Sistema em choque

Corrupção como crime hediondo: útil, mas insuficiente

Autor

  • Wellington Cabral Saraiva

    é mestre em Direito procurador regional da República e membro do Conselho Nacional de Justiça como representante do Ministério Público da União — http://wsaraiva.wordpress.com.

1 de julho de 2013, 18h05

Como uma das respostas dos poderes públicos às manifestações do povo nas ruas em junho de 2013, o Senado Federal acelerou o exame do Projeto de Lei do Senado (PLS) 204, de 2011, de autoria do senador Pedro Taques. O projeto faz o seguinte:
a) transforma em hediondos os crimes de concussão (art. 316, caput, do Código Penal), corrupção passiva (art. 317, caput, do Código Penal) e corrupção ativa (art. 333, caput, do Código Penal);
b) aumenta a pena desses crimes: a do delito de concussão, de dois a oito anos para quatro a oito anos de reclusão, e as dos crimes de corrupção ativa e passiva de dois a doze anos para quatro a doze anos de reclusão; todos esses crimes continuam a ser punidos também com multa, além da reclusão.

Por emenda oferecida pelo senador Álvaro Dias, foram incluídos no projeto, para também passarem a ser considerados hediondos, os crimes de peculato (art. 312 do Código Penal) e de excesso de exação (art. 316, §§ 1.º e 2.º, do Código Penal). Esse crime também tem sua pena aumentada, no projeto, de três a oito anos de reclusão para quatro a oito anos. Na forma qualificada (art. 316, § 2.º, do Código Penal), a pena mínima também é elevada de dois para quatro anos de reclusão.

O crime de concussão consiste em exigir vantagem indevida, para si ou para outra pessoa, de forma direta ou indireta. Pode ser praticado pelo autor mesmo fora da função ou antes de assumi-la, mas a exigência precisa ocorrer em razão da função.

Na corrupção passiva, o autor do crime solicita ou recebe vantagem indevida, ou aceita promessa dessa vantagem, para si ou para outrem, de forma direta ou indireta. Assim como na concussão, o delito pode ser praticado pelo autor mesmo fora da função ou antes de assumi-la, mas a exigência precisa ocorrer em razão dela.

Consiste a corrupção ativa em oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, a omitir ou a retardar ato ligado a sua função (que a lei denomina de ato de ofício).

O delito de peculato consiste na apropriação ou no desvio de valores ou bens públicos por parte de funcionário público, valendo-se dessa condição.

Por fim, o excesso de exação é a exigência de tributo que o funcionário público sabe ou deveria saber ser indevido; quando o tributo é devido, o crime consiste na cobrança por meio vexatório ou gravoso, que a lei não autorize.

Na justificativa do projeto, o senador Pedro Taques salienta a gravidade dos crimes de corrupção, pelo dano que causam a largas parcelas da população, mais até do que os delitos praticados contra indivíduos. Com inteira razão, alerta para o fato — frequentemente pouco considerado pelos eleitores e pelos juízes e tribunais, ao aplicar penas em processos por corrupção — de que, por causa do desvio de dinheiro público, pela corrupção e pelos delitos semelhantes, “faltam verbas para a saúde, para a educação, para os presídios, para a sinalização e construção de estradas, para equipar e preparar a polícia, além de outras políticas públicas. O resultado prático dessa situação é a morte diária de milhares de pessoas que poderiam estar vivas caso o Estado cumprisse a Constituição e garantisse a concretização de seus direitos fundamentais sociais.”

A inclusão dessas infrações entre as hediondas significa que elas passam a estar na relação de crimes da Lei 8.072, de 25 de julho de 1990, a chamada Lei dos Crimes Hediondos. Atualmente, são hediondos os seguintes delitos (as normas a seguir indicadas, quando não se indica de outra forma, são do Código Penal):
a) homicídio (art. 121) praticado por grupo de extermínio e homicídio qualificado (art. 121, § 2.º, incisos I a V);
b) latrocínio (art. 157, § 3.º, parte final);
c) extorsão qualificada pela morte da vítima (art. 158, § 2.º);
d) extorsão mediante sequestro e na forma qualificada (art. 159, caput, e §§ 1.º a 3.º);
e) estupro (art. 213, caput e §§ 1.º e 2.º);
f) estupro de pessoa vulnerável (art. 217-A, caput e §§ 1.º a 4.º);
g) epidemia com resultado morte (art. 267, § 1.º);
h) falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art. 273, caput e §§ 1.º a 1.º-B);
i) genocídio (arts. 1.º a 3.º da Lei 2.889, de 1.º de outubro de 1956).

