Finanças públicas

Democratizar gastos exige mudança na aplicação de normas

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5 de julho de 2013, 8h15

Em 1215, após intenso impasse, os barões ingleses fizeram o Rei João Sem Terra acatar o pleito de que não mais poderia haver tributação sem aprovação daquela assembléia. Incorporava-se à gramática jurídico-política a idéia de no taxation without representation.

Quase 900 anos se passaram e, com a força normativa dada às Constituições[1], bem como a aceitação universal da democracia como valor universal[2], criou-se um catálogo de direitos fundamentais a favor do contribuinte e limites constitucionais ao poder de tributar do Estado.

Por óbvio, a tributação, como um fenômeno ontologicamente político, é balizada pelo direito, sendo seu conteúdo construído não sem muita disputa no Judiciário e em instâncias administrativas.

O desacordo sobre o conteúdo do Direito Tributário existe, mas ainda sim, a proliferação de estudos sobre princípios e regras constitucionais, levou à existência de uma prática constitucionalizada.

Com as finanças públicas é diferente. O Direito Financeiro, que antes ocupava papel de protagonista do Direito Público, foi relegado por alguns, fiando-se que o controle da tributação era mais necessário. Prepondera verdadeiro cesarismo governamental e a criação de costumes que não se encontram na moldura jurídico-constitucional do direito brasileiro.

As finanças públicas não são levadas a sério e, como fenômeno também essencialmente político, a constitucionalização da matéria envolve ainda esforço doutrinário, além de uma boa dose de controle pela sociedade, a quem interessa, afinal, que a Constituição financeira não seja mera ilusão normativa.

Se não deve haver corrupção sistêmica entre os códigos do direito e da política, é óbvio que eles se relacionam, estando essa chave interpretativa no próprio positivismo normativo de Hans Kelsen. Daí que a indeterminação semântica de textos normativos dependa, para sua resolução no momento de aplicação do direito de algum conteúdo político — política judiciaria, no dizer de Hans Kelsen — para se determinar esse conteúdo.

Para se acabar com a ilusão normativa do Direito Financeiro brasileiro, assim, faz-se premente uma análise do que, ainda, não foi constitucionalizado na prática orçamentária brasileira.

O primeiro indício dessa percepção está na prática, nas três esferas governamentais, de que o orçamento não é, verdadeiramente, participativo. Se não existe qualquer dúvida de que a iniciativa do projeto de lei orçamentária cabe ao titular do Poder Executivo, a Constituição, ao colocar orçamento como lei, por óbvio, deu ensejo à necessidade de um processo legislativo, o que leva a duas conclusões intuitivas: forjar o projeto de lei exige do Executivo um diálogo com outros órgãos constituídos e com a sociedade; e, ainda, o só fato de o projeto ter sido apresentado, não o afasta de ajustes na fase de deliberação.

Na prática, porém, exige-se apenas um requisito formal: o de que o orçamento envolve participação popular para os municípios, conforme previsão no Estatuto da Cidade. Mesmo assim, essa participação popular, segundo arguta observação de Régis Fernandes de Oliveira, é mais formal do que substancial.

Convocam-se associações e técnicos consolidados, e pouco espaço existe para quem, realmente, tem necessidade dos gastos públicos: a maioria da sociedade. Como afirma Régis Fernandes de Oliveira, “Dostoievski, com certeza, liberaria um recurso (pressupondo-se que tivesse sido reconhecido em vida), mas nenhum de seus personagens, humilhados, ofendidos, idiotas, teria qualquer possibilidade de lograr êxito na tentativa de obter a colocação de um banco no jardim para ele dormir”[3].

A estrutura formal de orçamento participativo não é a solução, mas é o caminho inicial para democratizar as finanças públicas brasileiras.

A qualificação social, o poder simbólico de quem propõe (Pierre Bordieu), não pode ser o passaporte para que se crie uma dotação orçamentária. A melhor visão possível da democracia, sob as hostes de um modelo de consenso deliberativo (Júrgen Habermas) e que leve a sério a idéia de que o Direito existe para manter a vida (Giorgio Agamben), exige um esforço de quem é gestor para realmente ouvir toda a sociedade, mormente aquela parcela a que a Constituição da República Federativa de 1988 outorgou tantos direitos.

O modelo constitucional brasileiro, como disse recentemente o ministro Luís Roberto Barroso, não impõe uma raiva a quem é rico, mas sugere solidariedade a quem é pobre.

Os movimentos populares de insatisfação, em sua melhor leitura possível, corroboram a ideia de que a sociedade quer controlar as finanças públicas brasileiras, participando da formulação do orçamento e esperando controle republicando do que se gasta. Não difere, em seu objetivo, do movimento de 1215, mostrando como, de fato, a política permite releituras do material jurídico.

Criar mecanismos de diálogo formais e substanciais são decorrências lógicas do princípio democrático, não se precisando de lei formal para criá-los, no máximo regras para regulamentar essa participação.

O segundo aspecto do descompasso entre normatividade e prática no domínio do orçamento é o de que ele seria meramente autorizativo, no que tange às despesas públicas. No artigo 165, parágrafo 8º, da Constituição da República Federativa do Brasil, registra-se que “a lei anual não conterá dispositivo estranho à previsão de receita e à fixação de despesa”.

