Norma maculada

Julgamento do mensalão impactará Reforma Tributária

Autor

  • Fábio Martins de Andrade

    é advogado doutor em Direito Público pela UERJ e autor da obra “Modulação em Matéria Tributária: O argumento pragmático ou consequencialista de cunho econômico e as decisões do STF”.

24 de janeiro de 2013, 6h19

A conclusão do julgamento do mensalão ocorreu no final de 2012, depois de ocupar praticamente toda a pauta das sessões de julgamento do Supremo Tribunal Federal no 2º semestre. Além disso, há indicações claras no sentido de que a publicação do acórdão ocorrerá de maneira relativamente célere. Com a publicação do acórdão, diferentes graus de impactos poderão ser verificados em variadas áreas do Direito.

Especificamente na seara tributária, cabe referir o impacto do julgamento do mensalão na chamada Reforma Tributária, veiculada pela Emenda Constitucional 42/2003.

Dentre os dispositivos veiculados pela referida Emenda, e que já foram passíveis de questionamento judicial pela mácula da inconstitucionalidade, destacam-se os seguintes.

A modificação promovida pela Emenda Constitucional 42/2003 no artigo 76 do ADCT estabeleceu que: “É desvinculado de órgão, fundo ou despesa, no período de 2003 a 2007, vinte por cento da arrecadação da União de impostos, contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico, já instituídos ou que vierem a ser criados no referido período, seus adicionais e respectivos acréscimos legais”.

Tal desvinculação de receitas tributárias foi desafiada no STF. A relatora do caso, ministra Cármen Lúcia, submeteu a questão ao Plenário Virtual, manifestando-se “pela recusa do recurso extraordinário, dada a ausência de repercussão geral da questão constitucional nele suscitada”, sob o fundamento de que: “Além da ausência de transcendência de interesse, a relevância que poderia ter a matéria foi superada pelo transcurso do tempo, pois o artigo 76 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias já não surte mais efeitos, dada a circunstância de a desvinculação ter sido limitada ao período de 2003 a 2007”.

Ante a ausência de manifestações suficientes para a recusa do recurso extraordinário, o Tribunal reputou existente a repercussão geral da questão constitucional suscitada. Não se manifestou o ministro Joaquim Barbosa, tendo acompanhado a recusa do recurso extraordinário da relatora os ministros Celso de Mello, Cezar Peluso, Dias Toffoli, Ellen Gracie, Eros Grau e Ricardo Lewandowski e pelo reconhecimento da repercussão geral os ministros Ayres Britto, Gilmar Mendes e Marco Aurélio (STF — Pleno — RE 566.007-RG — Rel. Min. Cármen Lúcia — j. 13 de maio de 2010). O caso aguarda o julgamento de mérito.

O RE 566.032 tratou da prorrogação da CPMF, teve a sua repercussão geral reconhecida e o recurso da Fazenda Nacional foi provido. Eis a ementa: “1. Recurso extraordinário. 2. Emenda Constitucional 42/2003 que prorrogou a CPMF e manteve a alíquota de 0,38% para o exercício de 2004. 3. Alegada violação ao artigo 195, parágrafo 6º, da Constituição Federal. 4. A revogação do artigo que estipulava diminuição de alíquota da CPMF, mantendo-se o mesmo índice que vinha sendo pago pelo contribuinte, não pode ser equiparada à majoração de tributo. 5. Não incidência do princípio da anterioridade nonagesimal. 6. Vencida a tese de que a revogação do inciso II do parágrafo 3º do artigo 84 do ADCT implicou aumento de tributo para fins do que dispõe o artigo 195, parágrafo 6º, da CF. 7. Recurso provido” (STF — Pleno — RE 566.032 – Rel. Min. Gilmar Mendes — j. 25 de junho de 2009). No mesmo sentido: STF — 2ª Turma — RE 633.441—AgR — Rel. Min. Joaquim Barbosa — j. 18 de outubro de 2011.

O artigo 4º dispõe que: “Os adicionais criados pelos Estados e pelo Distrito Federal até a data da promulgação desta Emenda, naquilo em que estiverem em desacordo com o previsto nesta Emenda, na Emenda Constitucional 31, de 14 de dezembro de 2000, ou na lei complementar de que trata o artigo 155, parágrafo 2º, XII, da Constituição, terão vigência, no máximo, até o prazo previsto no artigo 79 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias” (ou seja, 2010).

Desse modo, o referido artigo 4º pretendeu legitimar, através da “constitucionalização”, tanto retroativa como também (então) prospectiva (até 2010) os malsinados adicionais de até 2% na alíquota do ICMS incidente sobre os produtos e serviços supérfluos, criados com a finalidade de financiar os “Fundos de Combate à Pobreza”, instituídos com a inclusão dos artigos 79 a 83 do ADCT pela Emenda Constitucional 31/2000.