A distinção dos crimes ditos hediondos para os delitos em geral, segundo a Lei 8.072/90, está nisto:
a) são insuscetíveis de anistia, graça e indulto;
b) seriam inafiançáveis;
c) a execução da pena deve ser cumprida em regime inicialmente fechado;
d) a progressão do regime de execução da pena só pode ocorrer após o cumprimento de dois quintos dela, se o réu for primário, e de três quintos, se for reincidente;
e) a prisão temporária, quando necessária (conforme a Lei 7.960, de 21 de dezembro de 1989), pode ter duração de 30 dias (em lugar do máximo de cinco dias, para os demais crimes).

Dessas consequências do tratamento legal especial dos crimes hediondos, a inafiançabilidade está absolutamente afastada pelo entendimento repetido do Supremo Tribunal Federal, que, na verdade e na prática, extinguiu esse instituto. O STF tem diversas decisões nas quais repete que a prisão em flagrante não implica a manutenção do autuado na prisão, pois ela somente subsiste se couber a decretação de prisão preventiva (o que passou a ser legalmente obrigatório com a alteração do artigo 310 do Código de Processo Penal pela Lei 12.403, de 4 de maio de 2011).

Quanto a esta, o tribunal tem a orientação de se tratar de medida excepcional, que deve ser justificada com base em circunstâncias do caso concreto e para a qual não bastam a gravidade da conduta nem a referência abstrata a uma das hipóteses do artigo 312 do Código de Processo Penal (garantir a ordem pública ou a ordem econômica, garantir a conveniência da instrução criminal ou assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria).

Ademais, no lado liberal que há em diversas leis recentes, a citada Lei 12.403/2011, estabeleceu uma série de medidas cautelares que, quando forem de aplicação possível, impedem a decretação da prisão preventiva (art. 282, § 5.º, do CPP, na nova redação daquela lei). Essas medidas cautelares substitutivas (e impeditivas) da prisão preventiva estão na nova redação do artigo 319 do CPP.

Para efeito do cabimento da liberdade provisória (que passou a ser a regra generalíssima, de acordo com o entendimento do STF), a Suprema Corte não faz diferença alguma entre crimes afiançáveis e inafiançáveis. Portanto, como se afirmou, na prática não há mais crimes inafiançáveis no Brasil. Com isso, o STF esvaziou a norma da Constituição que classifica certos delitos como não passíveis de liberdade provisória em virtude de fiança, nos termos do artigo 5.º, incisos XLII a XLIV:
a) inc. XLII: “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”;
b) inc. XLIII: “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”;
c) inc. XLIV: “constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”.

O PLS 204/2011 foi objeto de rápida deliberação no Senado Federal por causa das manifestações pelo país afora. Em razão delas, os presidentes do Senado, Renan Calheiros, e da Câmara dos Deputados, Henrique Eduardo Alves, definiram uma “pauta prioritária” de proposições legislativas a serem apreciadas de maneira veloz, com a finalidade de atender a parte das reivindicações do povo nas ruas e nas redes sociais.

Considerando, porém, o atual entendimento liberal do STF quanto ao cabimento da liberdade provisória para qualquer crime, certamente a maior parte da população se sentirá frustrada quando, em casos de corrupção e concussão, o Poder Judiciário revogar a prisão em flagrante ou indeferir requerimentos de prisão preventiva. Isso contribui em boa parte para o sentimento popular de impunidade e de frouxidão da lei penal brasileira, o que é altamente danoso para a credibilidade geral do sistema criminal.

É de difícil compreensão para o cidadão comum que um gestor público ou uma autoridade importante sejam apanhados em investigações com indícios consistentes da prática de crimes graves (até mesmo hediondos) como o de corrupção, às vezes até com maus antecedentes, e sejam postos em liberdade de forma rapidíssima, para em seguida passar anos a responder em liberdade a processos criminais que parecem nunca terminar.

