Dívida pública

Os títulos do Tesouro Direto são imprescritíveis

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14 de janeiro de 2013, 14h26

No segundo semestre de 2012, Secretaria da Receita Federal, Secretaria do Tesouro Nacional, PGFN e Ministério Público da União publicaram em conjunto uma cartilha de “prevenção à fraude tributária com títulos públicos antigos”. O documento teve e tem a sua utilidade, mas em alguns aspectos produziu informação absolutamente temerária e errônea.

No sub-título “1.3.3 — Apólices emitidas em Francos Franceses — Acordo Brasil-França” a cartilha informa que“nas décadas de 1940 e 1950 foram firmados Acordos entre os Governos do Brasil e da França e a Associação Nacional dos Portadores de Valores Mobiliários da França, sobre os títulos brasileiros emitidos naquele país”.

E, ainda, que “o Governo brasileiro destinou recursos para formar um Fundo de Liquidação da dívida e o Governo Francês, por sua vez, se responsabilizou pela administração do fundo, instituindo o prazo de dois anos, a contar de 1946, para a realização dos referidos resgate; o prazo foi prorrogado até 1951 e, durante todo esse período, os portadores desses títulos foram convocados por meio de editais e avisos a comparecerem aos bancos para resgatarem seus títulos. Os títulos não apresentados para resgate perderam seu valor”.

A bem da verdade, todos os acordos “Brasil-França” citados na cartilha eram inconstitucionais e foram revogados pelo Decreto Legislativo 20, de 1962, que revogou o Decreto Legislativo 13, de 1959 que havia aprovado acordo de 1956.

Deve ser esclarecido e informado que este “acordo” de 1956 fora havido pelo não implemento dos “acordos” de 1940, 1946 e 1951, conforme leitura que pode ser feita na nota de abertura texto do “acordo” de 1956.

Esta informação também foi prestada ao Senado pelo próprio ministro Hermes, das Relações Exteriores, às vésperas da votação de revogação e declaração de inconstitucionalidade dos “acordos” consubstanciada na aprovação do Decreto Legislativo 20/1962.

Em 4 de maio de 1956, o embaixador brasileiro fez um “acordo” de pagamento por “troca de notas” com o cônsul francês, também participando a Association Nacionale des Porteus Français de Valeurs Mobiliéres, que foi aprovado pelo Senado através do Decreto Legislativo 13. de 1959, publicado no Diário Oficial da União no dia 7 de outubro de 1959.

O “acordo” tratou dos serviços e pagamento de 26 empréstimos da União, estados e municípios contraídos no período de 1888 a 1916 e também da Consolidação de 1931, todos relacionados no Anexo Único. O texto era quase uma finalização dos “acordos” de 1941, 1946 e 1951, não implementados. O decreto legislativo foi aprovado numa das últimas sessões de votação do Senado, ainda no Rio de Janeiro, então presidido por João Goulart.

Em 31 de janeiro de 1960, o deputado José Bonifácio apresentou o Projeto 36/1960 para revogação do “acordo”. Entre outras justificativas, havia o argumento de inconstitucionalidade, pelo fato de não ter sido realizado e nem assinado pelo presidente da República, a autoridade competente para acordos internacionais.

Os títulos que a “cartilha” denomina “francos-franceses” não foram emitidos só na França, mas também na Inglaterra, Bélgica, Países Baixos, Suíça, Bahia e Rio de Janeiro, praças de captação e pagamento.

Pela leitura das “trocas de notas” dos embaixadores do Brasil e da França, dos discursos de José Bonifácio no Parlamento e das justificativas lançadas no Projeto de revogação do “acordo de 1956”, a exclusão de cidadãos investidores anônimos no Brasil, Inglaterra, Bélgica, Suíça e Países Baixos, das colônias e outros países, foi proposital e inconstitucional e visava atender outros interesses.

Em 1962, às vésperas da votação para a revogação, o Congresso Nacional convocou o ministro Hermes Lima, das Relações Exteriores, para explicações sobre os “acordos”. O ministro esclarece que o “serviço dessa dívida sempre foi atendido de forma irregular e deficiente” e que os títulos da dívida externa relacionados no quadro do Anexo Único haviam, em parte, sido pagos.

O que chama a atenção no esclarecimento do ministro é o alerta ao Senado, pelo qual, a “revogação (…) colocaria o governo em situação sui generis, pois já executou, em parte, o Acordo. (…) Também teria o efeito de fazer com que títulos da União, estados e municípios, já prescritos a partir de 4 de maio de 1961, segundo as alíneas III e IV do artigo II do acordo, voltassem a ser válidos para cobrança”.

