Senso Incomum

Crônicas de tragédias anunciadas — por que dizer o já dito

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31 de janeiro de 2013, 7h00

Spacca
Nada mais atual do que repetirmos algo
A Coluna de hoje é uma respeitosa homenagem às famílias das vítimas da tragédia de Santa Maria. Faço também uma homenagem ao meu amigo e colega de Coluna, Néviton Guedes, que tão bem tratou do assunto (Não se impede a morte desprezando o direito à vida – clique aqui para ler). Disse Néviton: “A prova cabal da desimportância do direito à vida é que o Brasil se transformou numa grande carnificina sem que ninguém tenha protestado seriamente. O primeiro significado jurídico do direito à vida é, entretanto, a proibição de matar. Mas aqui mata-se a granel, sem motivo ou por motivo torpe, por incompetência ou por desídia, por ódio e até mesmo, dizem, por amor. Todos os dias assistimos às mais depravadas demonstrações de violência contra a vida humana sem que parta da comunidade (indivíduos, sociedade ou Estado) a mesma indignação que aquela manifestada em casos de violação ao meio ambiente, aos direitos dos animais, à liberdade de expressão, à moralidade administrativa, à liberdade ou à igualdade entre as pessoas.”

Pois a Coluna de Néviton me fez “repetir-me”. Invoco Umberto Eco, para quem “nada mais atual do que repetir aquilo que já se disse”. E eu digo: principalmente se o que se disse se esvaiu nas brumas da fragmentação pós-moderna. Por isso, permito-me repetir parte da Coluna que escrevi aqui na ConJur, chamada “Direitos do cidadão ‘tipo’ azar o seu. Nem ponho o “ler aqui” porque a maior parte é repetição.

Mas, por que repito praticamente toda uma Coluna já escrita? Para mostrar que os reclamos de Néviton já tinham eco nesta Coluna. Meus protestos contra as carnificinas já foram feitas também em outras Colunas e artigos, como “As razões pelas quais o Estado não pode se ‘acadelar’” (ler aqui). Vamos aos reclamos.

A origem do tema
Na Coluna que em parte aqui repito havia feito uma antropofagia acerca do que ouvi em seminário na Goethe-Universität de Frankfurt (julho de 2012). Tratava-se de justiça(s) de transição no mundo. Na ocasião, o jurista alemão Klaus Günther apontou um interessante esquema para aplicar em justiça de transição. Claro que ele falava da transição política de regimes ditatoriais/autoritários para a democracia.

Disso, fiz uma pequena adaptação para uma constante “justiça em transição” em países periféricos como o Brasil. Aqui, ultrapassada a transição da ditadura para a democracia, penso que lutamos, hoje, outra guerra. E ela é constante. É o resultado da não superação de nossa histórica desigualdade social.

Trata-se também de falar da não superação da enredada sonegação de direitos da patuleia e da manutenção de privilégios dos estamentos. A propósito: por onde anda a regulamentação do imposto sobre grandes fortunas, prevista na Constituição? Por outro lado, o que dizer do famigerado “foro por prerrogativa de função”, eufemismo para privilégios revelados na histórica impunidade da elite política? É o cidadão sendo assaltado — real e simbolicamente —, o meio-cidadão sendo ignorado e o super-cidadão privilegiado. É o cidadão desrespeitado, enganado pelas companhias telefônicas, pela TV a cabo, pelas companhias aéreas, fábricas de automóveis etc. Sintomas que apenas desnudam desmandos históricos. Vítima da corrupção secular. Sem direitos sociais para quem precisa, embora os avanços de inclusão dos últimos dez anos. Mas que estamos em um “estado de natureza consumerista”, não tenho dúvida. Há, nisso tudo, uma inversão de “culpas”. Tentarei explicar isso e outras coisas na sequência

O papel do Direito
Vejamos o papel do Direito, mormente o Penal, principalmente neste momento em que há uma guerra em torno do projeto do novo Código Penal. O projeto, de fato, não é grande coisa. Mas, convenhamos: durante todos esses anos, por que o velho Código Penal não gerou essa revolta? Quantos livros foram escritos comentando o (velho) CP sem que, ali, fossem apontados absurdos semelhantes ao que o projeto retrata? Grande parte dos manuais e compêndios sobre o atual CP é patética, sequer desnudando a teoria do bem jurídico que conformou o velho Decreto nos anos 40.