A Confederação Nacional da Indústria ajuizou a ADI 2.869 na qual questionou dispositivos da Lei do Estado do Rio de Janeiro 4.056/2002, que trata sobre a instituição, no exercício de 2003, do Fundo Estadual de Combate à Pobreza e às Desigualdades Sociais, especificamente com relação à inconstitucionalidade do acréscimo de 1% sobre a alíquota do ICMS de energia elétrica e de comunicações, bem como em relação à vigência de tais adicionais.

Em 7 de maio de 2004, a referida ação direta teve o seu seguimento negado por decisão do relator, ministro Ayres Britto, sob o fundamento de que: “(…) 12. A bem da verdade, observa-se que o artigo 4º da Emenda Constitucional 42/2003 validou os adicionais criados pelos Estados e pelo Distrito Federal, ainda que estes estivessem em desacordo com o previsto na Emenda Constitucional 31/2000. Sendo assim, se pairavam dúvidas acerca da constitucionalidade dos diplomas normativos ora adversados, estas foram expressamente enxotadas pelo mencionado artigo 4º. 13. Evidencia-se, portanto, que o arcabouço constitucional delineado na exordial foi alterado pelo legislador constituinte de reforma, restando inviável proceder ao confronto de instrumentos normativos estaduais frente à ordem constitucional substancialmente modificada. Sobre esse tema, veja-se a remansosa jurisprudência desta Suprema Corte, ‘in verbis’ (…). Com estes fundamentos, convenço-me da perda do objeto da presente ação, motivo pelo qual nego seguimento ao pedido”.

Posteriormente, as Turmas do STF aplicaram pacificamente o entendimento explicitado no julgado acima. Exemplos disso são os seguintes julgados, que expressamente reconheceram a convalidação promovida pela Reforma Tributária: 1ª Turma — RE 457.661—AgR — Rel. Min. Dias Toffoli — j. 7 de fevereiro de 2012; e 2ª Turma — RE 570.016—AgR — Rel. Min. Eros Grau — j. 19 de agosto de 2008.

Além de tais dispositivos inquinados pela mácula da inconstitucionalidade, há também outros que poderiam ser questionados, como por exemplo, a inclusão do parágrafo único do artigo 146, o qual concentrou sobremaneira as competências tributárias dos Estados, Distrito Federal e Municípios nas mãos centralizadoras da União, com a tributação única do Super Simples. Nessa situação, cabe exame aprofundado para verificar se houve ruptura do pacto federativo estabelecido no artigo 60, parágrafo 4º, inciso I, da Constituição da República.

Diante desse panorama, surgem nesse momento provas cabais e reconhecidas pela Suprema Corte no sentido de que a sua votação no processo legislativo teria sido viciada, vez que maculada pela corrupção recentemente reconhecida no julgamento do mensalão.

De fato, restou comprovado no Plenário do Supremo Tribunal Federal, durante o julgamento do mensalão, que efetivamente houve a compra de votos de parlamentares no decorrer da votação de temas importantes, como a Reforma Tributária, com o objetivo de ampliar a base aliada do governo no Congresso Nacional. Diante disso, tornou-se público e notório que o processo legislativo que resultou na Reforma Tributária foi maculado por ato criminoso (corrupção) perpetrado por integrantes do Poder Executivo, sem o qual não teria sido possível aprová-la no Congresso Nacional. Reconhecido isso, subsiste dúvida quanto à validade de tais normas, especialmente à luz das violações anteriormente referidas.

A exemplo da iniciativa verificada com o ajuizamento da ADI 4.885 em face da chamada Reforma da Previdência, o questionamento acerca da Reforma Tributária está a desafiar os militantes do foro pela melhor solução no sentido do esclarecimento complementar, com o objetivo de sanar a dúvida que passa a subsistir a partir do julgamento do mensalão a respeito da validade ou não das normas ali veiculadas.

No sentido de que tais normas não devem subsistir à luz do julgamento que o Pleno do STF adotou no caso mensalão, há a invocação da flagrante violação de princípios e valores contidos na Constituição e que já foram suscitados na ADI 4.885, como: o princípio da separação dos poderes, contido no parágrafo único do artigo 1º, vez que não houve a efetiva expressão da vontade do povo por meio de seus representantes na votação da (então) Proposta de Emenda Constitucional em foco; o princípio da moralidade administrativa, previsto no caput do artigo 37; e a fraude ao devido processo legislativo, que integra o devido processo legal, consoante dispõe o artigo 5º, inciso LV. Além desses, outros princípios e valores constitucionais podem ser suscitados, como a razoabilidade e a proporcionalidade, na medida em que o processo legislativo foi corrompido com evidente fraude à Constituição.

