Consultor Tributário

Princípio da realização e justa medida da tributação

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23 de janeiro de 2013, 7h00

Não é nada animador regressar de férias e se deparar com um ano já iniciado, com prazos correndo, trabalhos por (re)começar, clientes para atender, enfim, voltar ao batente. Os dias de ócio, relaxamento, reflexão e leitura dos novos (e bons) livros, dias passados na companhia da família e de amigos, à volta de uma boa mesa, e de sol, sim, muito sol, ficaram em um cantinho da Bahia, de onde trago a memória do quindim ao fim da tarde à beira mar e as saudades da família que ficou por mais uns dias. Retornar às bases nesse mês de janeiro quente, úmido e cinzento no Sudeste só reafirma minha convicção que se Deus é mesmo brasileiro, nasceu na Bahia.

Foi com saudades da Bahia que nos lembramos de um jurista baiano e, por associação de ideias, decidimos o tema da coluna de regresso das férias, de recomeço da labuta, de estreia em 2013. Pensamos em Orlando Gomes, em nossos estudos de Direito civil e na constatação que os ditos “operadores” do Direito Tributário cada dia que passa menos se preocupam em estudar este ramo fundamental do Direito.

Deve ser porque a preocupação em categorizar o Direito Fiscal como um ramo autônomo — um “mundo paralelo” de impostos, taxas, contribuições e suas alíquotas, bases de cálculo, créditos e débitos — acabou por incutir em alguns tributaristas um olhar limitado e limitador das disciplinas jurídicas que com ele (Direito Fiscal) interagem.

O tributarista não deve perder de vista que o Direito Tributário é um direito de sobreposição, como nos ensina, logo nas primeiras páginas, o clássico Manual de Direito Fiscal[1] de Alberto Xavier:

“O Direito Tributário reporta-se a situações da vida reveladoras de capacidade contributiva, as quais são — na sua grande generalidade — objecto de regulamentação por outros ramos do Direito, de harmonia com o ponto de vista objectivo e peculiar que os informam. Esse facto, que está na origem do tão discutido problema da interpretação dos conceitos próprios de outros ramos jurídicos que o legislador fiscal emprega na previsão das normas tributárias, revela bem a multiplicidade de contactos que o Direito Fiscal mantém com os restantes sectores do ordenamento jurídico. A tributação da família, das sociedades comerciais, dos juros de empréstimos titulados por letras, da compra e venda de imóveis, por exemplo, envolve o recurso a noções de Direito da família, de Direito Comercial, de Direito Civil. O Direito Fiscal como que se sobrepõe a estas várias disciplinas, tratando os fenômenos por estas regidos em primeira linha, de acordo com seu espírito e exigências próprios: pode neste sentido dizer-se que o Direito Fiscal é um direito de sobreposição.”

Voltaremos a examinar o caso de um pronunciamento da administração fiscal que revela uma preocupante despreocupação com o Direito Civil.

Trata-se da questão por nós abordada na coluna de 2 de maio de 2012, intitulada “A desmutualização das bolsas e a tributação ilegal” (clique aqui para ler), que consideramos merecer ser revisitada tendo em vista recentes decisões dos tribunais administrativos e judiciais[2] que têm aplicado a orientação administrativa no sentido da tributação imediata dos “ganhos” obtidos na operação de desmutualização da Bovespa, talvez sem se aperceber do erro de direito em que assenta a premissa de que parte referida orientação.

Com efeito, a Solução de Consulta COSIT 10, de 26 de outubro de 2007, pronunciou-se nos seguintes termos:

“ASSUNTO: Imposto sobre a Renda de Pessoa Jurídica – IRPJ
EMENTA: OPERAÇÃO DE DESMUTUALIZAÇÃO DAS BOLSAS DE VALORES. O instituto da cisão, disciplinado nos arts. 229 e segs. da Lei nº 6.404, de 1976, e no art. 1.122 da Lei nº 10.406, de 2002, só é aplicável às pessoas jurídicas de direito privado constituídas sob a forma de sociedade. Às bolsas de valores constituídas sob a forma de associações se aplica o regime jurídico estatuído nos arts. 53 a 61 da Lei nº 10.406, de 2002 (Código Civil de 2002). O art. 61 da Lei nº 10.406, de 2002, veda a destinação de qualquer parcela do patrimônio das bolsas de valores, constituídas sob a forma de associações, a entes com finalidade lucrativa. As sociedades corretoras devem avaliar as cotas ou frações ideais das bolsas de valores pelo custo de aquisição. O fato de a operação de "desmutualização" de associações não encontrar amparo no ordenamento jurídico não obsta a incidência do imposto de renda sobre a diferença entre o valor nominal das ações (da sociedade) recebidas pelos associados (sociedades corretoras) e o custo de aquisição das cotas ou frações ideais representativo do patrimônio segregado das bolsas de valores.

DISPOSITIVOS LEGAIS: Lei nº 10.406, de 2002, art. 61; Lei nº 9.532, de 1997, arts. 16 e 17.”[3] (grifos nossos)

Assim, partindo da premissa de que o instituto da cisão não é aplicável às associações, a Cosit concluiu que a operação praticada — (i) cisão parcial da Bovespa, com a versão das parcelas de seu patrimônio em duas sociedades: Bovespa Holding e Bovespa Serviços; e (ii) incorporação das ações da Bovespa Serviços ao capital da Bovespa Holding — que redundou na substituição, no patrimônio dos associados, dos títulos patrimoniais da Bovespa por ações da Bovespa Holding, configuraria “devolução de patrimônio de entidade isenta”, tributável pelo imposto de renda, nos termos do artigo 17 da Lei 9.532/97[4].

Sucede, porém, que é redondamente falsa a premissa de que o instituto da cisão não é aplicável às associações e quem diz isso com clareza é a letra da lei, o artigo 2.033 do Código Civil:

“Salvo o disposto em lei especial, as modificações dos atos constitutivos das pessoas jurídicas referidas no art. 44, bem como a sua transformação, incorporação,cisão ou fusão, regem-se desde logo por este Código.” (grifos nossos)

E quem são as pessoas jurídicas referidas no artigo 44 do Código Civil?

São pessoas jurídicas de direito privado:
I — as associações;
II — as sociedades;
III — as fundações;
IV — as organizações religiosas;
V — os partidos políticos;
VI — as empresas individuais de responsabilidade limitada.” (grifos nossos)

Ora, tivesse a Cosit atentado para o artigo 2.033 do Código Civil evitaria o erro de direito que vicia todo o raciocínio a ele consequente, notadamente a conclusão pela aplicação do regime de tributação das devoluções de patrimônio de entidades isentas consagrado no artigo 17 da Lei 9.532/97.

Não bastasse a despreocupação com o Direito Civil, a posição da administração fiscal acaba ainda por arranhar um dos princípios mais caros da tributação do Imposto de Renda.

Com efeito, além de ser ilegal a tributação pretendida pelo Fisco, porque assente em uma premissa juridicamente falsa, a exigência ainda é iníqua, eis que se sabe que na operação de desmutualização as pessoas que receberam as ações das novas entidades apenas as substituíram em seus patrimônios sem necessariamente vendê-las. Com a decisão em Consulta vislumbrou-se um fato gerador de ganho de capital em uma operação permutativa ou substitutiva que, como é cediço, não importa em realização de ganho de qualquer espécie.

Ora, não se pode esquecer que entre nós (ainda) vigora o princípio da realização em matéria de imposto de renda, consagrado no artigo 43 do Código Tributário Nacional (CTN), quando dispõe que o imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador “a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica: I — de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos; II — de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior” (grifos nossos)

Referido princípio proíbe a tributação pelo Imposto de Renda de ganhos não realizados, isto é, de ganhos meramente potenciais, latentes, virtuais. Referido princípio é, por muitos, enxergado também como corolário do princípio da capacidade contributiva, comando constitucional dirigido ao legislador infraconstitucional (art. 145, § 1º) que apenas será obedecido se a tributação incidir no momento em que o contribuinte dispuser de recursos líquidos para satisfazer o imposto.