Sigo. Primeiramente, essa justiça em constante transição simbólica precisa realizar uma filtragem hermenêutico-constitucional dos tipos penais que aí estão, para que abandonemos o modelo de proteção máxima do “ter” e o desrespeito com o “ser” (humano). Só para registrar: o Código Penal protege muito mais a propriedade do que a vida. Depois, o Direito Penal — e aqui me abebero da conferência de Günther — tem que levar em conta uma importante função: a comunicação de uma mensagem. Essa mensagem comunicativa da pena é o que importa para as pessoas que sofreram a injustiça. Ou seja: Trata-se do papel da interdição da lei!

O desejo primário dos que sofrem injustiças: Querer que os perpetradores sofram um castigo (interessante notar as cifras ocultas da criminalidade… sem confiança no “sistema”, mais de 60% dos crimes sequer são levados ao conhecimento das autoridades… por que será?). O Estado tem que passar a mensagem de que o fato ocorrido foi ilícito. Caso contrário, podem acontecer três fatores, dos quais deixo um de fora, porque aplicável na especificidade da justiça de transição no plano da política:

1 — Eigene Fehler Dummheit — a pessoa pode pensar que o que aconteceu foi por culpa dela; porque deu mole; foi burra. Ou que foi uma tragédia… Acrescento: as autoridades podem fazer crer à vítima que a culpa foi dela.

2 — Unglück (Pech gehabt) — a vítima pode pensar que o fato ocorreu porque deu azar (ela é mesmo uma “pessoa sem sorte”).

Em ambos os casos, há uma perda de autoconfiança da vítima (pensem nisso como o cidadão em geral, vítima constante para além do Direito Penal). Pensem nas vítimas da tragédia de Santa Maria. O papel do Estado é o de provar a culpa, mesmo que não haja pena a ser aplicada. O Direito deve comunicar isso à sociedade e às vítimas (só para registrar: sim, eu acredito no Direito Penal; nenhum país do mundo abriu mão do Direito Penal; portanto, não quero lidar com a problemática da violência de forma idealista ou idealizante).

Nada é por acaso
Atenção: fatos que envolvem a dignidade da pessoa e a segurança dela não podem ser interpretados como decorrentes do acaso, do azar ou de sua própria culpa. A tragédia de Santa Maria não é fruto do acaso ou do azar. Não foi uma “fatalidade”, como disse o dono da boate. Fatalidade é um sujeito sofrer ataque cardíaco dirigindo um ônibus e provocar um acidente. Agora, andar a 160 km por hora e provocar uma chacina é crime. Como é crime montar uma boate sem janelas e com uma porta só. E fazê-la funcionar sem alvará. Crime é montar um caixote enorme onde cabem 1.000 pessoas (e colocar 1.500) e rechear o interior com espuma e contratar um show com pirotecnia.

Andante. Já alerto de há muito quer as famosas “cestas básicas” podem ser um “tiro no pé” do sistema. Ou seja, se abuso de autoridade, bondosa figura típica criada em plena ditadura, é considerado crime de menor potencial ofensivo em razão de sua penalidade irrisória, igualado a uma contravenção de latido de animais, é porque perdemos o sentido da diferença e não respeitamos a dignidade humana. Todos os gatos “viram pardos”.

Para evitar essas alternativas ruins acima referidas, o Estado deve investigar e dizer/apontar os culpados. Aqui, de pronto, aparece um grande problema da polícia brasileira: se não há flagrante, não se investiga — ocorre a banalização… e a perda da confiança por parte das vítimas. Existem dados que demonstram que, atualmente, nas grandes capitais, mais de 90% das ações penais decorrem de auto de prisão em flagrante. Não se investiga. Obviamente, a criminalidade do colarinho-branco, que exige tecnologia e inteligência, agradece. E muito. Enquanto isso, meio milhão de presos desdentados no sistema carcerário.

