O ovo da serpente

Advocacia pública é alvo de desvirtuamento institucional

Autor

  • Márcia Maria Barreta Fernandes Semer

    é procuradora do Estado de São Paulo. Especialista e mestre em Direito do Estado pela Fadusp. Presidente do Conselho Consultivo da Associação Nacional dos Procuradores integra ainda a Comissão de Controle Social dos Gastos Públicos da OAB-SP.

22 de janeiro de 2013, 14h11

Utilizado de há muito como termo para expressar o "prenúncio do mal" ou o "mal em gestação", "O Ovo da Serpente" é também um dos mais impressionantes filmes de Ingmar Bergman, que como ninguém retratou em linguagem cinematográfica a República de Weimar ou os anos que antecederam o advento da Alemanha nazista.

Bergman, ao exibir situações do cotidiano presentes na história daqueles tempos, demonstrou, com precisão matemática e habilidade artística invejável que, a um observador atento, já era possível vislumbrar nos acontecimentos que se desenvolviam nos anos 20 o nascimento do Nazismo. Nas inesquecíveis palavras do Dr. Vergerus, personagem capital da trama, "É como o ovo da serpente. Através das finas membranas, você pode claramente discernir o réptil já perfeito".

Esse é também o alerta que temos emitido quanto aos destinos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo e da advocacia pública brasileira de modo geral.

Concebida constitucionalmente como função essencial à Justiça, a advocacia pública é, passados quase 25 anos da promulgação da Constituição de 1988, a prima pobre das carreiras jurídicas que integram o capítulo IV, do Título IV, da Constituição Federal, não contando com garantias peculiares às demais instituições assim qualificadas, entre as quais destacamos a autonomia financeira ou administrativa ou ainda a inamovibilidade de seus membros. Não bastasse, a advocacia pública tem sido alvo constante de iniciativas, ora veladas, ora desabridas, de enfraquecimento ou desvirtuamento institucional.

Deliberadamente inseridos em estrutura jurídica profissional de Estado, os advogados públicos são, simultânea e imperiosamente, servidores à disposição da administração para prestação de orientação jurídica aos administradores no exercício da gestão governamental e, também, profissionais destinados a zelar pelo patrimônio e interesses do Estado — e não dos administradores de ocasião — fazendo, com exclusividade, a defesa judicial e extrajudicial do ente público.

No âmbito do estado de São Paulo, no entanto, ademais das carências crônicas e preocupantes de suporte e condições de trabalho vividas pelos procuradores do e estado, pelo menos três sinais muito visíveis e relativamente recentes prenunciam o mal em gestação, a saber: a indicação do posto de trabalho dos procuradores nas consultorias das Secretarias de Estado por decisão pessoal do comando institucional; a criação formal de órgão jurídico distinto da PGE-SP (NAJ) na Secretaria de Estado da Saúde para orientação do secretário; e o projeto de nova lei orgânica encaminhado pelo procurador geral ao governador em setembro último — e que prevê dentre outros pontos questionáveis a possibilidade de o procurador geral dispensar a PGE da análise de licitações, contratos e convênios.

Nessas três iniciativas o que impressiona é o propósito não disfarçado de controle da atribuição consultiva da PGE-SP, seja pela sujeição de seus quadros profissionais ao talante do comando, seja pelo afastamento dos integrantes do órgão do exercício de suas competências constitucionais e/ou legais.

Em qualquer das situações é possível discernir claramente que o senso republicano cede à busca pela apropriação patrimonialista ou governamental de um ente de Estado, a advocacia pública, em movimento inverso àquele criado pela CF/88, que qualificou o órgão como função essencial à Justiça.

Lamentavelmente, esse cenário não se circunscreve às hostes da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, o que já não seria pouco. Mostra o noticiário nacional que a Advocacia Geral da União convive com situações semelhantes, bravamente expostas e denunciadas por seus integrantes, todos servidores públicos concursados, assim como os procuradores de São Paulo.

No caso da União, a recém divulgada Operação Porto Seguro, desencadeada pela Polícia Federal e relacionada a suposta "venda" de pareceres jurídicos patrocinada por agente do alto comando da AGU para fundamentar negócios pretensamente escusos, dá a exata dimensão das consequências que podem advir de medidas de fragilização dos advogados e da advocacia pública.

Por isso, temos procurado expor e reagir contra esses verdadeiros "ovos de serpentes" incubados em nossas instituições, fazendo ver à sociedade, à classe política e demais autoridades que é preciso dotar a advocacia pública de instrumentais próprios às carreiras essenciais à Justiça, antes que seja tarde demais, e a face desses órgãos de defesa do Estado seja desfigurada por completo para órgãos de defesa de governos, ou muito pior, para órgãos a serviço de oportunistas de plantão.

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