Conflito judicial

EUA decidirá sobre direito de não se autoincriminar

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21 de janeiro de 2013, 9h04

A Suprema Corte dos Estados Unidos aceitou decidir um desentendimento generalizado que ocorre nos tribunais do país. A situação é considerada pelo meio jurídico como um "balaio-de-gatos". Nos últimos anos, nos EUA, o direito do cidadão de permanecer calado para não se autoincriminar passou a ser interpretado de formas diferentes, às vezes diametralmente opostas, por tribunais de todas as instâncias e jurisdições. Agora, caberá à Suprema Corte pacificar a jurisprudência.

O direito do cidadão de não se incriminar foi incorporado à common law em 1640, mas tem raízes na Constituição inglesa de 1215. Nos EUA, foi sacramentado pela Quinta Emenda da Constituição: "Nenhuma pessoa deve ser compelida, em qualquer caso criminal, a testemunhar contra si mesma", diz o dispositivo. E ganhou uma faceta americana com a instituição da advertência policial obrigatória durante prisões, a Miranda Warning ou Miranda rights: "Você tem o direito de permanecer calado e tudo que disser poderá ser usado contra você no tribunal".

Agora, uma das questões a serem examinadas pela Suprema Corte é se o silêncio do cidadão, em interrogatórios policiais, pode ser usado contra ele no julgamento. Hoje em dia, a resposta a essa pergunta, nos EUA, é: "depende". Depende do quê? A realidade, hoje, é que depende de qual tribunal vai decidir o caso. Algumas cortes decidiram que há fatores, como circunstâncias ou peculiaridades dos fatos, que anulam esse direito. Ou seja, passou a ser um direito "relativo".

Por exemplo: esse direito se aplica no caso de uma pessoa que não foi presa? Uma pessoa que foi apenas convidada a comparecer à delegacia para prestar esclarecimentos e que, a um certo ponto, percebe que os investigadores policiais suspeitam dela, pode recorrer a seu direito de permanecer calada? Alguns tribunais entendem que, se não há prisão, não há direito assegurado. E a recusa de responder ao interrogatório policial pode ser usada pelo promotor no julgamento como um indício de culpa. Outros entendem o contrário.

No caso concreto que será usado pela Suprema Corte para resolver a confusão (Salinas vs Texas), a situação é exatamente essa. Os investigadores tinham poucas pistas sobre o assassinato, em 1992, em Houston, dos irmãos Juan e Hector Garza. Tinham as cápsulas vazias das balas de um revólver que coletaram na cena do crime. Ao visitar a casa de Genoveno Salinas, em busca de informações de pessoas que estiveram em uma festa na casa dos irmãos na noite anterior, a polícia foi autorizada a fazer uma busca. E o pai de Salinas entregou aos policiais uma arma que tinha em casa. Salinas, que havia estado na festa, foi convidado a ir a delegacia prestar informações, para ajudar a resolver o caso. Foi avisado que não estava preso.

Na delegacia, Salinas respondeu a todas as perguntas, até o ponto em que um policial lhe perguntou: "Se for feito um exame balístico, ele vai comprovar que as cápsulas coletadas na casa das vítimas pertenciam a esse revólver que nos foi entregue em sua casa? Salinas baixou a cabeça e, daí para a frente, preferiu recorrer a seu direito de ficar calado.

Seu silêncio foi usado contra ele no julgamento. O promotor alegou que isso indicava sua culpa. Como evidências, o promotor utilizou uma testemunha que, em um sonho, recebeu um pedido dos irmãos assassinados para denunciá-lo e que Salinas havia confessado a ele que os matara; um exame balístico; e o fato de a mãe de Salinas ter um carro parecido com o que foi visto saindo da casa das vítimas de madrugada. A defesa contestou essas alegações, incluindo o do exame de balística que, segundo alguns estudos recentes, nem sempre correspondem à verdade. O julgamento foi anulado porque os jurados não conseguiram chegar a um veredicto.

No segundo julgamento, a defesa tentou impedir o uso dessa alegação, mas o juiz a autorizou. O promotor foi mais agressivo e convincente em suas alegações finais. Os jurados aceitaram as alegações e condenaram Salinas a 20 anos de prisão. O Tribunal de Recursos do Texas manteve a condenação: "A Quinta Emenda não se aplica a interrogatórios feitos sem prisão, antes de serem garantidos ao suspeito o benefício dos Miranda Rights", escreveu o relator dos votos vencedores. O Tribunal de Recursos Criminais do Texas manteve a mesma linha de raciocínio, com maioria simples de votos.