Vamos lá. Nossa fábrica de injustiças sociais e privilégios odiosos não fecha… Ou alguém já parou para refletir por que não temos as estatísticas de criminalidade do nível da Suíça (ou da Espanha)? Como acentua Pablos de Molina, “cada sociedade possui a criminalidade que produz e merece”. Eu apenas alteraria o “merece”. Não creio que a patuleia mereça algo pelo qual não contribuiu: a desigualdade que gera, de forma primordial, a criminalidade.

Mas vejamos como isso é tratado na cotidianidade do (não) exercício da cidadania: a vítima é assaltada e, quando reage, é criticada. E lá vem a mensagem da autoridade: “não reaja”. Mais: “carregue nos bolsos o dinheirinho do assalto…”. “Não irrite o assaltante”. Não estou dizendo que a vítima deva reagir. O que quero denunciar é que se coloca uma espécie de alternativa ruim para a vítima: “não dê mole para o assaltante…; não aparente posses etc.

Com isso, inverte-se a relação que está lá na Constituição: há um direito fundamental à segurança pública. O sujeito é assaltado e se diz: “também… o trouxa ficou dentro do carro… veio o assaltante e, bingo (!), consumou o ato”. É?! Quem sabe podemos ler isso de modo diferente? É um direito do cidadão andar por aí, pelas ruas etc. É o Estado que deve dar segurança para o cidadão. O cidadão está certo. O assaltante não. O quero dizer é que isso deve ser comunicado à vítima. O cidadão deve saber que o Estado se importa com ele.

Será que, no caso de Santa Maria, quando foi construída a boate, em forma de caixote, sem janelas e uma porta só, alguém se deu conta de aquilo não era um “campo de extermínio”? Quem foi o arquiteto que “bolou” aquilo? Ele escapará impune? E o engenheiro responsável? Também escapará? Quem assinou as plantas? Não quero fazer uma extensão de culpas, que levaria ao infinito. Mas não se pode dizer que o arquiteto ou o engenheiro (ou os dois), ao elaborarem a planta do “caixote”, não soubessem o que estavam fazendo.

Mas, sigamos. Não há vagas nos presídios. Solução do establishment: indultos natalinos e afrouxamento no cumprimento das penas (o Brasil é o único país do mundo em que um assaltante cumpre apenas uma quinta parte da pena). Alguém acha que as autoridades assim agem porque acreditam na “recuperação” dos presos? Claro que não. As autoridades agem assim porque fazem uma análise econômica. Os presídios, autênticas masmorras medievais, são como “hotéis”. As diárias vencem. Alguns saem, outros entram. O próprio governo concorda que os presídios são masmorras. Mas não investe. Prefere fazer “projetos”. Mesmo assim, são mais de quinhentos mil presos. E, então?

Para além do Direito Penal. O trânsito brasileiro mata mais do que a guerra. O que se diz por ai? Os experts, os governantes e os políticos dizem que “a culpa é dos motoristas”. É? Será mesmo? Também é. Mas, quem sabe podemos ler esse fenômeno de outro modo… Por exemplo: seríamos nós, terrae brasiliensis, os piores motoristas e, por isso, a matança no trânsito é a maior do mundo? Não seria também porque temos os piores carros do mundo, que são vendidos sem airbags, com a conivência do Estado, com chassis fracos, que são rejeitados na Europa e nos Estados Unidos (para falar apenas nesses dois mercados)?[1] Já leram os números? Mais de 80% dos que morrem em eventos de trânsito estavam em carros sem airbags, os chamados “populares” (ou carros velhos), que são vendidos aos incautos brasileiros, trouxas, porque aqui não se dá “bola” para “isso”. Vejam a diferença entre bater um carro com airbag e um sem airbag… Mas, por que permitimos que os carros sejam vendidos sem airbags e com chassis de lata velha? Hein?

