Senso Incomum

Neo-gestores, Schubert e as costas do estagiário

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17 de janeiro de 2013, 7h00

Spacca
As costas do ex-estagiário
O assunto ainda é “efetividades quantitativas versus efetividades qualitativas”. Com efeito. Recebi uma enxurrada de e-mails, a maioria compreendendo a importância da crítica ao perigo que corremos com a tecnicização exagerada dos processos judiciais (para quem não sabe do que se trata, ler as duas Colunas anteriores — aqui e aqui). Mas também houve um montão de e-mails taxando-me de dinossauro e de que estou na contramão do progresso, etc. A própria ConJur deu ênfase, no Ranking da Semana, ao comentário de Pedro PCP, que foi estagiário do TJ-SP, que simplesmente é a favor do processo eletrônico porque ele carregava processos de 30 volumes nas costas.

Como diz o jovem Pedro (ler aqui), ex-estagiário do TJ-SP e protagonista do título da Coluna, “só não pensa assim quem nunca teve que carregar 30 volumes de papel nas costas, quem nunca teve que ‘trabalhar’ espremido em sua mesa, sufocado pelas alergias, quem nunca teve que caçar ‘o’ volume perdido, quem nunca teve que enumerar 1.000 folhas em um dia”. Pronto. Eis ai um bom argumento. Processo eletrônico é bom porque alivia as costas. Como se diz por aí, “enquanto o pau sobe e desce, as costas folgam”. E “do couro saem as correias”. Aliás, como ficaria um processo de 30 volumes digitalizado? Quem o leria? Claro. Já sei: os estagiários. Os novos hermeneutas!

Se Pedro PCP (ex-estagiário do TJ-SP) faz essa ironia, permito-me, por outro lado, trazer os comentários do advogado Nilton Teixeira Prates (ler aqui), sobre a segurança dos registros: “trago acontecimento recente na Justiça Trabalhista em Santa Catarina, onde o tratamento dado a um alguns processos virtuais me serviram de alerta:
No primeiro caso, o réu protocolou contestação fora do prazo e teve, num primeiro momento, decretada sua revelia. Com a revelia decretada, a peça contestatória não foi disponibilizada em momento algum, até a prolação da sentença. O Juiz reavaliou a revelia, considerou a peça contestatória e sentenciou pela improcedência do pedido do autor. A peça contestatória continuava indisponível para acesso pelo sistema! Embargos declaratórios, recursos, até que num belo dia, assim, meio que do nada, a dita contestação finalmente se fez disponível. Recursos, tentativa de apuração de fraude, etc… Nada, sequer servidor admoestado. O risco da informatização está naquilo que pode ser incluído, excluído, acessado e não acessado. No processo físico, documento juntado vai pra cópia do processo nos arquivos dos advogados. No virtual, enquanto não disponibilizado, fica ao alvedrio de servidores
”.

Ou do estudante High Hopes (ler aqui), cujo título foi “E a qualidade, ó!!”, verbis: “Pouco tempo atrás um professor juiz comentou sobre o tal problema das estatísticas e do pouco tempo para dar as sentença, eu pensei a respeito, mas desisti de pensar para não desistir de seguir no direito. Se da forma que está e com o tempo que temos já é difícil, imaginem o tamanho e a quantidade de injustiças que serão praticadas por causa das estatísticas da modernidade. Entramos na era da sentença expressa, entre no tribunal de manhã e em meia hora receba a decisão dos mais (d)eficientes e (des)qualificados juízes. É de apertar o coração e rezar para que a injustiça não seja conosco.”

No meu e-mail, recebi mensagem de juiz do estado do Paraná, informando que pagar R$ 50 por sentença feita por estagiário já é realidade em muitos estados do Brasil. E eu achando que era ficção. Ele diz: “Tenho pena das vidas cujo futuro é posto nas mãos do Judiciário desse modo. Gostaria de poder reagir. Mas remar contra a correnteza e inútil.” E eu digo: Vamos à luta, parceiro. A história nos dará razão.

A técnica pela técnica?
Na verdade, não sou contra a tecnologia. Deixei isso claríssimo. Minha preocupação é de outra monta. Falo do humano. Demasiadamente humano eu sou. Heidegger falava dos princípios epocais. Cada época tem um fundamento último, que se basta (fundamentum inconcussum). O “eidos platônico, a ousia aristotélica, o ens creatum de Tomás de Aquino, o cogito de Descartes, o Eu Penso, de Kant, o Absoluto hegeliano e o último princípio epocal da modernidade, a Wille zur Macht” (a vontade do poder, de Nietzche). Depois, a era da técnica. Da instrumentalização. Somos escravos da técnica. E, nesse sentido, o enigma que emerge da relação do ser humano com as coisas; da relação entre ser humano e natureza, simplesmente desaparece.

