Justiça tributária

Multas injustas prejudicam o país e podem ser anuladas

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

1 de julho de 2013, 8h01

Spacca
Nas recentes manifestações do povo brasileiro multiplicaram-se as bandeiras e placas levantadas para amparar sua voz. No meio de uma multidão no Rio de Janeiro vi uma placa, aliás mal feita, onde se lia: JUSTIÇA TRIBUTÁRIA! Pelo jeito, a coluna já tem pelo menos um seguidor. Nada mau para dois anos!

Essa luta por um sistema tributário justo talvez ainda se perca no meio de tantas prioridades — saúde, educação transportes, segurança, etc — mas deve ser considerada em um contexto maior. Afinal, sem dinheiro não se faz nada e isso vem da arrecadação.

Pois aí é que o bicho pega. Já existem manifestações aqui e ali no sentido de que é necessário combater a sonegação. Sem dúvida que é isso mesmo. Trata-se de crime, há de ser combatido e os responsáveis devidamente punidos na forma da lei.

Mas temos visto, neste quase meio século de experiência no setor, que são muito recorrentes os casos de lançamentos injustos e ilegais que, em lugar de provocar arrecadação dos tributos apontados como não recolhidos, causam sérios prejuízos aos contribuintes e principalmente ao fisco, vale dizer, ao país.

A Constituição Federal, no seu artigo 37 , ordena que a administração pública obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Todavia, esses princípios são costumeiramente ignorados nos lançamentos de ofício, quando se pretende cobrar tributo presumidamente não pago.

No estado
O exemplo mais recente disso, no caso falta dos princípios da legalidade e eficiência, está na emissão de milhares de comunicações de lançamento do IPVA a contribuintes que possuam veículos licenciados em outras unidades da federação e apresentem declaração do imposto de renda neste estado.

Pretende a fazenda paulista que a lei estadual 13.296/2008 possa regular o conceito de domicílio a quem tenha várias residências, com base em diversas hipóteses de fixação desse domicílio, a critério do fisco.

Ora, as normas que disponham sobre conflitos de competência em matéria tributária são reguladas por lei complementar de caráter nacional, nos termos do artigo 146 da CF. Não cabe à lei estadual, mas sim ao CTN, resolver tais dúvidas.

O domicílio do contribuinte, pessoa física ou natural, é definido pelo artigo 127 do CTN, cujo parágrafo 1º diz que deve ser considerado domicílio o lugar da situação dos bens ou da ocorrência dos fatos, quando houver certos eventos como, por exemplo, pessoa que mantém propriedade rural em outro estado, onde se localizem veículos somente lá utilizados.

Ao pretender legislar por lei ordinária do estado questão que cabe à lei complementar nacional, o estado de São Paulo ignora a CF e traz a lume lei inaplicável.

Mas os milhares de contribuintes que receberam os lançamentos vão ter que se defender do lançamento incorreto, administrativa ou judicialmente.

O pior de tudo é que a notificação já diz que o suposto devedor estará no Cadin estadual se não fizer o pagamento. Com isso, não vai receber essas migalhas ridículas que o Estado diz devolver aos contribuintes que perdem seu tempo informando o numero do CPF nas notas fiscais que recebem.

Essa sanha arrecadatória que toma conta de todos os entes federativos tende a se agravar nos próximos anos. Afinal, há muitas obras a construir e muito a fazer para atender as exigências do povo que, ao que parece, já não se compraz apenas com pão e circo ou com os badulaques que comprou a prazo porque o IPI foi reduzido.

Para prestar contas à nação e justificar eventual problema financeiro, o governo pode tentar fazer o que melhor sabe: nos enganar. Para tanto, dirá que o problema resulta do fato de que muitos estão sonegando. Precisarão combater a sonegação e prender os sonegadores. Beleza! Precisamos mesmo. Mas tem um porém: não vão começar pelos que praticaram os atos de corrupção no setor público e, obviamente, não pagaram os impostos? Afinal, como disse o Barão de Itararé: “Ou nos locupletemos todos, ou restaure-se a moralidade!”

O combate à sonegação não pode justificar a inobservância dos direitos constitucionais que nos são assegurados. Não se pode, por exemplo, obrigar o contribuinte à auto-incriminação, assunto sobre o qual já escrevemos aqui em 6/5/2013 – clique aqui para ler.

Há diversas decisões judiciais que asseguram o direito do contribuinte não prestar informações quando entender que isso possa prejudicá-lo. Naquela oportunidade citamos duas, a saber:

Nemo tenetur se detegere: direito ao silêncio. Além de não ser obrigado a prestar esclarecimentos, o paciente possui o direito de não ver interpretado contra ele o seu silêncio. IV. Ordem concedida, para cassar a condenação” (STF, HC n. 84.517/SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. em 19.10.2004).
“A garantia contra a auto-incriminação prevista no inciso LXIII do artigo 5º da CF/88 se estende a qualquer indagação por autoridade pública, de cuja resposta possa advir a imputação da prática de crime pelo declarante. (TRF-4 = HC 2003.04.01.024851-2)

O contribuinte tem o direito de ser considerado inocente até prova em contrário e contra ele não são válidos lançamentos por presunção. A prova há de ser produzida pelo fisco.

Esses lançamentos injustos e ilegais poderiam ser resolvidos rapidamente, sem grandes problemas para o contribuinte ou para o fisco, caso funcionassem a contento os órgãos de julgamento administrativo.

