos 90, quando tivemos que pagar a dívida externa contraída durante os anos 70 e 80. O dinheiro foi emprestado e muitas vezes mal usado (ferrovia do aço, rodovia perimetral norte e outras megalomanias da época), as parcelas venceram, os juros subiram e a dívida explodiu. A arrecadação tributária foi usada para pagamento das parcelas que foram renegociadas várias vezes, pois não se conseguia pagar nem os juros. Deu no que deu. Vale a pena repetir o modelo? Certamente que não, ainda mais para gastos correntes, como os que se pretendem venham a custear os serviços públicos acima mencionados, a fim de que nada seja cobrado dos usuários.

Existem teóricos que defendem um movimento inverso, no sentido de que todos os serviços públicos sejam pagos diretamente por quem os utiliza. Assim, quando uma pessoa vai a um hospital público, faz uma consulta e um exame de laboratório, este custo lhe deverá ser integralmente imputado e cobrado. O custeio não será universal, “de todos”, mas cobrado integralmente do usuário. Não vale nem a pena gastar tinta analisando a aplicação dessa ideia no Brasil.

Não dá para aumentar a tributação (pode-se tentar distribuir melhor sua incidência, mas não aumentá-la). Fazer dívidas para gastos correntes é tolice. Qual a solução?

A meu ver esta passa pela adoção de um conjunto de ações, relacionadas sem ordem de prioridade — ou seja, é para serem adotadas no melhor estilo daquele disco da banda de rock nacional Titãs, Tudo ao Mesmo Tempo Agora: a) eleger melhores representantes, b) desentupir as artérias do processo eleitoral e legislativo, c) dar mais atenção à elaboração, execução e fiscalização das leis orçamentárias, d) ver com mais atenção às prioridades de governo (usar melhor o dinheiro público arrecadado), e) fiscalizar melhor os gastos públicos, f) realizar gastos com maior legitimidade, economicidade e eficiência, e g) combater a corrupção política e econômica e o desperdício nos gastos públicos.

Se tudo isso começar a ser feito a partir das próximas eleições que ocorrerão logo após a Copa do Mundo de Futebol, em 20 anos (ou cinco legislaturas) teremos um Brasil campeão, não apenas nos gramados, mas também na isonomia social. Afinal, a reserva do possível possui também um componente intergeracional.

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