Exame obrigatório

Exercício da advocacia por portugueses é limitado

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28 de janeiro de 2013, 14h29

O exercício da advocacia por portugueses no Brasil depende do atendimento aos requisitos estabelecidos no Estatuto da OAB, que pressupõe, dentre outros requisitos, a aprovação no exame de Ordem. Mesmo sendo beneficiários do Estatuto da Igualdade, o advogado português, ressalvada a possibilidade de ser consultor de direito estrangeiro, não se afasta daquelas exigências que incluem a aprovação no exame de Ordem. Sem elas, estar-se-ia exigindo menos de um estrangeiro do que de um brasileiro para ser advogado no país.

O estudo da situação jurídica dos estrangeiros no Brasil, durante muitos anos, foi feito com enfoque na vulnerabilidade que a sua simples presença em território nacional lhe causava. Embora a Constituição Federal assegurasse a igualdade entre brasileiros e estrangeiros, muito se discutia sobre a efetiva possibilidade de o estrangeiro gozar de benefícios como a progressão de regime prisional, a transação penal, o sursis da pena privativa de liberdade ou a fruição das liberdades provisórias. As autoridades preocupavam-se com a garantia da aplicação da lei brasileira, uma vez que a falta de vínculo com o Brasil possibilitaria ao estrangeiro furtar-se de responder o processo ou de cumprir as obrigações assumidas nas medidas despenalizadoras.

Esses assuntos não perderam a importância. Ao lado de outros temas corriqueiros como a cooperação jurídica internacional, o cometimento de crimes próprios de estrangeiros[1] ou a submissão a sanções administrativas que são peculiares a sua condição, como a expulsão e a deportação, somaram-se questões relativas ao exercício regular de direitos pelos estrangeiros no país que emergiram pela intensificação de sua presença no país.

A establização e o crescimento econômico dos últimos anos trouxeram para o Brasil um grande número de estrangeiros que pretendem trabalhar no país como babás, recepcionaistas, garçons, profissionais liberais ou executivos de empresas. Segundo o IBGE[2], norte-americanos, japoneses, paraguaios, portugueses e bolivianos constituíram os principais grupos que imigraram para o país nos últimos 5 anos. Com esse fluxo de pessoas, emergiram problemas jurídicos novos que não eram comuns.

Sejam haitianos que ingressam no país pelo Acre, sejam japoneses que, em regra, vêm trabalhar em empresas, há um traço comum que liga todas essas pessoas: a necessidade do estrangeiro trabalhar regulamente no país. Neste artigo, pretendo abordar o exercício da advocacia por estrangeiros, em especial por advogados portugueses, haja vista as peculiaridades que o regime constitucional brasileiro dispensa aos cidadãos de Portugal.

O exercício da advocacia pelos portugueses no Brasil
Os portugueses, assim como qualquer estrangeiro, são considerados não nacionais. Essa definição é dada por exclusão, englobando todos os estrangeiros de qualquer nacionalidade ou mesmo os apátridas, que se encontram sob as leis brasileiras e é importante porque representa o primeiro passo para entender a situação dos estrangeiros no país. A partir desse gênero, as leis brasileiras dispensara tratamento jurídico diferenciado a uma série de grupos reunidos por características próprias: há os estrangeiros que estão no Brasil por motivo transitório, como um turista, estudante ou missionário; há os estrangeiros que se encontram no país para fugir de perseguições políticas ou para fugir de situação de risco ou de maciça violação aos direitos humanos, como são os asilados e refugiados; há os estrangeiros que têm a intenção de se fixar no território nacional, que são os imigrantes em geral; e há, por último, os portugueses, que são estrangeiros em condição especial, aos quais é assegurada a igualdade de direitos inerentes ao brasileiro.

Com efeito, são assegurados aos portugueses os direitos inerentes aos brasileiros, se houver reciprocidade em favor dos brasileiros em Portugal, nos termos do parágrafo 1º do artigo 12 da Constituição da República:

“Art. 12. (in omissis)

§ 1º Aos portugueses com residência permanente no País, se houver reciprocidade em favor de brasileiros, serão atribuídos os direitos inerentes ao brasileiro, salvo os casos previstos nesta Constituição”.

A regra constitucional, claramente, não é autoaplicável. Para a fruição da igualdade de direitos é necessária a existência de reciprocidade em favor de brasileiros, o que é apurado nos termos do Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta firmado entre Brasil e Portugal, promulgado pelo Decreto 3.927/2001.

De acordo com o artigo 15 do Tratado, o português que se encontrar no Brasil somente pode se beneficiar do Estatuto da Igualdade por decisão do ministro da Justiça, após requerimento fundamentado para o gozo de direitos civis e políticos. Sem a decisão ministerial, o português, em solo pátrio, é um estrangeiro como outro qualquer.

