Consciência democrática

Omissão legislativa e agressão ao Judiciário

Autor

  • Dalmo de Abreu Dallari

    é advogado professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP membro da Comissão Internacional de Juristas. É autor entre outras obras de O Futuro do Estado.

27 de janeiro de 2013, 10h58

[Artigo originalmente publicado na edição deste domingo (27/1) do Jornal do Brasil]

A falta de consciência democrática, que foi obstáculo à plena implantação do constitucionalismo no século 18, continua presente no Brasil do século 21, e os grupos sociais que desde a criação da primeira Constituição escrita, a Constituição dos Estados Unidos, de 1787, fizeram pressão para garantia de seus privilégios, continuam presentes e ativos, colocando-se acima da Constituição e reagindo com indignação quando chamados a cumprir suas obrigações constitucionais. No século 18 os grandes proprietários de terras do sul dos Estados Unidos, que eram também usuários e traficantes de mão de obra escrava, impuseram a criação do Senado, como segunda Casa do Legislativo, para impedir que a Câmara dos Deputados, cuja maioria era contrária à escravidão, aprovasse sozinha uma lei de abolição da escravatura.

No Brasil de hoje, o Senado, por sua composição e seu comportamento, não está longe do seu primeiro antecessor do século 18. Com a garantia de representação igual para todos os estados, independentemente do número de habitantes e de eleitores, as oligarquias regionais mais retrógradas e mais apegadas aos seus privilégios econômicos e sociais atuam também como poder político, e assim têm forte influência sobre os poderes locais, do que se valem para manipular as decisões políticas e legislativas e as ações de governo e administração, chegando, em alguns casos, a interferir também no desempenho do Judiciário.

Um acontecimento destes dias, que vem aparecendo com grande destaque na imprensa como conflito entre o senador José Sarney, presidente do Senado, e o ministro Ricardo Lewandowski, presidente em exercício do Supremo Tribunal Federal, é, justamente, expressão do inconformismo das elites de poder, que consideram ofensa e agressão um ato de ofício do presidente da Corte Suprema, absolutamente legal e praticado, em termos respeitosos e serenos, no desempenho de um dever constitucional. Na raiz da atual controvérsia está o cumprimento de uma disposição constitucional, que é o artigo 159, inciso I, alínea a, da Constituição federal, segundo o qual a União entregará a um Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal 21,5% do produto da arrecadação dos impostos federais sobre a renda e proventos de qualquer natureza (IR) e sobre produtos industrializados (IPI).

O repasse do dinheiro do Fundo para os estados vinha sendo feito com base em dispositivos do Código Tributário Nacional (Lei 5.172, de 1966), que estabeleceu coeficientes variáveis para a participação de cada estado, levando em conta a área do território do estado e fatores relacionados com a população do estado e sua renda per capita. Esse critério foi substituído por outro, estabelecido pela Lei Complementar nº 62, de 1989, cuja aplicação, em termos práticos, resulta na destinação de 85% do Fundo para os estados das regiões Centro-Oeste, Nordeste e Norte, e 15% para os das regiões Sudeste e Sul. A intenção, no estabelecimento desse critério, era conceder um reforço substancial da capacidade orçamentária dos estados com maior concentração de pobreza e menor capacidade econômico-financeira, como, por exemplo, os estados de Amapá e Roraima, para os quais as parcelas recebidas da distribuição do Fundo representam quase a metade do total de suas receitas. Evidentemente, a criação do Fundo foi feita com a intenção de que em todos os estados houvesse a possibilidade da criação de um aparato governamental e administrativo que garantisse às suas respectivas populações o acesso aos serviços essenciais para o efetivo gozo dos direitos fundamentais.

Contestando a constitucionalidade dos critérios e da forma de sua aplicação, vários estados, inicialmente Minas Gerais, Maranhão, Pernambuco e Bahia, depois acompanhados por Goiás, Ceará e Paraíba, ingressaram no Supremo Tribunal Federal com ação direta de inconstitucionalidade. Em 2010, o Supremo Tribunal reconheceu a existência de inconstitucionalidade, mas, tendo em conta a extraordinária importância do dinheiro do Fundo para a manutenção de serviços essenciais em muitos estados e os graves problemas que resultariam da suspensão do repasse, decidiu manter, provisoriamente, aqueles critérios. E fixou um prazo limite, até o final de 2012, para a fixação de novos critérios pelo Legislativo.

Isso gerou indignada e áspera reação do senador José Sarney, numa resposta agressiva ao ministro Ricardo Lewandowski. Estando no exercício interino da presidência do Tribunal, o ministro Lewandowski vem sendo pressionado pelos estados interessados para imediata decisão do Tribunal. Considerando a gravidade do assunto e sua enorme influência sobre a vida de milhões de pessoas, o presidente da Suprema Corte enviou um pedido ao presidente do Senado, encarecendo a necessidade de uma decisão imediata e lembrando que isso já foi pedido ao Senado em 2010. Em sua manifestação, o senador Sarney afirmou que não há omissão do Congresso e que o pedido do ministro Lewandowski era uma intervenção inconstitucional do Judiciário no Legislativo. Respondendo com serenidade e elegância, o presidente em exercício da Suprema Corte lembrou que a acusação de omissão foi feita pelos estados interessados e que, a par disso, como tal acusação pesava contra o Congresso, era necessário ouvir o Congresso sobre essa alegação antes de decidir, ficando assegurado ao acusado o direito de defesa, como determina a Constituição.

É oportuno este registro, em vista dos importantes interesses sociais envolvidos e para dar elementos ao povo interessado, para que possa acompanhar com segurança o desenvolvimento da questão e, entre outras coisas, fazer a avaliação correta do desempenho dos órgãos públicos superiores e dos que neles atuam em nome do povo brasileiro.  

Autores

  • é advogado, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP, membro da Comissão Internacional de Juristas. É autor, entre outras obras, de O Futuro do Estado.

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