Responsabilidade subjetiva

Estado omisso responde por danos de multidões

Autor

  • Elyesley Silva do Nascimento

    é professor advogado servidor da Câmara dos Deputados e autor de livros na área jurídica entre os quais “Curso de Direito Administrativo” e “Lei nº 8.112/90 – Estatuto dos Servidores Públicos Federais”.

4 de julho de 2013, 19h30

Das últimas duas décadas do século passado à atualidade, impulsionada pelos novos paradigmas da era do conhecimento e da informação e pela redemocratização do regime político, a sociedade brasileira tem abandonado o papel de expectadora da cena pública para assumir o verdadeiro protagonismo que o Estado Democrático de Direito lhe garante constitucionalmente (art. 1º, p. único, CF).

“Nunca antes na história deste país” se viram tantos movimentos sociais encabeçados por cidadãos e entidades da sociedade civil que, conscientes dos direitos fundamentais e inconformados com a má condução da coisa pública, resolveram ir às ruas para manifestar seu profundo descontentamento. Enfim, nasce um inadiável desejo de mudança!

Se por um lado a onda de protestos deva ser celebrada, posto que representa avanço de maturidade democrática da sociedade, por outro não se pode ignorar os danos que são causados ao patrimônio público e privado pelas multidões enfurecidas. Depredação do patrimônio privado, pilhagem de estabelecimentos comerciais, lesões corporais, isto é, está-se a tratar dos danos causados por atos de multidão, também chamados de movimentos multitudinários, que têm cunho reivindicatório e são motivados por circunstâncias socioeconômicas. Como tivemos oportunidade de registrar em nosso “Curso de Direito Administrativo”, tais espécies de danos são “causados por agrupamentos humanos, que, não raro, dilapidam o patrimônio público e privado como forma de reivindicação dos seus interesses” (2013, p. 978).

A questão que se põe é a seguinte: o Estado é responsável civilmente pelos danos produzidos pelas multidões ao patrimônio privado?

O tema não é novidade no Direito Administrativo. Já na França pós-revolucionária (1789) se discutia a possibilidade de responsabilidade civil do Estado por atos de multidão. Como bem observa a professora Sonia Sterman (2011, p. 22), “a responsabilidade do Estado em decorrência de danos produzidos por multidões passou a preocupar os juristas franceses a partir da Revolução Francesa, em razão de danos materiais sofridos pelos particulares em casas, mansões e palácios.”

Nesse contexto se concebeu a teoria da divisão entre atos de império e atos de gestão, segundo a qual pelos primeiros não haveria para o Estado dever de reparação dos eventuais danos causados, já que decorreriam do traço indelével da supremacia estatal, consubstanciada no seu poder de polícia. Diversamente, se tratasse de atos de gestão, em que não há exercício da supremacia, pois o Poder Público agiria como particular na administração de seus bens, poderia haver obrigação de indenizar, se configurados os pressupostos necessários para tanto. Na prática, contudo, a grande parte das ações estatais era classificada como atos de império, o que sepultava de vez a pretensão reparatória dos cidadãos.

Em verdade, essa teoria não teve outro desiderato senão o de proteger o erário francês das pesadas indenizações com que o Estado teria de arcar em razão dos intensos danos causados pela multidão enfurecida ao patrimônio privado.

Posteriormente, a própria França tratou de conceber proveitosa legislação garantindo direito de indenização às vítimas de danos causados por atos multitudinários, a saber: a Lei 83/1983 e o Código Geral das Coletividades Territoriais (art. L. 2216-2). Nessa mesma linha, outros países também preveem responsabilidade civil do Estado por atos de multidão: Itália (art. 28, Constituição; e art. 2.043, Código Civil), EUA (Lei 107-56/2001) e Portugal (Lei 25/2008).

No Brasil, não há lei que expressamente reconheça indenização às vítimas de danos causados por multidões. Desse modo, o deslinde da questão decorre de trabalho doutrinário e jurisprudencial.

Como ponto de partida, o art. 144 da Constituição Federal estatui que “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio […]”.

Nessa ótica, conclui-se que a segurança pública tem duplo sentido (Sterman, 2011, p. 124): tanto é dever do Estado como é direito e responsabilidade de todos. Assim, cabe ao particular informar aos órgãos responsáveis pela manutenção da ordem pública quaisquer comportamentos individuais ou coletivos de terceiros tendentes a atentar contra o patrimônio privado e a integridade física dos indivíduos.

Assim, é forçoso reconhecer que o Estado pode ser responsabilizado civilmente pelos danos provocados por atos de multidão, desde que demonstrada a específica e deliberada omissão do Poder Público em garantir a preservação da ordem pública.

Quando se afirma “omissão específica e deliberada”, tem-se o ambiente propício para a aplicação do princípio da realidade, que recomenda a adoção de parâmetros reais, possíveis, atingíveis, para que o Estado alcance seus devidos fins de concretização dos direitos fundamentais. É desarrazoado alçar o Estado à condição de “segurador universal”, capaz de evitar todos e quaisquer danos ao patrimônio privado e à incolumidade das pessoas. Se assim não fosse, todas as inúmeras vítimas de assalto poderiam demandar indenização do Estado pelos danos experimentados.