Mais: motoristas morrem em ultrapassagens perigosas. Claro, com rodovias não duplicadas, a probabilidade é “n” vezes maior do que em rodovias duplicadas. Mas cobramos pedágios, é claro! PS: antes que alguém diga que estou sendo “pequeno-burguês” (sic) e que estou preocupado demais com essas “coisas”, adianto-me para dizer que “estou preocupado, sim”, exatamente como estou preocupado com as contradições e idiossincrasias do Direito Penal, como, por exemplo, o fato de que tratamos com mais rigor os crimes de furto do que os delitos de sonegação de tributos (por exemplo, pagando o valor sonegado, extingue-se a punibilidade…- isso para não dizer mais!).

Há muitas mortes de pessoas tentando atravessar as rodovias. Dizem os jornais: “pedestres descuidados, imprudentes…”. Será mesmo? Qual a razão para que o Estado não construa passarelas? Por que o patuleu tem de andar 1 km (ou mais) para atravessar a rodovia? Ciclistas são mortos em acostamentos… Culpa deles? É? Pode ser. Mas, por que permitimos que rodovias sejam construídas com acostamentos fora dos padrões internacionais (e com superfaturamento)?

O cidadão é que dá mole?
Esse é, pois, o “problema do cidadão”… Ele “dá mole para o ladrão, dirige mal, entra mal nas curvas, ultrapassa mal…”. Vai a uma boate construída por um arquiteto e um engenheiro irresponsáveis, uma Prefeitura que deu alvará, mas, mesmo vencido, depois não impediu que a boate funcionasse etc. Essa é a meia-cidadania.

Vá à Delegacia de Polícia e registre uma ocorrência… Verá que a “culpa, no fundo, é sua”. “Deu mole, mané”. “Reagiu”. “Falou no celular”. Alguma coisa você fez. Não é possível que o Estado possa ter responsabilidade… No fundo, a manchete que o establishment (que ocupa e se serve do Estado, politicamente) desejaria é: “Neste final de semana, no RS, mais 27 pessoas ‘deram azar’ e foram esfaqueadas; 22 foram mortos ‘dando bobeira’ e 13 se ‘descuidaram’ e foram assaltadas”. Até que vem a notícia de que morreram mais de duas centenas de jovens em um incêndio em uma Boate que funcionava debaixo do nariz do Poder Público! Essa é a manchete! E que manchete!

Você quer ser atendido em hospital. Mesmo que tenha plano de saúde, é uma guerra. A culpa é… das pessoas, que não se cuidam. Dão mole para o mosquito da dengue, não se vacinaram contra a gripe, beberam no final de semana… Enfim, enchem os hospitais. Vão tomar soro em pé. A maca estará no corredor. É. É muita gente para pouca infraestrutura. Manchete: “Evite locais de aglomeração; evite os hospitais.

Você é multado no trânsito. Faz um recurso. 99,99999% dos recursos são indeferidos em duas linhas. Imagino a seguinte explicação: “Piora o nível da advocacia”… O processo administrativo pátrio é uma piada (mas tem centenas de dissertações e teses tratando disso…). O guarda de trânsito tem “fé pública” — uma incrível fundamentação a priori, impossível sob o ponto de vista filosófico, além de inconstitucional (aliás, deve ser por isso que é inconstitucional!). Você é culpado até prova em contrário! As empresas que “alugam” os pardais para os governos ganham comissão por multas. E contribuem com “muito” para as campanhas eleitorais.

A “cidadania” é atuarial. Um importante ministro do STJ disse há alguns dias: As empresas transferiram o seu call center para o Judiciário. Bingo! Aliás, para além de boas dissertações e teses de doutorado, para que serve o direito do consumidor? As companhias de telefonia celular enganam milhões de pessoas (imagino um quadro no Jornal Hoje: “como evitar a queda nas chamadas — especialista ensina truque para evitar o prejuízo”). “Dê um jeitinho”.

As companhias sabem que somente alguns milhares reclamarão. Vale a pena enganar o consumidor nessa “farra consumerista”. Seus direitos estão no “0800”… Mas você sempre pode entrar com uma ação nos juizados especiais. Lá, à tardinha, o meirinho gritará: “quem quer fazer acordo, lado direito; quem não quiser, lado esquerdo…”. Suprema humilhação. Depois, uma estagiária tentará induzir você a fazer um acordo. A empresa – que engana milhões de pessoas – aposta: não vai fazer acordo… Deixa rolar. Poucos terão paciência para levar as ações até o final. Enganar a choldra vale muito a pena. Lembro de novo do Ministro Luiz Salomão: é vantagem para as empresas enganarem o consumidor. Por isso, simbolicamente, “transferiram os call centers para o Judiciário”.