Para reforçar esse entendimento de ineficiência do sistema criminal contribui outro entendimento do Supremo Tribunal Federal, o de que a execução da condenação penal somente pode ocorrer após esgotadas todas as quatro instâncias da justiça brasileira. A corte modificou a compreensão histórica de que os recursos especial e extraordinário não teriam efeito suspensivo, mas apenas o devolutivo, a partir do julgamento do Habeas Corpus 84.078/MG, em 5 de fevereiro de 2009, sendo relator o ministro Eros Grau (Plenário. Maioria. Diário da Justiça eletrônico 35, publicado em 26 de fevereiro de 2010).

Esse entendimento do STF, embora respeitável, está na contramão da tendência internacional, inclusive nos países mais desenvolvidos, como apontou estudo de Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, Mônica Nicida Garcia e Fábio Gusman (as duas primeiras procuradoras regionais da República e o terceiro, assessor da Procuradoria Regional da República da 3.ª Região).

É grande a lentidão do processo criminal brasileiro, com suas dezenas de possibilidades de recursos, que levam as causas a se arrastar por anos, durante os quais os réus podem permanecer em liberdade. Com isso, mais a excepcionalidade da prisão processual (isto é, a anterior ao trânsito em julgado da decisão condenatória), o impacto positivo inicial do projeto de lei, se definitivamente aprovado, será logo dissipado.

Leis criminais que se limitem a elevar penas e a tornar mais rigorosos determinados aspectos da legislação para determinados delitos podem ser importantes, como o projeto em causa, mas não resolvem as numerosas deficiências estruturais do sistema criminal brasileiro. Algumas delas são as seguintes:
a) polícias com graves deficiências em termos de pessoal, de material, de valorização das carreiras e de capacitação técnica, inclusive no que tange à polícia científica;
b) baixa integração das diferentes polícias que podem intervir nas investigações, sobretudo as civis, as militares e a federal;
c) modelo de investigação baseado em inquéritos policiais lentos e burocratizados, em que delegados frequentemente emulam a figura do juiz e transformam o relatório das diligências (art. 10, § 1.º, do CPP) em peças com considerações jurídicas doutrinárias e jurisprudenciais sobre o crime e suas circunstâncias;
d) baixa integração entre o trabalho da polícia criminal e o Ministério Público, entre outros motivos pela falta de previsão na lei de coordenação mais direta da investigação por parte do Ministério Público, a quem a investigação se destina (consequência da titularidade da persecução penal – art. 129, inc. I, da Constituição da República);
e) regime de prescrição criminal benevolente, com poucas causas de interrupção e curso da prescrição mesmo quando o Ministério Público se mantém ativo no processo (ou seja, regime de prescrição mesmo sem inércia do titular do direito), além de normas obsoletas, como a que reduz os prazos pela metade para os réus com mais de 70 anos na data da sentença (art. 115 do Código Penal);
f) sistema penitenciário com condições profundamente indignas, que geram ociosidade, contaminação física (pelas frequentes doenças e má assistência sanitária) e psicológica (pelo convívio entre réus com diferentes graus de periculosidade e pela coerção ou cooptação de presos por parte de outros) e elevadas taxas de reincidência (as quais, embora imprecisas, costumam ser estimadas em inaceitáveis 70%);
g) falta de cultura institucional na polícia e no Ministério Público para realização de investigação patrimonial destinada ao sequestro e posterior confisco dos instrumentos e do produto dos crimes;
h) entendimento jurisprudencial benevolente quanto ao cálculo da prescrição, que não leva em conta o acréscimo decorrente do cometimento de múltiplas infrações, quando se aplica a norma do crime continuado (art. 71 do Código Penal);
i) falta de legislação para estimular e proteger a figura dos colaboradores da justiça (internacionalmente conhecidos como whistleblowers), apesar das recomendações de organismos internacionais.

Costuma repetir-se o entendimento de que a eficiência geral de um sistema criminal não decorre da severidade das penas atribuídas às infrações, mas à certeza ou, ao menos, à elevada probabilidade de punição. Dadas as deficiências generalizadas do sistema criminal brasileiro, por motivos variados e graves como os acima apontados, conclusão inevitável é a de que a aprovação do PLS 204/2011 será passo útil, mas muito pequeno para elevar a eficácia da legislação penal (inclusive no que tange ao combate à corrupção) e para tonificar a cultura de aplicação das leis no país.

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