O argumento tinha por base o artigo 60 da Lei 4.069, de 11 de junho de 1962, sancionada por João Goulart, já como presidente da República, que previa prazo de cinco anos para reclamar o juro e o principal dos títulos não apresentados em cobrança à União.

Oito dias depois dos esclarecimentos do ministro, em 18 de dezembro de 1962, o Senado aprovou o citado Decreto Legislativo 20 de 1962, decretando a revogação do “acordo” de 1956 e a anulação dos pagamentos.

Os “editais e avisos” referidos na “cartilha” foram destinados exclusivamente aos cidadãos e instituições íntimos da Association Nacionale des Porteus Français de Valeurs Mobiliéres.

Possuidores ingleses, belgas, suíços, alemães, holandeses, brasileiros e de outras nacionalidades, operários europeus, cidadãos comuns das colônias e outros países que adquiriram os títulos esperando renda e segurança na velhice, foram excluídos do “acordo”, com a citada associação.

Quase todas as apólices, foram emitidas no idioma francês e inglês, constando promessa de pagamento em ouro, inclusive explicitando o valor em libras esterlinas (£) e o correspondente em franco-ouro (Fr).

A tese do Brasil de que os empréstimos foram tomados em “francos-franceses” (papel moeda) foi superada e sepultada pela sentença 15, de 1929 do Tribunal de Haia, que reconheceu a obrigação de pagamento em ouro, principal e juros, para os empréstimos de 1908, 1909 e 1910.

Por causa da sentença de Haia o correto é denominá-los “franco-ouro”, como consta do termo de ajuste de arbitramento firmado por Otávio Mangabeira em 1927.

Também, a bem da verdade, deve ser esclarecido que a informação impressa na “cartilha” é um resumo da divulgada no site do Tesouro Nacional (*), ao que tudo indica, estribada no Parecer PGFN/COF 1.652 de 1992 (clique aqui e aqui para ler o parecer), sobre consulta referente aos títulos “franco-franceses” emitidos em 1º de outubro de 1931 (Consolidation 40 ans).

A consulta foi da Diretoria da Dívida Pública e Mercado Aberto do Banco Central do Brasil — DIDIP/BACEN — em atenção à requisição do Banco do Brasil — Agência de Portugal —, que recebera solicitação do cidadão José de Oliveira Duarte, residente em Portugal, quanto à validade de um título do referido empréstimo.

Conforme se pode ler do seu inteiro, o parecer sonegou e omitiu ao referido cidadão o conhecimento do fato de que o título sob consulta (União Funding 40 anos 1931), em verdade, também estava no quadro dos empréstimos para pagamento do Anexo Único do “acordo” de 1956, que fora revogado pelo Decreto Legislativo 20/62.

Mesmo considerando a hipótese de que a PGFN em 1992 não tivesse conhecimento do conturbado histórico de publicação do texto do Decreto Legislativo 20 de 1962, vê-se uma perfeita antinomia entre o raciocínio lógico-jurídico desenvolvido na fundamentação e a conclusão constante do item 19 do citado parecer.

Isto porque o parecer reconhece que os acordos por “troca de notas” de 1946 e o de 1951 contrariaram as Constituições de 1937 e 1946, chegando inclusive a reproduzir parte de parecer da Procuradoria-Geral da República, datado de 1948, que concluiu por inconstitucionais e inexistentes os efeitos de tais acordos.

Com todo e máximo respeito, as informações prestadas no site do Tesouro Nacional e reproduzidas na cartilha, são deformadas, desvirtuadas, induzem o cidadão comum a erro, frustram e impedem o pleno exercício de direitos, de cidadania. Fato que merece ser urgentemente modificado, posto que incompatível com o Estado Democrático de Direito.

É vigente e pleno o direito dos atuais portadores brasileiros ou estrangeiros de haverem o crédito dos títulos dos empréstimos relacionadas no Anexo Único do “acordo” de 1956, conforme a jurisprudência do Tribunal de Haia e a promessa de pagamento impressa na face das próprias cártulas, principal e juros em ouro.

O Decreto 20 de 1962, por outros motivos que não os deduzidos pelo ministro Hermes Lima, teve o “efeito de fazer com que títulos da União, estados e municípios” relacionados no “acordo” de 1956 “voltassem a ser válidos para cobrança”.

A internet, esta maravilha da democracia do acesso ao conhecimento, que tem o poder de fundir passado e projeção de futuro num átimo de presente, transformou o mundo numa aldeiazinha, numa cidadezinha onde qualquer cidadão pode desvelar fatos e personalidades.

A perplexidade jurídica e legislativa que envolve o direito dos cidadãos portadores ao resgate dos créditos representados pelos títulos franco-ouro dos “acordos” “Brasil-França” é a perfeita hipótese de comunhão entre presente e passado resgatado pelo saque do inominável contra o futuro.