O português que está no Brasil pode ter o mesmo tratamento do cidadão boliviano, americano ou paraguaio. Mas pode também fruir, em igualdade de condições, os mesmos direitos inerentes ao brasileiro, sem precisar se naturalizar, distinguindo-se, assim, dos demais estrangeiros. Há, portanto, uma duplicidade de tratamento.

Ao trabalhador português no gozo do Estatuto da Igualdade são assegurados não só os direitos humanos, que decorrem da sua dignidade como pessoa, mas os mesmos direitos trabalhistas, previdenciários e sociais que são extensíveis aos brasileiros.

Mas a situação dos advogados é peculiar em razão das qualificações da profissão. No Brasil, o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão é livre, desde que atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer, nos termos do artigo 5º, XIII da Constituição Federal. Trata-se de um direito submetido a uma reserva legal qualificada, que tolhe do legislador a discricionariedade para restringir o direito de forma diferente do que dispõe a fórmula “atendida as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.

A liberdade de profissão, portanto, é um direito inerente apenas ao brasileiro que preencha as qualificações legais. Não decorre simplesmente da condição de brasileiro, não sendo extensível, de per si, aos portugueses, que devem obedecer aos mesmos requisitos.

Para ser advogado, o brasileiro deve atender aos requisitos do artigo 8º da Lei 8.906/1993, in verbis:

“Art. 8º Para inscrição como advogado é necessário:

I — capacidade civil;
II — diploma ou certidão de graduação em direito, obtido em instituição de ensino oficialmente autorizada e credenciada;
III — título de eleitor e quitação do serviço militar, se brasileiro;
IV — aprovação em Exame de Ordem;
V — não exercer atividade incompatível com a advocacia;
VI — idoneidade moral;
VII — prestar compromisso perante o conselho”

Para os portugueses, não é diferente. A OAB, a quem compete, com exclusividade, interpretar seu estatuto[3]— editou o Provimento 129/2008 que estabeleceu que os advogados portugueses não estão isentos do cumprimento do artigo 8º da Lei 8.906/1993, que inclui, dentre seus requisitos, a aprovação no exame de ordem, senão vejamos:

“Art. 1º O advogado de nacionalidade portuguesa, em situação regular na Ordem dos Advogados Portugueses, pode inscrever-se no quadro da Ordem dos Advogados do Brasil, observados os requisitos do art. 8º da Lei nº 8.906, de 1994, com a dispensa das exigências previstas no inciso IV e no § 2º, e do art. 20 do Regulamento Geral do Estatuto da Advocacia e da OAB.

Art. 2º O disposto no o art. 1º não exclui a possibilidade do exercício da atividade do advogado português na qualidade de consultor em direito estrangeiro no Brasil, cumpridas as exigências do Provimento nº 91/2000-CFOAB”.

Conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário 603.583/RS, o exame de ordem, bem como as demais qualificações trazidadas pelo Estatuto da OAB, são a “salvaguarda de que as profissões que representam serão limitadas, serão exercidas somente por aqueles indivíduos conhecedores da técnica”. Segundo esta decisão, as limitações ao direito de liberdade de profissão encontram sua justificativa para tão somente “assegurar que as atividades de risco sejam desempenhadas por pessoas com conhecimentos técnicos suficientes, de modo a evitar danos à coletividade”[4].

Se o brasileiro deve atender a todos esses requisitos para exercer a advocacia no país, com mais razão devem obedecê-los os advogados portugueses. A Constituição não estendeu aos portugueses mais direitos do que estendeu aos brasileiros. Estendeu direitos idênticos, com as ressalvas previstas na própria Constituição. Se o brasileiro precisa fazer exame de ordem, os portugueses, no gozo do Estatuto da Igualdade, também precisarão. É a salvaguarda que a advocacia somente será exercida por indivíduos conhecedores do Direito brasileiro.

Aliás, a exigência do exame de Ordem em Portugal, que foi criado em 2009, foi derrubada, há pouco mais de um ano, pelo Tribunal Constitucional daquele país, realçando os requisitos diferenciados para se tornar um advogado no Brasil e em Portugal. Sem fazer um juízo de valor, a lei brasileiroa, a toda evidência, faz mais exigências para o bacharel se inscrever na Ordem como advogado.

Com efeito, ao contrário do Estatuto da OAB, o Estatuto de Portugal, em seu artigo 187º, determina apenas que podem requerer a sua inscrição como advogados estagiários, os licenciados em Direito por cursos universitários nacionais ou estrangeiros oficialmente reconhecidos ou equiparados.