Ao tratar do referido princípio, o emérito professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto (2006, p. 279) destaca que “o sistema legal-administrativo não pode ser um repositório de determinações utópicas, irrealizáveis e inatingíveis, mas um instrumento sério de cumprimento da ordem jurídica, na disciplina possível da realidade da convivência humana”.

Desse modo, partindo das premissas de que é impossível ao Estado evitar toda e qualquer perturbação à ordem pública (posto que não é onipresente) e de que só há o dever de preservar a ordem pública quando há condições efetivas de ação estatal, afirma-se que a responsabilidade civil do Estado por atos de multidão há que ser vista de modo excepcional, de modo a só incidir sobre os casos em que haja específica e deliberada omissão estatal, e na estrita proporção da repercussão da conduta no evento danoso.

Por fim, indaga-se: o Estado responde objetivamente ou subjetivamente aos danos causados por atos de multidão?

Ab initio, convém passar em breve revista as noções caracterizadoras dessas modalidades de responsabilização civil.

A responsabilidade objetiva do Estado está consagrada no art. 37, § 6º, da Constituição Federal c/c o art. 43 do Código Civil, e alcança os danos causados pelos agentes das pessoas jurídicas de direito público e das de direito privado prestadoras de serviços públicos, quando agem no exercício da função pública. A nota característica da responsabilidade objetiva é a desnecessidade de se comprovar dolo ou culpa na conduta do agente público causador do dano como condição para a deflagração do dever de indenizar. Como no Brasil é adotada a teoria do risco administrativo, a culpa do Estado é objetivamente presumida com relação aos danos causados aos particulares. Ideia esta estribada nos valores de justiça distributiva e de vedação ao enriquecimento injustificado de determinado sujeito (beneficiário da conduta) à custa dos demais (vítimas da conduta).

De outro giro, a responsabilidade subjetiva encontra-se prevista nos arts. 186, 187 e 927, caput, do Código Civil. A tônica desta modalidade de responsabilidade civil é a exigência de demonstração de dolo ou culpa do causador do dano como requisito para que haja dever de indenizar.

Respondendo à indagação proposta, entendemos que o Estado responde pelos danos causados por atos de multidão com base na responsabilidade subjetiva, pois a omissão estatal, caso comprovada, específica e deliberada, não é causa do dano, mas condição de sua configuração. Explica-se. A omissão estatal, em si, não gera danos, mas pode proporcionar o ambiente favorável à sua ocorrência. No tema em análise, os danos são causados por terceiros (a multidão), e não pela conduta de servidores estatais (agentes de segurança pública). Ocorre que em determinados casos, se tivesse havido intervenção dos órgãos competentes, o dano poderia ter sido completamente evitado ou, quando menos, atenuado. Daí a aplicação da responsabilidade subjetiva.

Em consonância com nosso pensamento, defende Sonia Sterman (2011, p. 132) que “os danos produzidos aos particulares por quem não seja agente público (no caso a multidão – atos de terceiros) são determinados pela omissão da autoridade em não conter a multidão, o que é condição do dano, e não causa. Desse modo, o Estado só responde por omissão nos casos em que devia agir e não agiu.”

Na mesma linha, outra não é a doutrina do saudoso Hely Lopes Meirelles (2008, p. 664), para quem o § 6º do art. 37 da Constituição “não responsabilizou objetivamente a Administração por atos predatórios de terceiros, nem por fenômenos naturais que causem danos aos particulares”. Celso Antônio Bandeira de Mello (Curso de Direito Administrativo. 27ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 1014) também perfilha essa tese.

A tese encontra-se pacificamente encampada na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o que pode ser verificado no teor dos seguintes arestos, cujo teor não reproduziremos para não delongarmos o texto: RE 36.018, RE 28.191, RE 20.372, RE 17.746, RE 18.633, RE 17.803.

Dessa maneira, conclui-se que aplica-se a responsabilidade subjetiva ao dever civil de o Estado reparar os danos causados por movimentos mutitudinários, devendo o Estado, se demandado a indenizar, demonstrar que foram tomadas as providências necessárias, adequadas e possíveis para evitar os danos.

Em conclusão, retomando a constatação inicial, são de todo modo proveitosas as mudanças por que vem passando a sociedade brasileira rumo ao pleno exercício da cidadania, à assunção do poder pelo povo, seu natural titular. Nesse cenário, cabe aos operadores do Direito a busca pela melhor solução jurídica, a mais adequada e menos conflituosa, nunca cedendo às paixões e simpatias, e sempre crendo que não há melhor caminho para a preservação das liberdades e concretização dos superlativos valores da dignidade da pessoa humana.

Referências bibliográficas
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 34a ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito público. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
NASCIMENTO, Elyesley Silva do. Curso de Direito Administrativo. Niterói, RJ: Impetus, 2012.
STERMAN, Sonia. Responsabilidade do Estado. 2º ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. 

Autores

  • é professor, advogado, servidor da Câmara dos Deputados e autor de livros na área jurídica, entre os quais “Curso de Direito Administrativo” e “Lei nº 8.112/90 – Estatuto dos Servidores Públicos Federais”.

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