Será dos pesquisadores e historiadores a conclusão se este saque foi ou não perpetrado com o deliberado propósito de enganar, viciar, ludibriar, soterrar e tornar inerte e induzir ao erro de vontade e consentimento gerações de cidadãos brasileiros e estrangeiros, cidadãos comuns, crédulos investidores no Brasil de 100 anos atrás, pulverizados mundo afora.

Pelo histórico aqui feito, no entanto, vê-se que comete erro histórico e jurídico inominável e peca contra o bom senso, quem diz que os títulos “francos-franceses” estão “prescritos por inércia dos credores.

O Estado brasileiro quando contraiu os empréstimos com a promessa de amortizações e pagamentos de principal e juros com prazo de 20, 30, 40, 60, 80, 100, 200 anos, não o fez ao cidadão indivíduo, mas ao cidadão, enquanto geração, que não falece e é perpétua como o Estado. Empréstimos nestes prazos na são tomados a indivíduos, são tomados a gerações, são perpétuos, imprescritíveis.

A tese da imprescritibilidade do empréstimo tomado pelo Estado do cidadão, não toca somente aos portadores dos títulos “franco-ouro”, mas fundamentalmente à atual geração de cidadãos investidores dos títulos de longo prazo oferecidos pelo Estado brasileiro. E considerando a velocidade com que o mundo hoje caminha, a questão deve interessar também aos investidores de curto e médio prazo do Tesouro Direto.

Na hipótese de guerra, catástrofe, revoluções internas, crash internacional, qual o prazo de prescrição do direito de reclamar o crédito advindo atraso, deficiência ou inadimplência no pagamento por parte do Tesouro Nacional?

Como é a contagem do prazo para a cobrança judicial dos juros vencidos, da parcela não amortizada do capital e do capital integral?

Em caso de atraso, irregularidade ou moratória decretada pelo Estado brasileiro o crédito dos títulos emitidos pelo Tesouro Nacional pode ser utilizado em pagamento de tributos vencidos ou vincendos, transferidos a terceiros, dado em pagamento de dívidas junto ao sistema bancário, quitação de hipotecas, sub-rogação de dívidas, substituição de garantias, pagamento de fianças?

Estas são algumas perguntas que a atual geração investidora poderá fazer e o Tesouro Nacional deverá responder.

A história dos títulos “franco-ouro” revela que o prazo de pagamento das amortizações, juros e principal foi prejudicado por duas guerras mundiais, pelo crash mundial de 1929, por duas “revoluções” internas no Brasil que somaram quase 40 anos de ditaduras de poderes e agentes historicamente antagônicos, algumas dezenas de moratórias unilaterais e “acordos” ilegais.

Há o risco de decepção do investidor se o Tesouro Nacional responder que o prazo de prescrição é aquele que PGFN tem adotado para defender a União contra o pagamento dos títulos do início do século passado.

O prazo utilizado por Getúlio Vargas no Decreto 20.910/1932, para impedir que o dinheiro das apólices nas mãos da República Velha exilada na Europa viesse a financiar levante contra a sua ditadura, o mesmo do artigo 60, da Lei 4.069/1962, sancionado por João Goulart e utilizado pelo ministro Hermes Lima para tentar convencer ao Senado sobre os efeitos da revogação do “acordo” de 1956.

Com exceção do período da ditadura Vargas, a memória histórica, doutrinária e legal havida desde o Brasil Império sempre foi pela imprescritibilidade do título público, posto que instrumento de captação da poupança popular.

O site do Tesouro Direto é um local de publicidade, captação e investimento seguro da poupança popular. É um instrumento de popularização, democratização e incentivo do cidadão à poupança e ao investimento nos títulos do Tesouro Nacional.

A ação para reclamar os créditos dos depósitos das poupanças populares é imprescritível (STJ, REsp. 710471/SC, 2004/0177281-3).

Ora, não é nada razoável que o crédito da poupança do cidadão captada pelo sistema financeiro possa gozar de imprescritibilidade e a poupança do cidadão investida em títulos do Tesouro Nacional através do Tesouro Direito não goze do mesmo direito.

Com todo e máximo respeito, o Tesouro Nacional, a PGFN, AGU e o MPU, devem rever posição e colaborar no realinhamento da legislação pertinente à imprescritibilidade dos créditos oriundos dos investimentos nos títulos da dívida pública brasileira.

Difícil convencer a geração atual a investir em títulos de médio e longo prazo oferecidos pelo Tesouro Direto, com a história do resgate dos títulos “franco-ouro” na memória e o texto do Decreto Lei 20.910/1932 ou do artigo 60, da Lei 4.069/1962, como resposta às interrogações acima.

Os documentos vistos neste artigo são de acesso público e cópia ao cidadão.

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