Tudo fica restrito à apreensão calculável das coisas. Não somos mais pessoas de carne, ossos e mentes; somos números, dígitos apenas. Na era do dis-positivo (das Ge-stell), afirma Heidegger, “a natureza é pro-vocada, isto é, interpelada, a mostrar-se como objetividade calculável[1]. Em um ensaio, absolutamente fantástico, sobre os elementos que forjaram a modernidade filosófica chamado O Tempo da Imagem do Mundo, Heidegger chama esse processo frenético de alastramento do dispositivo, do domínio total da natureza pela técnica de Maschinentechnik, ou seja, “técnica de máquinas”. E o que é o e-process? Mais um capítulo dessa mesma história: é uma faceta do dispositivo que nos rege nestes tempos de crise (que alguns já ousam chamar de pós-modernidade).

De onde surge a massificação?
Nestes tempos de pós-modernidade (?), a produção massificada do direito vai levando tudo de roldão, como a enchente de Xerém. Por falar em água, cada vez mais se citam menos fontes. Como falei outro dia, em terrae brasilis só quem refere a fonte é a garrafa de água mineral. Falei outro dia aqui na ConJur que um dos livros que pretende tratar das disciplinas “humanistas” nos concursos públicos (em face de uma Resolução do CNJ), não cita fonte alguma até a página 124. Os autores são “a origem”. No princípio eram eles, os autores do livro. E no restante do livro a coisa vai à meia-boca. Tudo é de todos, compreendem? Até a Folha de S.Paulo (12.01.2013) constatou que um dos desenhistas terceirizado copiou uma gravura de um sujeito que mora na Ásia. Recortar e colar: eis o grande paradigma hermenêutico. E os processos digitalizados seguem nessa linha: Ctrl-c! Ctrl-v! Sinal dos tempos. Tudo é virtual. Líquido. Fugidio. E desumano…

Prossigo e registro, ainda, que — nas duas Colunas anteriores —, ao lado das críticas ao processo eletrônico, coloquei uma série de questões relacionadas à massificação, que ocorre por culpa do próprio Poder Judiciário. Lembrem-se sempre da frase do ministro Luis Salomão, do STJ: “Transferiram os call centers para o Judiciário.” É lucro para as empresas descumprirem as leis e desrespeitarem o consumidor (ou seja, quero afirmar que o entupimento do Judiciário é também — ou fundamentalmente — culpa dele mesmo). Se você acessar o site de uma companhia de telefonia para reclamar ou tentar ligar para o 0800 (que agora já estão cobrando), terá a nítida certeza de que o “consumeirismo” se tornou um embuste. Disque 1 para descobrir que você é um trouxa; disque 2, para falar em português; disque 3 para ouvir o colaborador falando em gerundês; disque 4 para retornar ao menu; disque 5 para receber o número do protocolo da reclamação que não vai dar certo. Bom também é o Fale com o Presidente. Ali você descobre que é um imbecil já no primeiro minuto (depois do 15º minuto de espera, é claro, porque os call centers não cumprem as resoluções da Anatel). Digo de novo: “Hecha la ley; hecha la trampa!” Vamos: entre em juízo!

E o que dizer das estatísticas exigidas pelo CNJ, que faz com que se artificialize a contagem de processos? E os embargos declaratórios, verdadeira praga contemporânea, que somente servem para procrastinar feitos e “salvar” decisões sem fundamento e mal fundamentadas? Só no Brasil é que existe um dispositivo que institucionaliza decisões omissas, contraditórias e obscuras (e os projetos dos novos CPC e CPP repetem isso; incrível como os responsáveis pelos projetos não se dão conta disso…). E os agravos dos agravos? E o agravo no agravo regimental? Quem tiver a pachorra de ler algumas colunas anteriores ou alguns textos e livros que escrevi nestes anos, verá que sempre faço uma análise global do problema. E apresento soluções. Tento mostrar que, se lidássemos com efetividades qualitativas, não seríamos sufocados/engolidos pelas efetividades quantitativas.

O exemplo do Dr. José Camargo
Dias destes assisti a uma entrevista do Dr. José Camargo, médico e catedrático de medicina de Porto Alegre. Só ele já realizou 415 transplantes de pulmão (metade do que foi feito no Brasil todo e um quinto do que foi feito no mundo). Tem 66 anos. Quando respondia às perguntas do repórter, seus olhos brilhavam. Apaixonado pela profissão de salvar vidas.

