Sistema eleitoral

Limites da substituição de última hora devem ser revistos

Autor

  • André de Carvalho Ramos

    é professor associado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (largo São Francisco) professor titular e coordenador de mestrado em Direito stricto sensu da Escola Alfa Educação e procurador regional da República.

31 de janeiro de 2013, 7h15

Pensemos na seguinte hipótese: um prefeito já reeleito, no final do seu segundo mandato, resolve lançar sua candidatura a um esdrúxulo terceiro mandato consecutivo. É escolhido em convenção e passa a fazer ampla propaganda eleitoral utilizando-se de sua fama, ainda que tenha seu registro indeferido na Justiça Eleitoral de primeira e segunda instâncias por ser evidentemente inelegível. Continua impávido a campanha, direito que a lei eleitoral lhe assegura durante o trâmite de todos os recursos, inclusive ao Tribunal Superior Eleitoral. Na véspera do 1º turno, ele renuncia e o partido requer, a poucas horas da abertura das seções eleitorais, a substituição de sua candidatura pela de seu filho. A foto e o nome na urna eletrônica — travada, por motivos de segurança—, tudo é referente ao candidato anterior, inelegível. Não há tempo sequer para a reação dos adversários, pois a lei proíbe campanha após as 22h do sábado anterior à eleição. O filho é eleito (com nome e foto do pai-político famoso na urna) e declara, para toda a imprensa, que a cidade terá dois prefeitos!

O caso relatado é absurdo, mas exemplifica a “substituição de última hora”, utilizada, com variantes, por 157 candidatos a prefeito em todo o país nas últimas eleições para burlar a aplicação da Lei da Ficha Limpa. Esses candidatos (fichas sujas, segundo o jargão da mídia) tiveram seus registros indeferidos por incidirem em inelegibilidades previstas pela lei, recorreram por sua conta e risco, continuaram a campanha e, poucos dias antes das eleições ou mesmo no sábado, renunciaram e foram substituídos por esposa, marido, filho, filha, entre outros. Alegaram que a lei permitiria a substituição de última hora de candidatos a cargos majoritários (prefeito e vice-prefeito). Os adversários e a população foram pegos de surpresa. No domingo, os parentes foram eleitos. Os inelegíveis valeram-se, assim, do que entenderam ser uma brecha na lei para se perpetuar no poder, indicando familiares para substituí-los na undécima hora, como se o Brasil fosse ainda um regime monárquico.

A alegada brecha, contudo, não existe. A Lei das Eleições (Lei 9504/97) estabelece a possibilidade de substituição de candidatos para os cargos majoritários sem estabelecer o prazo mínimo para a substituição (artigo 13). Antes da Lei da Ficha Limpa, alguns precedentes judiciais entenderam que, nas eleições majoritárias, a substituição poderia ser requerida a qualquer tempo antes do pleito. A interpretação do citado artigo 13 não pode, entretanto, passar ao largo das mais recentes regras e princípios de direito aplicáveis ao caso.

É implícito a qualquer comando legal que ele não possa ser usado como um artifício para se violar princípios constitucionais. Permitir a substituição de última hora com base no argumento de que a manobra não ofende a lei, violaria, em primeiro lugar, o direito indisponível do eleitor à informação no processo eleitoral, verdadeira cláusula pétrea do nosso sistema constitucional. Esse direito à informação é composto tanto pelo direito de acesso às informações básicas sobre quem é candidato (seu nome e partido) quanto pelo direito às informações oriundas do entrechoque de ideias e propostas característico da democracia. A substituição sem prazo suprime ambas facetas desse direito fundamental do cidadão.

Há também séria afronta ao direito à igualdade em relação aos demais candidatos, eis que o novo concorrente ingressa no pleito sem sofrer toda a crítica a que se submeteram os demais postulantes ao cargo.

Em terceiro lugar, a lei deve ser também interpretada sob o amparo do princípio da moralidade, a fim de imprimir ao processo eleitoral limpidez e evitar o abuso do direito. Embora seja dado ao partido ou coligação substituir o candidato que renunciou mesmo após transcorrido o prazo para registro de candidaturas, fazê-lo às vésperas das eleições sem motivo justo é criar o “voto cego”, pelo qual cargos eletivos serão ocupados por pessoas que não passaram pelo crivo da campanha eleitoral.