Para demonstrar a iniquidade da tributação examinamos a variação da cotação média das ações ordinárias da BMF Bovespa entre 21 de agosto de 2008 e 22 de janeiro de 2013.

Interessante constatar que, na primeira data, as ações valiam R$ 11,32 e que, apenas dois meses depois, chegaram ao baixíssimo patamar de R$ 4,01 (27/10/2008), recuperando um valor próximo ao inicial só depois de decorridos dois anos, mais precisamente em 6/8/2012, quando foram cotadas a R$ 13,38[5]. Hoje (terça-feira, 22 de janeiro) as ações fecharam na média R$ 13,99 (22/1/2013).

Ora não se pode conceber que os contribuintes sejam chamados pelo Fisco para cumprir com uma obrigação tributária incidente sobre um ganho meramente potencial, latente, virtual, “de papel”, que teria sido efetivamente realizado caso à data da “desmutualização” tivessem recebido recursos financeiros, mas não ações de cotação instável, volátil, flutuante.

Acresce que é impensável admitir-se que, em um tributo incidente sobre ganhos de capital, o contribuinte seja obrigado a vender o ativo supostamente representativo do ganho para poder honrar a obrigação de imposto.

O correto seria manter o custo histórico dos títulos patrimoniais e recolher o tributo apenas quando o ganho fosse efetivamente realizado pela alienação das ações.

Mas há luz no fim do túnel.

O Carf — muito embora em julgado versando sobre o PIS e Cofins — reconheceu a possibilidade de cisão de associações e a natureza permutativa ou substitutiva da “desmutualização”. Veja-se a ementa do Acórdão 3403-001.757:

“DESMUTUALIZAÇÃO DA BOLSA DE VALORES. INCORPORAÇÃO DE ASSOCIAÇÃO SEM FINS LUCRATIVOS POR SOCIEDADE POR AÇÕES. SUBSTITUIÇÃO DE TÍTULOS POR AÇÕES REPRESENTATIVAS DO MESMO ACERVO PESSOAL. VENDA DO ATIVO IMOBILIZADO.
A desmutualização, tal como ocorreu de fato, envolveu um conjunto de atos típicos das operações societárias de cisão e incorporação, com o que não houve concretamente um ato de restituição do patrimônio pela associação aos associados, tampouco um ato sucessivo de utilização destes recursos para a aquisição das ações.
Houve a substituição das quotas patrimoniais das entidades sem fins lucrativos por ações da sociedade anônima, em razão da sucessão, por incorporação, da primeira pelas segundas — evento o qual, aliás, marca a extinção da associação e dos títulos.
A substituição dos títulos patrimoniais pelas ações caracterizam a permanência do mesmo ativo, devendo ser admitida sua manutenção na conta de ativo permanente, tal como procedeu o contribuinte, de modo que a sua alienação configura receita da venda de ativo permanente, a qual não compõe a base de cálculo de PIS/Cofins.
Recurso provido.”

Esperamos decididamente que venha a prevalecer este entendimento, impecável tanto do ponto de vista do Direito Civil, quanto do Direito Tributário, respeitando o princípio da realização e, com isso, garantindo a justa medida da tributação.

Feliz Ano Novo para todos nós!


[1] Cfr. Manual de Direito Fiscal I (Reimpressão), Manuais da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa 1981, p. 22 e 23.

[2] Cfr. Acórdãos 1302-00.879 e 1302-00.880, ambos da 3ª Câmara da 2ª Turma Ordinária do CARF e Ap. Cível 2008.51.01.006559-0 (TRF-2) e Ap. Cível 2009.61.00.008522-8 (TRF-3).

[3] Idêntica orientação foi adotada no que concerne à desmutualização da BM&F (Solução de Consulta SFR 521, de 7/11/2007).

[4] Para maiores detalhes cfr. a Coluna de 2/5/2012 “A desmutualização das bolsas e a tributação ilegal”.

[5] Cfr. site UOL Economia / Histórico de cotações (BMF BOVESPA ON) http://cotacoes.economia.uol.com.br/acao/cotacoes-historicas.html?codigo=BVMF3.SA&beginDay=1&beginMonth=1&beginYear=2008&

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