Ele disse: paradoxalmente, quanto mais temos tecnologia, mais corremos o risco de desumanizar a Medicina. Crescemos em técnica; salvamos três vezes mais vidas do que há 30 ou 40 anos. Mas não podemos perder o carinho pelo paciente. E o paciente, depois de operado, deve saber quem foi quem lhe operou. Não pode simplesmente dizer “foi aquele baixinho careca, etc., do hospital tal… acho que foi ele”. Se isso acontecer, a culpa é dos médicos que se desumanizaram. Ou seja, o Dr. Camargo fala de algo que já não existe no mundo jurídico: “o paciente concreto”, quer dizer “o caso concreto”.

Em suas aulas, o Dr. José Camargo ensina aos alunos até mesmo como dar a notícia aos familiares de alguém. Faz desafios com os alunos: “De que modo você me convenceria fazer uma biópsia de um nódulo que parece não ter importância, que não causa dor”? Sua intenção: formar pessoas; médicos-que-sejam-humanos. Sim, a Medicina está massificada. Faltam médicos, faltam hospitais. Mas diz o Dr. Camargo: “Cada atendimento é um atendimento. Ali está um ser humano.” E digo eu: eis o caso concreto!

Fiquei emocionado com a entrevista do Dr. Camargo à TV-COM, de Porto Alegre. O Dr. Camargo é mais do que um médico humanista. É uma metáfora viva. Ele deve ser universalizável.

Contundente, também denunciou a mercantilização da medicina. Falou sobre o dono da Amil, vendida por R$ 6 bilhões. Perguntado sobre o segredo do sucesso da Amil (empresa de planos de saúde), o proprietário disse: deu certo porque lidei a vida toda com a mão de obra barata, os médicos brasileiros. Bingo! O Dr. Camargo acertou no pulmão do dono da Amil, sem trocadilho!

Falo nesse tom desse grande médico para denunciar a era da técnica do Direito (Ge-stell). A Medicina também evoluiu tecnologicamente. E como evoluiu! E já se desumanizou. O Dr. Camargo é um combatente da resistência. Humildemente, alio-me a ele. Quero ser humano, demasiadamente humano.

É isso que tentei dizer nas duas Colunas sobre os perigos do processo eletrônico. É isso que queria que entendessem. Nada mais, nada menos. Se nos queixamos que no SUS o médico olha o paciente superficialmente e saca requisição de exames ou receita de qualquer psicotrópico, no Direito já de há muito estamos fazendo pior que no SUS. O Dr. Camargo também não é contra a tecnologia. Ao contrário. Também graças a ela é que ele é “o cara”. Mas avanço tecnológico não pode banalizar, trivializar, transformar os pacientes em números, em prontuários.

Se ensinamos para nossos alunos que o Direito é uma questão de “caso concreto”, por que razão não nos esforçamos para, usando a tecnologia, chegar mais próximo ao “caso concreto”? Por que usamos a tecnologia para nos afastarmos do “caso”? Se a tecnologia (no caso, o processo eletrônico) não servir para humanizar o Direito, então, para que serve? Esse é o busílis da questão. A técnica tem de nos servir e não nós servirmos à técnica. E nem ela deve nos desumanizar.

O “paciente concreto”
Em nome de uma realjuridik (em tempos de realpolitik), perdemos nossa capacidade de indignação. De que modo podemos ser críticos, se nossas teses sequer serão analisadas amiúde pelos tribunais? Como alguém pretende discutir uma causa a partir de uma tese, se, no futuro, haverá limitação de 10 laudas ou 12.000 caracteres? Estamos emburrecendo. Os livros estão ficando cada vez mais banais, standards, sem sofisticações. Trata-se de uma “michelteloização” da ciência jurídica. Nos aeroportos, além das publicações plastificadas próprias para uso em concursos públicos (são plastificadas para usar no banho?), encontram-se já “Direito Constitucional em Palavras Cruzadas”. Sim. “Meninos, eu vi”! Se você não entende por que os Juizados Especiais estão atravancados pelas companhias telefônicas e pelos bancos, a solução está à mão: Compre o livro chamado “Juizados Especiais em Palavras Cruzadas”. Algo como “Ofertas Casas Bahia”.