Motivos justos incluem, por exemplo, fatos imprevisíveis como um falecimento. Mas permitir a substituição motivada por uma inelegibilidade já conhecida há muito é inadmissível frente aos direitos fundamentais violados e diante da má-fé e da fraude à lei que se objetiva. A faculdade do partido deve ser contextualizada com as normas da legislação eleitoral, em especial a Lei da Ficha Limpa, editada justamente com vistas a moralizar a política nacional.

Nesse sentido, podemos invocar a teoria da fraude à lei, como já defendeu o Ministro Dias Toffoli em artigo de doutrina: “A fraude à lei, explicitada no sentido de se valer de um ato aparentemente lícito para se burlar o sistema jurídico, pode ficar ainda mais caracterizada se os partidos ou coligações escolherem em convenção partidária alguém que, mesmo sabendo-se inelegível, seja um excelente ‘puxador de votos’ e, após, resolva substituí-lo, às vésperas, por outrem” (José Antonio Dias Toffoli, “Breves Considerações Sobre à Fraude no Direito Eleitoral”).

Essa solução não exige declaração de inconstitucionalidade de qualquer dispositivo nem a edição de lei que dê nova redação à norma. Basta interpretar o artigo 13 da Lei das Eleições de forma sistemática, que possibilite sua maior efetividade em harmonia com os princípios da Constituição Federal, prestigiando especialmente o princípio da soberania popular e da lisura do processo eleitoral, e combatendo, como é missão da Justiça Eleitoral, manobra ardilosa de ilusão do eleitorado, que conduz à ilegitimidade do pleito. A surpresa e o desconhecimento são a antítese da escolha cidadã.

Defendemos, então, que, ao analisar os casos de substituição de candidatos “ao apagar das luzes” ocorridos nas eleições de 2012, o TSEl fulmine a substituição em última hora dos candidatos barrados pela Ficha Limpa. Quando o motivo for inelegibilidade já há muito conhecida e anterior ao registro (violação da Lei da Ficha Limpa), a interpretação do prazo deve ser bem mais rigorosa do que uma substituição motivada pelo falecimento do candidato. O “ficha suja”, então, que continuar insistindo e recorrendo, o faz por sua conta e risco, não podendo ser substituído por parentes nos últimos dias da campanha como se a eleição para cargo majoritário fosse uma “capitania hereditária” do século XXI.

O TSE já adotou posição análoga em casos anteriores, nos quais também estabeleceu limites temporais para o exercício de determinados direitos ainda que a lei tenha silenciado a esse respeito. Mesmo antes da edição da Lei 12.034/09, o Tribunal já havia estabelecido o prazo máximo para propositura de investigação judicial lastreada no artigo 30-A da Lei 9504/97, por exemplo. O mesmo ocorreu com a Resolução TSE 22.610/07, que não só estabeleceu prazos, como regulamentou o rito das ações para a perda de mandato por infidelidade partidária.

Em 2012, a Procuradoria Regional Eleitoral de São Paulo defendeu, perante o TRE, a ilegitimidade do desrespeito à Ficha Limpa nos casos paulistas de “substituição de última hora”. De modo inédito, o TRE-SP indeferiu o registro de esposas, filhos e filhas de candidatos a prefeito barrados nos munícipios paulistas de Euclides da Cunha Paulista, Viradouro, Macedônia, Paulínia, Valentim Gentil e Nova Independência.

Foram julgamentos inéditos em todo o Brasil, que mostraram o caminho a ser seguido. Resta a palavra do Plenário do TSE, já que houve recursos. Esperamos que os julgamentos paulistas, além das teses expostas pela Procuradoria Regional de São Paulo e ainda pela doutrina (espelhada no citado artigo do Min. Dias Toffoli), auxiliem a consolidação de um novo entendimento sobre os limites à substituição de última hora. A confiança do eleitor em um sistema eleitoral sem surpresas ou dribles agradecerá.

Autores

  • Brave

    é procurador regional eleitoral do estado de São Paulo, professor de Direito Internacional e Direitos Humanos da Faculdade de Direito da USP, doutor e livre-docente em Direito Internacional.

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