Movimento de junho

Plebiscito deve convocar para instituinte

Autor

  • Willis Santiago Guerra Filho

    é professor titular do Centro de Ciências jurídicas e Políticas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro professor permanente dos cursos de Mestrado e Doutorado em Direito da PUC-SP doutor em Direito pela Universidade de Bielefeld Alemanha doutor pós-doutor em filosofia pelo IFCS-UFRJ.

8 de julho de 2013, 7h00

Agora que o governo desistiu da constituinte para a reforma política é que é a hora de reconhecermos que este poder constituinte esteve e continua nas ruas, pronto para voltar a elas. Vamos então exigir que se inscreva em nossa Constituição essa revolução, quando em nada poderá vir a ser diminuído ou suprimido do que há de fundamental nela, que são os direitos e garantias assim qualificados: insisto no que já há um ano e meio propus: uma instituinte já! Não há o que temermos, veneráveis juristas de escol e cidadãos em geral envolvidos por este já histórico movimento de junho: a classe política se encontra colocada em posição defensiva perante a multidão, o verdadeiro poder constituinte, nos termos de Toni Negri, que não deixam de ser também aqueles da obra clássica sobre o assunto, do Abade Sieyès, fazendo o registro do ocorrido na Revolução-padrão, a francesa, de 1789, quando o Terceiro Estado se auto-proclamou Assembléia Nacional Constituinte, diante da tentativa dos outros dois componentes dos Estados Gerais esvaziá-los. Chega de PECs. O poder reformador não é constituinte, mas sim desconstituinte, assim como têm sido os Poderes da República, em maior ou menor intensidade, como demonstra exemplarmente o conluio de todos os três na permissividade quanto ao (ab)uso de Medidas Provisórias, a tornar o nosso Estado menos de Direito e mais de emergência, logo, de exceção. O plebiscito para a reforma política que o momento exige é para saber se convocamos eleições para uma constituinte, sim, pois do que se trata, evidentemente, não é de transformar em constituinte, mais uma vez, como em 1988, uma representação congressual que não foi eleita para tal finalidade, especialmente em sendo a finalidade, agora, fazer uma reformar dela própria, que as multidões rejeitaram maciçamente, deslegitimando-as.

Como demonstra Negri, em seu O Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade, o constitucionalismo e a ciência jurídica de um modo geral, despolitizada e despolitizante como costuma ser, tradicionalmente empreende um esforço para reduzir a força democrática do que de fato legitima o direito a fórmulas jurídicas mistificadores, que terminam por assombrar até mesmo os que são os principais responsáveis por sua existência imaginária. A jurisdicização do poder constituinte, com seu caráter democrático e revolucionário, equivale a uma domesticação dessa que do ponto de vista da ordem estabelecida é uma “anomalia selvagem”. Ocorre que esta ordem estabelecida entre nós se mostrou altamente insatisfatória, por indesejável e odiosa, e as forças do amor e do desejo insaciados, insaciáveis, não mais aceitam esta transcendência pressuposta como num passe de mágica, de que tudo vai bem e cada vez melhor: não é o progresso dentro desta ordem que queremos para o nosso país. Chega de pensar as categorias do direito, como essa de poder constituinte, como sendo conceitos teológicos secularizados, tal como denunciaram Carl Schmitt, em sua Teologia Política, e antes dele Hans Kelsen, em sua obra menos conhecida, Deus e o Estado, bem como Walter Benjamin, no ensaio Crítica do Poder/Violência (Gewalt), e ainda, bem mais recentemente, Michel Foucault, nas palestras dadas no Rio de janeiro em 1973, A Verdade e as Formas Jurídicas. Não é mais possível continuarmos crendo que haja um poder, dito constituinte, que surge do nada, ex nihilo, produzindo e organizando todo o direito na forma do Estado: ex nihilo nihil, do nada não vem nada. E aí passamos a temer, como se fosse o próprio diabo, um qualquer poder que almeje ocupar este lugar do criador, para assim tornar-se o destruidor. Ocorre que o poder verdadeiramente constituinte se situa em um plano de imanência, permanente, e como vimos em nossas ruas no corrente mês de junho, ele é uma virtualidade capaz de se manifestar multitudinariamente, tal como uma singularidade, múltipla, miraculosa (diria Hannah Arendt), cairológica, um evento (nos termos de Alain Badiou, Heidegger ou Deleuze) que irrompe na ordem cronológica, rompendo-a, quebrando, inclusive, literalmente, relógios nas ruas… Não há o que temer, por ser uma operação arriscada, a da convocação por plebiscito de uma constituinte com caráter instituinte, visando reformas institucionais, pois o risco é o horizonte político do direito e o modo atual de como convive-se em sociedade. E como instituição maior a ser criada já proponho um Tribunal Constitucional Popular, posicionado fora e acima do judiciário, como também dos demais poderes da República, um poder que, ao contrário do nosso STF, seja verdadeiramente republicano, por serem seus membros eleitos, com mandato e sujeitos à responsabilização política. Mais importante, porém, é que a ele se integre a invenção jacobina do júri constitucional, pois caberá a ele a decisão, tal como no tribunal do júri — como em crimes que atentam contra vida, do que pode resultar o cerceamento da liberdade, portanto, envolvendo dois dos mais fundamentais direitos humanos —, de questões envolvendo direta ou indiretamente (quando tratar de conflitos entre os poderes estatais) direitos fundamentais, só que de toda a população, e ela há de se fazer representar também em tais discussões. Seria uma instância revisora de qualquer violação de direitos humanos ou fundamentais, por ação ou omissão de quem quer que esteja em posição de praticar tais violações

Entre nós, a indicação dos que vêm a compor tais órgãos, de importância decisiva para a realização dos direitos, abstratamente previstos em nosso ordenamento jurídico, fica sujeito ao crivo de nossos governantes, que assim passam a aparelhar por critérios político-pessoais estes que são os centros produtores do direito que efetivamente contam, ao interpretar e aplicar — ou não — as previsões genéricas e vagas contidas naquele ordenamento. Os poderes instituídos, portanto, e não só por isso, precisam de reformas que eles próprios não levaram a cabo, pois os que são seus detentores lá se encontram encastelados e dispostos antes a defender as posições privilegiadas que conquistaram do que honrar com a representação dada a ele pelo verdadeiro titular de todo poder em uma democracia, isto é, o povo soberano. E assim presenciamos estupefatos a fatos estarrecedores como, para citar um primeiro exemplo que me ocorre, dentre muitos, como é o da morte de concidadãos enfermos em filas de espera do sistema de saúde, apesar de determinações reiteradas do poder judiciário de que se tomem as medidas necessárias para salvá-los, solenemente desconsideradas pelas autoridades competentes sem que daí resulte nenhuma conseqüência — e não se venha tentar transferir para nossos médicos as graves deficiências da estrutura em que trabalham. Do que se trata, então, é de tentar uma transformação por meio da reforma de nossas instituições, no que estou chamando de instituinte, por meio de um poder constituinte que se faça representar por eleito pelo voto amplamente popular sem a intermediação usurpadora de partidos, para realizar verdadeiramente tal reforma, no sentido de termos aquelas que nos faltam para garantir os direitos que já temos assegurados constitucionalmente, mas não de fato.

Autores

  • é professor titular do Centro de Ciências jurídicas e Políticas da universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, professor permanente dos cursos de Mestrado e Doutorado em Direito da PUC-SP, doutor em Direito pela Universidade de Bielefeld, Alemanha, doutor pós-doutor em filosofia pelo IFC-UFRJ.

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