O estudante licenciado que acessa o estágio, o chamado advogado estagiário, já é considerado advogado pela lei portuguesa. O Estatuto da Ordem Portuguesa elenca no seu artigo 181º, n.º 1, alíneas a) à e), as restrições ao direito de inscrição passíveis de serem aplicadas e regulamentadas pela Ordem, não podendo ser inscritos: os que não possuam idoneidade moral para o exercício da profissão, os que não estejam no pleno gozo dos direitos civis, os declarados incapazes de administrar as suas pessoas e bens por sentença transitada em julgado, os que estejam em situação de incompatibilidade ou inibição do exercício da advocacia, bem como os magistrados e funcionários que, mediante processo disciplinar, hajam sido demitidos, aposentados ou colocados na inactividade por falta de idoneidade moral.

São essas as qualificações profissionais exigidas pela lei portuguesa, que se afastam daquelas enumeradas pelo artigo 8º do EOAB.

No ano de 2009, chegou-se a criar um exame de conhecimentos prévio à inscrição na Ordem dos Advogados Portuguesa, por meio da Deliberação 3.333-A/2009, que aditou o artigo 9º-A do Regulamento Nacional do Estágio da Ordem dos Advogados, criando o exame de ordem português. No entanto, o Tribunal Constitucional de Portugal, ao julgar o processo 561/2010, decidiu que, uma vez “[c]omprovados os demais requisitos e atestada a posse do grau de licenciado em Direito, não prevê o Estatuto da Ordem, em momento prévio e condicionante da inscrição na referida associação pública, qualquer outra prova de conhecimentos científicos, que se presumirão adquiridos”.

Deste modo, a imposição da aprovação no exame a que aludia o artigo 9º-A do Regulamento, que tem natureza de ato administrativo, como condição para que o candidato licenciado em Direito possa requerer a sua inscrição na Ordem dos Advogados trouxe requisito não previsto em lei, inovou indevidamente na ordem jurídica e foi taxado, ao final, como inconstitucional pelo acórdão 3/2011 da Suprema Corte Portuguesa.

O exame de ordem em Portugal, após breve período, deixou de ser requisito para inscrição do formado em Direito como advogado, cujos conhecimentos se presumirão adquiridos. A lei portuguesa permite, inclusive, que podem requerer a inscrição na Ordem os licenciados em Direito por cursos universitários nacionais ou estrangeiro. Basta que sejam oficialmente reconhecidos ou equiparados.

Considerações finais
Diante desse quadro, é equivocado pensar que os portugueses têm direitos iguais aos brasileiros apenas por serem portugueses. Enquanto não se tornarem beneficiários do Estatuto da Igualdade, por decisão do ministro da Justiça, os portugueses são estrangeiros como quaisquer outros. A isonomia de tratamento não decorre automaticamente da Constituição, que faz a ressalva da reciprocidade de tratamento.

E, mesmo quando beneficiários do Estatuto da Igualdade, os advogados portugueses só poderão trabalhar como tal no Brasil, sendo procuradores ou consultores de legislação brasileira, quando devidamente inscritos na OAB, obedecendo os requisitos que qualquer brasileiro necessita para se tornar advogado.

Na verdade, após as decisões do STF na ADI 3.026/DF e no RE 603.583/RS, que assentaram, respectivamente, que a OAB é um serviço público independente, não se submetendo ao controle de qualquer órgão público, e que o exame de Ordem é constitucional, o exercício da advocacia pelo advogado estrangeiro no Brasil, ressalvada a possibilidade de ser consultor de direito estrangeiro, dependerá do atendimento a todas as qualificações do Estatuto da OAB. Sem isso, pode-se estar diante do exercício irregular da profissão, que é tipificado como contraveção penal, a qual é cominada penas de multa e prisão. Sem isso, pode-se estar exigindo para um estrangeiro advogar no país menos do que se exige de um brasileiro.


[1] Arts. 338 e 339 do Código Penal e art. 125, XI do Estatuto do Estrangeiro.

[2] http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/imprensa/ppts/00000008473104122012315727483985.pdf

[3] No recente julgamento do RE nº 603.583/RS, relatado pelo Min. Marco Autério, em 16.10.2011, o Supremo Tribunal Federal deixou claro: “a Ordem dos Advogados do Brasil, precisamente em razão das atividades que desempenha, não poderia ficar submetida à regulamentação presidencial ou a qualquer órgão público, não só quanto ao exame de conhecimentos, mas também no tocante à inteira interpretação da disciplina da Lei nº 8.906/94”.

[4] A questão do risco à coletividade, como critério que norteia a interpretação das restrições do direito fundamental à liberdade de ofício, também se fez presente em todos os outros julgamentos do Supremo sobre o art. 5º, XIII da Constituição: no RE nº 511.961/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 16.06.2009, que tratou da exigência de diploma para exercício da profissão de jornalista, e do RE nº 414.426/SC, Relª. Minº Ellen Gracie, j. 01.08.2011, que cuidou da exigência do registro dos músicos no conselho profissional como condição de exercício da profissão.

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