E as empresas aéreas? Você viaja como uma sardinha. Mas, seja “experto” (com xis mesmo, para acentuar o sotaque), dirá um “especialista” no Jornal da Globo: “chegue antes e consiga uma saída de emergência…”. Ou dispute à tapa uma saída de emergência… claro, pagando R$ 30 por trecho e viaje “confortavelmente”. Uau. Não conseguiu? Que pena. É porque você é um “vacilão”. “Deu azar, Mané.” Mas, pergunto: a agência estatal encarregada de fiscalizar as companhias não deveria exigir que os espaços entre as poltronas sejam civilizados? Nas viagens longas, eis o conselho: “movimente as pernas… Use meias para varizes…”. Não dê bobeira, otário! Com certeza, as companhias aéreas não são responsáveis por seu desconforto… “A escolha da Companhia é uma decisão do cliente…”. Uau de novo! Sugiro uma pauta para o “Programa Ana Maria Braga”: “Como viajar bem em bancos desconfortáveis — pequenos truques para você sofrer menos”. Convidado especial: ex-ministro da Defesa Nelson Jobim! Lembram-se quando ele “descobriu” que as poltronas eram desconfortáveis? Céus. Todos pensaram: agora vai…!

Sabem quantas multas — dessas que são aplicadas pelas “agências reguladoras contra as empresas prestadoras de serviços públicos, sejam elas submetidas a qualquer um dos regimes jurídicos possíveis” — são, de fato, pagas? Menos de 10%. O resto vai para as calendas. Sua ligação do celular cai toda a hora? A Companhia fez um cálculo: mesmo sendo multada, não pagará. Vale a pena enganar a patuleia (rafanalha, ratatulha). Manchete: “Governo endurece com as companhias”. E os patuleus dizem: “Agora vai”.

A baixa autoestima
Voltando ao Direito. O cidadão está com baixa autoestima. Mas parece que tudo conspira contra ele. Porque, de certo modo, terceirizamos nossos direitos e nossa cidadania. Ao invés de reivindicar, ou deixamos como está ou corremos ao Judiciário. Aliás, o Judiciário resolve tudo… até nos livra dos candidatos “fichas sujas” (como somos idiotas, não sabemos escolher). Sua vida está facilitada. Você não corre o risco de votar em um ladrão! Ufa!

Problemas na saúde? A patuleia está tomando soro em pé? Não há vagas? Mas, ouvindo a propaganda eleitoral das últimas eleições, parece que está tudo bem. São Paulo vai fazer mais; Porto Alegre terá um plus; Belo Horizonte agora vai; Rio de Janeiro continuará ainda mais lindo… Na prática, o governo, ao invés de dar o direito à saúde, fornece um bom advogado. Sai mais barato. Há estados da Federação em que o governo gasta mais no pagamento de ações judiciais do que nas políticas públicas de saúde stricto sensu.

E as “greves de zelo” que são feitas contra a população? A pretexto de operações padrões, rasga-se… a própria legislação, especialmente a Constituição e suas garantias, historicamente obtidas a duras penas. Também não vamos falar da enorme máquina pública, que parece ser um universo em expansão: não para de crescer. Gente com salário inicial de R$ 15 mil fazendo greve para obter um “novo plano de carreira”. E o resto da população, como fica diante disso? Um patuleu pergunta(ria): com uma estrutura desse tamanho, como o mensalão não foi detectado? Por que não o descobriram? Tem que esperar uma CPI para descobrir que as 235 empresas que se relacionaram com Charles Watterfall fizeram “movimentações financeiras atípicas”?