Inicialmente, tem-se que a estimativa de receitas e a fixação de despesas revela a necessidade de que haja boa gestão dos gastos públicos[4].

Tal dispositivo, portanto, traz duas regras: uma sobre a vinculação do orçamento às despeas públicas; outra, sobre a relação entre orçamento e previsão de receitas públicas. Não há muita discussão quanto à segunda regra extraida do dispositivo, mas, quanto à primeira, a prática orçamentária tem sido de que a execução de despesas públicas fica condicionada à discricionariedade ou, na pior leitura possível, à arbitrariedade dos gestores públicos.

É um erro crer que orçamento é meramente autorizativo. Se ele é lei (artigo 165, da Constituição), possui força normativa, gerando direitos e obrigações. A esse aspecto, que nada mais faz que eco ao que se espera da legalidade em um Estado de Direito, poderia advir um argumento substancial. É porque, em um regime de constitucionalismo democrático, na verdade a lei mais importante é a orçamentária, um ato superior de orientação do Estado[5].

Da timidez de que sequer caberia seu controle de constitucionalidade, entendimento já superado no Supremo Tribunal Federal, ainda não se atingiu uma plena constitucionalização, pois a prática continua sendo a de que o orçamento terá execução conforme a liberação de verbas pelo Poder Executivo.

Obviamente, como a lei orçamentária é temporária e envolve algo fluído como os gastos públicos, nem tudo pode estar previsto no orçamento, esbarrando em limites fáticos[6]. A realidade é cambiante, quanto mais em tempos de sociedade de risco, a que todo tempo os recursos públicos podem ser reduzidos e surgirem novas demandas.

Salvo casos de profunda mudança, porém, as estimativas contempladas no orçamento necessitarão de algum ajuste, que poderá ser feito pelo manejo de créditos adiconais. Daí que se entender o orçamento, como meramente autorizativo, esbarra no próprio sistema constitucional financeiro, além de corromper a realidade.

É necessário fixar, portanto, que o orçamento tem autoridade de lei[7], o que, porém, não desconhece que mudanças fático-jurídicas justifiquem o remanejo de verbas orçamentárias e mesmo o seu contingenciamento, desde que haja a devida motivacão. Essa discussão, em curso no STF, já mereceu análise detida do ministro Luiz Fux, para quem o descumprimento de uma previsão orçamentária deve ser razoável, excepcional e motivado[8].

Essa nova leitura também exige um pouco mais do que a existência de um direito fundamental para dele extrair todas as leituras possíveis, como se direito à saúde, por exemplo,  implicasse qualquer coisa. Se qualquer direito fundamental e política pública precisam estar contempladas em um programa, isso leva, pensando-se em um ambiente de democratização do orçamento, à existência de controle rídigo de decisões judiciais que determinam direitos e políticas sem previsão orçamentária[9].

Por último, levar os gastos públicos a sério exige uma postura pró-ativa dos órgãos de controle. Nao se pode tolerar mais que medicamentos percam a validade, produtos de péssima qualidade sejam entregues por licitantes vencedores. Regis Fernandes de Oliveira propõe que se vá além de um controle meramente formal.

Pelo exposto, portanto, levar as finanças públicas a sério exige uma mudança na aplicação de normas constitucionais e legais, as quais a prática orçamentária não tem interpretado corretamente. Afora isso, democratizer as finanças pública, o que passa, afinal, por constitucionalizá-las, exige que Legislativo, Executivo e órgãos constituídos realmente possuam canais de diálogo entre si e com toda a sociedade.

[1] HESSE, Konrad . A Força Normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: safE, 1991.

2] SEN, Amartya. El valor universal de la democracia. In: “Letras Libres, julho/2004, disponível em http://www.istor.cide.edu/archivos/num_4/dossier1.pdf

[3] OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Gastos Públicos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p.. 78.

[4] ABRAHAM, Marcus. Curso de Direito Financeiro. 1a edição: Rio de Janeiro, Campus Elversier.

[5] PÜNDER, Hermann. Haushaltsrecht im Umbruch – Einer Untersuchung am Beispeil der Kommunalverwaltung: Stuttgart: Kohlhammer, 2003, p. 140.

[6] MENDONÇA, Eduardo Bastos Furtado de. A constitucionalização das financeas públicas no Brasil: Devido Processo Orçamentário e Democracia.. Rio de Janeiro: Renovar, 2010.

[7] LEITE, Harrison Ferreira. Autoridade da lei orçamentária. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.

[8] BRASIL, ADIn 4.663/RO, Rel. Min. Luiz Fux, decisão monocrática publicada em 1º fev. 2012. Julgamento colegiado interrompido por pedido de vista)

[9] Ver PAULA, Daniel Giotti de. Direito à saúde e finanças públicas: uma questão trágica In: ASENSI, Felipe Dutra; PINHEIRO, Roseni. Direito Sanitário. Rio de Janeiro: Campus Elsevier, 2012

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  • Brave

    é procurador da fazenda nacional e professor, mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio e doutorando em Filosofia do Direito pela Universidade de Girona

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