No município de São Paulo existe o CMT — Conselho Municipal de Tributos. A nível estadual temos o TIT — Tribunal de Impostos e Taxas — e no federal o Carf — onselho Administrativo de Recursos Fiscais como órgão de segunda instância e as Delegacias de Julgamento na primeira.

Lamentavelmente, nem todos funcionam bem, havendo uma tendência à parcialidade em favor do fisco. Nos órgãos colegiados (segunda instância) há representantes dos contribuintes, que são advogados.

Uma recente decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo coloca em xeque a participação de advogados nesses órgãos, caso eles estejam no efetivo exercício da profissão, entendendo que o julgamento é nulo. Veja-se a ementa do acórdão:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO — EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE — Auto de Infração e imposição de multa — Processo administrativo que deu origem à execução fiscal — Alegação de nulidade — Integrante do Tribunal de Impostos e Taxas que, à época do julgamento, estava inscrito na OAB, com autorização para advogar. — Incompatibilidade prevista no art. 28, inciso II da Lei 8.906/94 — ecedentes.”
(AI-0196471-72.2012.8.26.0000 = 16/4/2013)

A prevalecer tal entendimento, o funcionamento do TIT poderá ser muito prejudicado. Tal órgão julgador, aliás, precisa ser completamente reformulado. Primeiro, adotando o mecanismo de turmas com numero ímpar de componentes (pelo menos 5), acabando com o chamado “voto de qualidade” que já tem dado margem a vários questionamentos, eis que rompe com o equilíbrio que qualquer órgão julgador deve ter. Finalmente, parece-nos que sua denominação também deveria ser alterada para Conselho Estadual de Julgamento Tributário, eliminando-se o uso da expressão “tribunal”, evitando-se assim que o órgão administrativo seja confundido com parte do judiciário e que seus membros se auto-intitulem juízes.

No que tange à participação de advogados no TIT, parece-nos que isso seja essencial. Assim, entendendo-se que deva prevalecer a decisão do TJ, cujo fundamento legal e lógico é bastante aceitável, tais advogados devem licenciar-se da OAB ante a incompatibilidade. Constando que a remuneração que o TIT lhes paga é simbólica, deveria ser complementada pelas entidades que representam e cujos direitos ou interesses defendam.

Combater a sonegação é uma necessidade nacional. Mas também devemos exigir que as diversas leis que imponham obrigações à sociedade sejam cumpridas e quando o for o caso, aplicadas as sanções cabíveis.

Mas esse mecanismo de punições deve ser muito parcimonioso, sem permitir abusos ou exageros. Quando se dá ao servidor público a possibilidade de aplicar penas exageradas, ainda que previstas em lei, abre-se a porta para a corrupção. Devemos criar mecanismos mais eficazes de fiscalização, para evitarmos viver numa sociedade que se fundamente num terrorismo tributário ou fiscalista, onde as multas possam acabar com o patrimônio das pessoas.

No município
O Município de São Paulo, com base na famigerada lei da “cidade limpa”, chegou a aplicar em menos de 3 meses multas num total de mais de R$ 300 mil contra o proprietário de um terreno que estava locado a uma borracharia que se mudou do local, lá deixando uma pequena torre de metal onde havia uma placa.

O proprietário do imóvel, cujo valor venal é menor que a multa, só ficou sabendo da penalidade quando resolveu tentar vendê-lo. Foi obrigado a depositar o valor em juízo e está embargando a execução. Registre-se, por oportuno, que a tal lei é totalmente inconstitucional, pois a CF não permite que o município proíba publicidade, matéria regulada por lei federal.

Essa tal “lei da cidade limpa” (lei municipal 14.223 de 26/10/2006) é inconstitucional. Invoca o município suposta competência, contida no inciso I do artigo 30 da Constituição Federal, ou seja, “legislar sobre assuntos de interesse local”. Tal princípio, porém, não pode ser usado para impedir o livre exercício de atividade regulada por lei federal (publicidade) violando ainda o princípio da proporcionalidade, bem como o direito à informação.

Em sentença de 11 de julho de 2012, o Juiz de Direito da 10ª Vara da Fazenda Pública da Capital, Dr. Valentino Aparecido de Andrade, no processo 0100869-31.2008.8.26.0053, reconheceu essa inconstitucionalidade e declarou a nulidade do respectivo auto de infração.

No âmbito federal
As chamadas agências reguladoras criadas pela União, como a Anatel, Aneel, Ancine , ANP, etc já lançaram quantidades enormes de multas injustas e muito discutíveis. Muitas vítimas dessas multas injustas são postos de abastecimento de combustível acusados de comercializar produtos adulterados, que na verdade foram recebidos de distribuidoras credenciadas, autorizadas pelo governo.

Não tinham tais postos como analisar os combustíveis à época do recebimento e as provas da suposta alteração são precárias. Tais multas em muitos casos ultrapassam R$ 10 mil cada uma e são aplicadas mais de uma vez. A atividade varejista de combustíveis não proporciona margem de lucro que suporte tais sanções. Isso não é penalidade pecuniária, mas é pena de morte econômica! Foge, assim, aos princípios do artigo 37 da CF.

Conclusão
Já repetimos muitas vezes, mas nunca é demais lembrar para quê temos uma Constituição, como se vê no seu preâmbulo:

“…para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias…”
(01.07.2013)

Autores

  • Brave

    é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!