Por que a sonegação é tão grande? Eis o paradoxo: Quanto mais mecanismos de controle, impostos, fiscalização etc., menos controle, menos democracia… e menos eficiência. E menos cidadania. O serviço público no Brasil parece ser um fim em si mesmo. Já notaram que ninguém quer trabalhar para os governos: todos querem ser “guardiões do Estado”. Um amigo meu, procurador do Estado, diz: “não sou advogado do governo; sou do Estado”. Ah, bom. Estado? O que é essa entidade metafísica? Alguém já encontrou o Estado por aí? Estado ou o município são esses “entes metafísicos” que fornecem alvarás e, quando estão vencidos, não fecham o local? Nessa linha, pergunto: Como seria o Estado haitiano?

Além disso, há outro fenômeno: a defesa dos hipossuficientes. Todos querem fazê-lo. Já não há hipossuficientes suficientes. Algumas instituições já avançam para os não hipossuficientes. É a “luta pelos pobres” (se me entendem… talvez não seja bem “pelos” no sentido de “a favor”, mas “pelos” no sentido de “tê-los”). E tudo por conta dela, “da viúva”… Como os juristas gostam de “ontologias”: fico imaginando a “Viúva coisificada” como uma “senhora bem roliça”… Enfim, quando é da “viúva”, tudo fica fácil. De aposentadorias — mormente as rurais — distribuídas no atacado, com provas fragilíssimas, à licenças maternidade sem previsão legal…

Vejo na TV publicidade maciça de celulares e automóveis.Sim, automóveis “quase de plástico”. Sem airbag. E, quando tem, é só para o motorista. O passageiro que se rale. Gastam tanto em publicidade que tem de vender milhares de “carrinhos standards” para pagar o custo, incluindo o cachê do Neymar. Aliás, com tanto incentivo, redução de impostos etc., como é possível que as fábricas demitam gente? Hein?

Vivemos tempos em que a imagem é tudo. Já não refletimos. Colamos “palavras e coisas”. A linguagem televisiva nos imbeciliza. Vendem-nos ilusões. E, o pior: compramos. Viva os publicitários de terrae brasilis. E, quando queremos reclamar, caímos na armadilha do “0800”. Até para termos acesso à justiça tudo ficou pós-modern(izad)o. Aos poucos, o papel está sumindo. Tudo é virtual. Clean. Nada de papel sobre as mesas dos colaboradores (adoro essa nomenclatura) da Justiça. E tudo fica ficcional. Ou alguém acha mesmo que um juiz vai ligar o computador e ficar horas na frente da tela para assistir aos depoimentos ou ler as suas alegações de pen-drive? Aliás, nem faz bem para os olhos do magistrado ficar horas na frente da pantalla… Escrevi sobre isso aqui na ConJur, em três Colunas (O processo eletrônico e os novos hermeneutas – Parte I; Franqueamento da jurisdição? Processo eletrônico – Parte II; e Neo-gestores, Schubert e as costas do estagiário do TJSP).

Numa palavra
A pós-modernidade (sem que se saiba bem o que é isso) consegue tudo. Inclusive que acreditemos nesse mundo de ficções. Até o trabalho braçal, de sol a sol, feito com os pés descalços, pode ser “vendido” como algo “charmoso”… Tudo é possível. Imagem é tudo. Lembro-me, a propósito, de uma peça publicitária que ganhou o prêmio de propaganda há um tempo atrás. Descrevo, de memória. O cenário era uma antiga fazenda de café, janelas baixas, azuladas. Algo do tipo “Casa-Grande & Senzala”, compreendem? Os personagens são dois recém-casados, que, ao acordarem, encaminham-se ao café da manhã (servido por um patuleu de sexo feminino). Entrementes, a câmera mostra os “colaboradores” da “casa grande” se encaminhando para a plantação, com ferramentas rudimentares (típicas “daqueles tempos”). O lindo sol está nascendo. Enquanto os campesinos se afastam, o belo casal senta-se à mesa, ornada com toalha rendada e com xícaras de fino porcelanato (trazida lá do Aveiro). A cena culminante é o café sendo servido, fumegante, denso, saboroso… e uma voz em off anunciando, algo como: Nescafé Casagrande: A volta dos bons tempos!