Em sua petição à Suprema Corte para que o processo fosse lá julgado (writ of certiorari), os advogados de Salinas afirmam que os tribunais americanos estão "abertamente e obstinadamente divididos" sobre essa questão constitucional e outras semelhantes.

O advogado Jeffrey Fischer, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Stanford (assistido por mais quatro advogados), diz que dez tribunais (entre tribunais de recursos e supremas cortes estaduais) já decidiram que o direito de não se incriminar se estende a qualquer cidadão, em qualquer situação, mesmo antes da prisão. Entretanto, nove tribunais de recursos estaduais e federais entendem que ele não é aplicado fora de situações de prisão.

Um tribunal (o "Seventh Circuit") adotou uma posição intermediária, dizem os advogados. De uma maneira geral, o tribunal proíbe o promotor de usar no julgamento a alegação de que o silêncio do réu no interrogatório policial, antes de prisão, é uma prova de culpa. Mas admite uma exceção: se a pessoa interrogada perceber, em certo ponto do interrogatório, que é suspeita de envolvimento no crime, responder a algumas perguntas para tentar se livrar da acusação e, mais tarde, invocar seu direito de permanecer calada, o promotor poderá usar essa escusa como prova de culpa, no julgamento.

Duas supremas cortes estaduais também têm um entendimento só delas. Para essas cortes, no caso de acusações particulares (aquelas que são feitas pela própria vítima de um crime), feitas na presença de autoridades policiais, se o acusado preferir se manter calado, o seu silêncio poderá ser usado contra ele no julgamento como prova de culpa.

Há mais versões concebidas pelos tribunais. Por exemplo, há tribunais que concedem ao promotor o direito de desqualificar o réu como testemunha no julgamento, caso a defesa o chame para testemunhar sobre os fatos e circunstâncias do crime, se ele invocou o direito de permanecer calado no interrogatório policial. E há mais: se há provas suficientes para condenar o réu, não faz diferença se o promotor usou ou não o silêncio do acusado como prova adicional.

Na petição, que solicitam especificamente que a Suprema Corte pacifique a jurisprudência, os advogados escreveram: "Quando autoridades policiais interrogam alguém sobre seu possível envolvimento em alguma atividade criminosa, a pessoa só tem duas escolhas: falar ou permanecer calada. Se o silêncio cria necessariamente uma prova de culpa, então o direito que a Constituição garante ao cidadão de permanecer calado não é muito mais do que uma armadilha para pegar incautos".

Os advogados argumentaram que uma decisão final da Suprema Corte não só é necessária para pacificar a jurisprudência como também para colocar ordem na atuação cotidiana da polícia. "Muitos policiais estão usando essa confusão como uma estratégia, nas jurisdições que limitam esse direito", eles dizem. "Em vez de prender o suspeito, os policiais o avisam que não está sendo preso, a fim de anular o direito constitucional de permanecer calado e, se o fizer, usar isso contra ele no julgamento".

Em suas alegações finais, no segundo julgamento que condenou Salinas, o promotor perguntou aos jurados: "Se houver um assassinato em outro estado e a polícia perguntar a você se as cápsulas das balas encontradas no local do crime são as de sua arma e o DNA encontrado no corpo da vítima é o seu, você vai se negar a responder?" Ele mesmo respondeu a própria pergunta: "Você vai dizer: ‘do que é que você está falando? Eu nunca estive nesse estado e eu nem sequer possuo uma arma’. Você só se cala se é culpado".

Queiram ou não, esse é o precito constitucional, dizem os advogados. Existem várias razões para uma pessoa inocente optar por não falar à polícia antes do julgamento ou de testemunhar. Por exemplo, ela pode se sentir envergonhada ou constrangida, se tiver que falar sobre certas associações ou transações que não quer revelar. Ela pode ter memória ruim ou deficiências cognitivas e, consequentemente, se sentir vulnerável diante de um interrogatório ardiloso e persistente. Ou pode se sentir indignado diante de uma acusação injuriosa, que não quer dignificar com uma resposta. Se uma pessoa tem experiência anterior sobre o sistema de Justiça criminal e foi avisada por um advogado que o governo a está investigando, a maior possibilidade é a de que não vai querer discutir qualquer assunto com a polícia.

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