No sentido contrário, de que tais normas devem subsistir, a despeito da recente mácula revelada pelo Pleno da Suprema Corte, cabe registrar que já se transcorreram quase dez anos desde a edição da referida Emenda Constitucional, que veiculou a Reforma Tributária, de modo que durante esse longo período situações se consolidaram no tempo em atendimento às normas agora maculadas.

Além disso, há o potencial multiplicador da questão, no sentido de que se o STF reconhecer que a Reforma Tributária —ou até mesmo a Reforma Previdenciária— merecem ser definitivamente invalidadas, então como consequência lógica todos os atos e leis do período no qual for reconhecida a prática delituosa de corrupção relacionada à compra de votos de parlamentares no julgamento do mensalão devem ser anulados. Ora, isso levaria o país ao caos institucional em razão de verdadeiro hiato ou lacuna na promulgação de leis e atos normativos, o que não parece razoável, soando demasiadamente exagerado.

Uma saída possível para o STF se livrar dessa consequência nefasta seria a aplicação da modulação temporal dos efeitos de eventual decisão que vier a tomar no sentido da inconstitucionalidade, especialmente em homenagem ao princípio da segurança jurídica. Eventual decisão nesse sentido deveria ser extremamente bem fundamentada, na medida em que traz implícita em si um ônus argumentativo maior pelo Tribunal, levando-se em conta a excepcionalidade da situação (de modulação).

Por essa razão, talvez o melhor caminho não seja uma ação direta e tampouco o controle de constitucionalidade difuso, cuja declaração de inconstitucionalidade pode eventualmente submeter-se à manipulação temporal dos efeitos em situações excepcionalíssimas.

A corroborar esse entendimento, é necessário construir um caminho que livre o Requerente de eventual problema com prescrição e/ou decadência, na medida em que a promulgação da Emenda Constitucional 42 deu-se em 2003, isto é, transcorridos mais de cinco anos, especialmente quando em foco a instituição de tributo ou a majoração de sua alíquota. Nesse sentido, cabe registrar que o fato novo trazido à tona ocorrerá oficialmente com a publicação do acórdão do julgamento do mensalão, data a partir da qual deve ser contada qualquer iniciativa processual relacionada ao tema, preferencialmente em ação ajuizada perante a primeira instância.

Resta saber como o STF se comportará diante de tão complexa questão jurídica. Se, de um lado, manterá a sua posição radicalmente contra a corrupção e os desmandos dos corruptores condenados no julgamento do mensalão, apagando o rastro da mácula deixada por eles no processo democrático do país (com a anulação da Reforma Tributária, por exemplo). Ou se, de outro, vai transigir com o rastro da mácula deixada lançando mão de técnicas de decisão que exigem maior carga argumentativa (para sua legitimidade), de modo que através da modulação temporal dos efeitos de eventual decisão declarando a inconstitucionalidade seria possível manter a Reforma Tributária.

Além disso, resta saber como a questão será colocada perante a Suprema Corte e por ela analisada. De fato, robustece a discussão no sentido da ilegitimidade da Reforma Tributária se, além dos argumentos retirados da ADI 4.885 (relacionada à Reforma Previdenciária), houvesse outros sólidos argumentos jurídicos de violação e afronta aos dispositivos constitucionais relacionados ao Sistema Tributário Nacional. Ademais, resta exame de como se dará o liame entre o que foi reconhecido no julgamento do mensalão, no tocante à prática rotineira de compra dos votos de parlamentares e as suas consequências lógicas, na medida em que não decorre logicamente de uma condenação criminal de um político a declaração de inconstitucionalidade das leis que ele corrompeu.

Enfim, começam a surgir as primeiras reflexões a respeito do assunto que certamente deve ser amadurecido tanto pela comunidade acadêmica como também pela comunidade jurídica que atua diretamente no foro, com vistas a buscar soluções que possam resolver esse impasse que o julgamento do mensalão coloca em torno de algumas relevantes leis e atos normativos no período em que foi regular a prática da compra de votos de parlamentares no chamado esquema do mensalão, conforme decidiu o Pleno do STF.

De um ponto de vista puramente acadêmico, algumas teorias e ideias poderiam ser levantadas para derrubar por completo as normas da Reforma Tributária. De um ponto de vista prático, no entanto, é necessário que estudo desse jaez consiga efetivamente agregar o fato novo aos argumentos jurídicos já existentes, e que ainda devem ser desenvolvidos à luz do resultado do julgamento do mensalão a partir da publicação do acórdão, de modo a manter a coerência argumentativa no sentido da sua prevalência em caso de ponderação, em razão da maior proporcionalidade e razoabilidade.

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