O que faltou no case do café (que vira uma metáfora)? O que não foi dito? O que não foi perguntado é: “Bons tempos para quem, cara pálida”? Do mesmo modo como já de há muito nos esquecemos de perguntar as coisas… E esquecemo-nos de reivindicar. “Tipo senzala”, não é?

É. Pois é. Bons tempos para quem? Os shows em boates são “vendidos” de forma glamourosa. Tudo se vende forma glamourosa. Se deixar para a publicidade, a Bíblia vira um romance, em que se pode substituir o “personagem principal” por uma mulher, como está no esquete de humor que comentei na Coluna passada (ler aqui).

Enfim, isso tudo foi para falar que o episódio de Santa Maria é a crônica de uma tragédia anunciada. Ela ocorreu não por acaso. Não por azar dos que lá estavam. O delegado já disse: há quatro motivos para a tragédia — única porta, sinalizador, excesso de público e espuma do teto. Coisas concretas. Fáceis de constatar.

Pronto. Como é possível que a burocracia santa-mariense, tão zelosa em multar motoristas mal estacionados, deixou que a tal boate Kiss abrisse as portas (e já faz um tempinho, pois não?)? O problema não está no alvará vencido. Essa é a contradição principal do problema. O busiles da questão é anterior: Como foi concedido o primeiro alvará? Sem saídas de emergência, como isso foi permitido? E com show pirotécnico de uma bandinha dessas que aproveitam os embalos da pós-modernidade? Para fazer show pirotécnico, não é preciso ter cuidados? Licença? Qualquer um pode fazer? E os extintores de incêndio? Cadê? E que tipo de treinamento tem os trogloditas (seguranças) de uma boate como essa para — pasmem —impedir a saída de pessoas sob o argumento de que poderiam estar querendo sair sem pagar? Pedir a “comanda” no entremeio de uma confusão? Pergunto: Basta ser grande, bombadão, para ser segurança? Com fumaça à vista, os seguranças impediram a saída? Se os seguranças que fizeram isso sobreviveram, devem ser julgados por homicídio. Sua atitude causou a morte de talvez dezenas ou talvez mais de cem pessoas.

Tragédias como essa devem servir de exemplo. Há pouco tempo o Ministério Público foi criticado porque colocou o “dedo na ferida” dos alvarás de incêndio em Porto Alegre. Isso deve ser feito mais amiúde pelas autoridades em todos os lugares. Quantas boates dessas, que parecem grandes caixotes, funcionam por aí? Quem assina as plantas? E os Conselhos de arquitetos e engenheiros? Não esqueçamos: este modelo de prédio, esse modelo “caixote” é repetido em centenas de cidades do Brasil. Tragédias não ocorrem por acaso.

A omissão das autoridades no caso de Santa Maria foi, na verdade, um salvo conduto para a matança. É duro de dizer. Mas o Poder Público tem que se dar conta de que fiscalização é algo sério. Não é pró-forma. Nos EUA, pela legislação de Nova Iorque, por exemplo, vista grosso modo, os responsáveis pela boate, os seguranças, os funcionários que firmaram o alvará, o arquiteto e o engenheiro (se é que havia), a Prefeitura Municipal, todos iriam à barra dos tribunais. E por Júri Popular. E lá o pau come nesses casos. Penas? Fora as indenizações, por baixo, haveria muita pena a cumprir.

Por tudo isso é que me repeti na Coluna de hoje. Já havia dito quase tudo isso. Mas, com a licença dos leitores, tinha de dizer de novo! Prefiro pecar pelo excesso e jamais pelo minimum. Se repetir um texto ajuda a aclará-lo e trazer mais luz ao tema, permito-me recitar Goethe: luz… mais luz!


[1] Antes que alguém “se atravesse” e me jogue pedras, adianto-me para dizer que sei que há milhões de brasileiros que nem sabem o que é um airbag, que andam em ônibus precários e que sequer são consumidores no sentido da palavra. Mas também sei que aqueles que se enquadram no conceito de cidadania e “consumidor” estão tão alienados que também não se questionam acerca do funcionamento das agências reguladoras, do sistema de controle de impostos ou de como são indicados os ministros do STJ, do STF etc.

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