O que mais farão nossos “pastores” do Direito? Falta só começarem a fazer excursões ao Monte Sinai, para benzer os manuais e fazer a Fogueira Santa de Israel… Ou, antes dos concursos ou durante a aula dos cursinhos, os alunos receberão toalhas “benzidas”, como as que o Missionário Valdemiro oferece nos cultos de sua Igreja Mundial da Graça de Deus (é a Mundial e não a Internacional, porque essa é do R. R. Soares). Aleluia, irmãos!Contextualizo o que acabo de dizer (meu estagiário de plantão levanta uma placa explicando): o que o Colunista quer dizer é que de que adianta sermos high tech se a cada dia retrocedemos em termos de saber e sabedoria? É como se os médicos, com todo aparato tecnológico à disposição, operassem os pacientes sem um prévio exame de sangue e sem localizar, detidamente, o locus do tecido adoecido…

Sigo. Sobre o e-process. Indago: os juízes da República são técnicos que apenas examinam formalidades ou profissionais com formação humanística que conseguem perceber que “Direito é uma questão de caso concreto”? São questões que devem ser respondidas pelos adeptos da tecnicização em massa. Pelos neo-gestores. Insisto: juiz não é gestor! Ele julga! Ele deve ser como um compositor. Mesmo que, por vezes, a sinfonia fique inacabada… Mas deve tentar. Lembremos do que Dworkin fala sobre o processo como um romance em cadeia. Como já referi, a sentença não é um conto.

Nessa trilha, pergunto: como os adeptos do processo eletrônico e da estandardização (neo-gestão) dos processos analisariam o seguinte caso concreto, isto é, como fica(ria) uma decisão como a proferida no Recurso Cível 5003352502011.404.7111/2012, da lavra do TRF-4, que confirma sentença por seus próprios fundamentos, invocando o artigo 46 da Lei 9.099, combinado com o artigo 1º da Lei 10.259? Verbis: “Os fundamentos do acórdão, pois, são os mesmos da sentença, onde todas as alegações já foram analisadas.

O referido acórdão invoca também uma conhecida decisão do STJ no REsp 717.265/2007, segundo a qual “o magistrado, ao analisar o tema controvertido, não está obrigado a refutar todos os aspectos levantados pelas partes, mas tão somente aqueles que efetivamente sejam relevantes para o deslinde do tema”. Essa decisão gerou Embargos Declaratórios, que foram respondidos basicamente a partir da reprodução do teor do artigo 46 da Lei 9.099, verbis: o julgamento em segunda instância constará apenas da ata com a indicação suficiente do processo, fundamentação sucinta e parte dispositiva. Se a sentença for confirmada pelos próprios fundamentos, a súmula do julgamento servirá de acórdão. Como fundamentos retóricos, os embargos trazem a colação dois julgamentos do Supremo Tribunal, o AI-AgR 453.483 e o HC 86.533, em que o Supremo diz que a decisão que se remete aos fundamentos adotadas na sentença não viola o artigo 93, IX. O Supremo, para tanto, remete-se à Lei 9.099. Tautologicamente. Ou seja, é constitucional porque é legal e é legal porque é constitucional. Dizendo de outro modo: (O biscoito) “Tostines é fresquinho porque vende mais… e vende mais porque é fresquinho.” O “dilema Tostines” deixou de ser dilema, no Direito. Não há mais a interrogação. É tudo ao mesmo tempo.

E ponto! Fecha-se a cortina.

Pois é. Há vários questionamentos que devem ser feitos, que somente podem ser superados por argumentos de realjuridik. Ora, não parece adequado que uma lei ordinária possa se colocar frontalmente contra o dispositivo da Constituição que estabelece a obrigatoriedade de fundamentação amiúde de todas as decisões. Não me canso de lembrar que a Corte Europeia dos Direitos Humanos considera a fundamentação/justificação das decisões como um direito humano fundamental da decisão. Consequentemente, o dispositivo da Lei 9.099, assim como se encontra, jamais poderia ser considerado adequado ao disposto no artigo 93, IX, da Constituição. E por uma razão simples, que é uma questão republicana stritcto sensu: a garantia do devido processo legal e o direito ao tratamento equânime que todos têm. Ou isso, ou se pode(rá) entender que as causas dos Juizados são meias causas ou causas anãs.

Nos julgamentos do Supremo Tribunal que invocaram a lei para sustentar a não violação por parte dos acórdãos a quo do artigo 93, IX da Constituição, têm-se nitidamente uma perigosa interpretação da Constituição de acordo com a lei. Por isso, parece não restar dúvidas de que o artigo 46 da Lei 9.099 e o modo como ele vem sendo aplicado fere não somente de frente o sentido ôntico do artigo 93, IX, como também os princípios republicanos que informam e conformam um processo dentro do Estado Democrático de Direito. Ademais, deve-se consignar que o mesmo conteúdo observado no artigo 46 da Lei 9.099 reaparece no artigo 82, parágrafo 5º, do mesmo diploma legal. O artigo 82 aplica-se a procedimentos penais da alçada dos Juizados Especiais, sobre o que já me manifestei em outra oportunidade[2]. Na ocasião foi dito que, a única forma de se “salvar” o referido dispositivo de sua — patente — inconstitucionalidade, seria através de uma interpretação conforme a Constituição (verfassungskonforme Auslegung) que atribuísse ao dispositivo o seguinte sentido: “se a sentença for confirmada pelos próprios fundamentos, a súmula do julgamento servirá de acórdão, desde que sua aplicação seja devidamente fundamentada”.

Mas, como vivemos uma realpolitik e uma realjuridik, nada mais posso dizer, a não ser me consolar com as palavras do Dr. José Camargo, que mesmo depois de ter “julgado” (perdoem-me a analogia) tantos pacientes, ainda continua a apostar no “paciente concreto”. Aquele paciente. Sim, o indivíduo… aquele-que-não-pode-ser-dividido!

Uma metáfora sobre “neo-gestores”
Metáforas nos ajudam a entender o mundo. Li na internet e penso que encaixa como uma luva. Não há autoria certa (há vários — um deles chama Jorge Yamashita). A estória é a seguinte:

O chefe do Departamento de Reengenharia ganhou um convite do presidente da Empresa para assistir a uma apresentação da "Sinfonia Inacabada" de Franz Schubert, no Teatro Municipal. Como estava impossibilitado de comparecer, passou o convite para o seu gerente de Organização, Sistemas, Métodos e (Neo)Gestão e pediu que, depois, ele enviasse sua opinião sobre o concerto, porque ele iria almoçar com o presidente, no dia seguinte, e queria saber como havia sido a apresentação.

Na manhã seguinte, quase na hora do almoço, o chefe do Departamento recebeu, do seu gerente, o seguinte relatório:

1— Por um período considerável de tempo, os músicos com oboé não tinham o que fazer. Sua quantidade deveria ser reduzida e seu trabalho redistribuído pela orquestra, evitando esses picos de inatividade.

2 — Todos os doze violinos da primeira seção tocavam notas idênticas. Isso parece ser uma duplicidade desnecessária de esforços e o contingente nessa seção deveria ser drasticamente cortado. Se um alto volume de som fosse requerido, isso poderia ser obtido através de uso de amplificador.

3 — Muito esforço foi desenvolvido em tocar semi tons. Isso parece ser um preciosismo desnecessário e seria recomendável que as notas fossem executas no tom mais próximo. Se isso fosse feito, poder-se-ia utilizar estagiários em vez de profissionais.

4 — Não havia utilidade prática em repetir com os metais a mesma passagem já tocada pelas cordas. Se toda essa redundância fosse eliminada, o concerto poderia ser reduzido de duas horas para apenas 20 minutos.

5 — Enfim, sumarizando as observações anteriores, podemos concluir que: se o sr. Schubert tivesse dado um pouco de atenção aos pontos aqui levantados, talvez tivesse tido tempo de acabar a sua sinfonia.

6. — Resumindo: esse “tal” de Senhor Schubert — do qual, aliás, nunca ouvi falar — desperdiçava tempo e materiais. E era um imbecil. Um retrógrado. Um dissonauro.

Assinado: Gerente de Organização, Sistemas, Método e (Neo)Gestão (obs: a assinatura era eletrônica).

Eis a metáfora dos novos tempos. A estorinha é autoexplicativa. Nem precisaria ter escrito a Coluna.

Numa palavra final
Como se lê em Grande Sertão: Veredas — sim, esse livro de Guimarães Rosa, aquele autor que Pedro Bial certa vez equiparou ao Programa Big Brother ou vice-versa (e por isso vou estocar comida e construir um bunker):

“A água só é limpa nas cabeceiras… O mal ou o bem estão em quem faz. Não é no efeito que dão. O senhor ouvindo, me entende!”


[1] HEIDEGGER, Martin. Carta resposta a um professor japonês. In: STEIN, Ernildo. Uma Breve Introdução à Filosofia. Ijuí: Unijuí, 2005, p. 194.

[2] Cf. STRECK, Lenio Luiz; TOMAZ DE OLIVEIRA, Rafael. O que é isto – As garantias processuais penais? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, em especial o item 3.3.2.

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