Justiça Tributária

Autuações fantasiosas anunciam carnaval tributário

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

14 de janeiro de 2013, 7h00

Spacca
Notícia com repercussão internacional informa que grande empresa de mineração sofreu em dezembro último dois autos de infração, aplicados pela Receita Federal, que somam R$ 3,8 bilhões, cerca de 90% do valor de mercado da empresa. Os lançamentos seriam referentes a tributação e encargos sobre supostos ganhos de capital ocorridos em 2007. 

Outras três grandes empresas também teriam sido autuadas em valores gigantescos e divulgou-se que todos os lançamentos ultrapassam R$ 6 bilhões e, segundo fontes da Receita, “fazem parte de uma ação rotineira de fiscalização”. 

Não será surpresa se esses autos todos forem declarados improcedentes já na fase administrativa. São muito comuns essas atividades fazendárias que produzem muito barulho, chegam a assustar e afastar investidores num primeiro momento, causam preocupações aos dirigentes das empresas envolvidas, mas, no final, deixam de produzir a arrecadação que no início se imaginava.

Temos pregado ao longo do tempo a necessidade de lutarmos por uma verdadeira Justiça Tributária, situação que depende de três objetivos fundamentais: 1) redução da carga tributária; 2) simplificação da burocracia; e 3) segurança jurídica. Nada disso parece que vai ser obtido a curto prazo.

Esse último item — segurança jurídica — passa primeiramente pela necessidade de obtermos uma legislação orientada pelos fundamentos constitucionais em vigor. Sem um instrumental legislativo eficiente, ficamos sujeitos a nos enredar num cipoal de normas confusas, conflitantes, cuja interpretação fica a depender de subjetivismos que não garantem direitos, mas abrem espaço para diversos crimes, o mais óbvio a corrupção.

Vimos que no penúltimo dia de dezembro a Lei 12.767 , a pretexto de converter uma Medida Provisória que cuidava de assuntos relacionados com energia elétrica, simplesmente ignorou a Lei Complementar 95/98, alterando outra lei, com o propósito de tornar legal o protesto de dívidas antigas.

Em síntese: se para converter uma MP em lei o governo comete a insanidade de ignorar uma LC, podemos concluir que legislar no Brasil se tornou uma atividade sem qualquer controle. Talvez imaginem os legisladores deste país que podem introduzir no nosso sistema medidas que ignoram o sistema jurídico que eles mesmos aprovaram. Esquecem-se que existe um Judiciário capaz de declarar sem valor a norma que não vale nada. 

Mesmo que as empresas autuadas consigam derrubar tais lançamentos (pelo menos uma delas afirmou que tem certeza disso), a simples notícia já causou prejuízos, na melhor das hipóteses, para muitos investidores do mercado de capitais. 

Já mencionei aqui um caso emblemático de empresa importadora de veículos que por volta de 1995 sofreu autuação de mais de US$ 300 milhões por suposto subfaturamento nas importações. Ela contratou um advogado que fez a impugnação (defesa) administrativa e na primeira instância foi declarada a improcedência do auto, tendo a Receita Federal reconhecido que não havia irregularidade alguma.

Os auditores do fisco fizeram naquele ano várias autuações totalmente equivocadas, algumas na área de veículos, outras em indústrias de médio porte onde, invariavelmente, alegava-se subfaturamento. A fragilidade ou inexistência de provas mostrava uma imperícia que em nenhum momento condizia com o nível técnico dos auditores, o que levou alguns especialistas a vislumbrar que as autuações destinavam-se apenas a proteger o interesse de alguém cujo cargo estivesse sendo questionado. 

A decisão demorou 2 anos e, nesse tempo, a empresa teve seu nome divulgado por servidores públicos que até deram entrevistas, afirmando que seus donos seriam presos e seus bens bloqueados! A empresa fechou as portas e demitiu cerca de mil funcionários.  Os servidores, que fizeram um auto errado, que mentiram ao público, que ignoraram qualquer regra ética, foram promovidos e depois se aposentaram. 

O processo administrativo  é um ótimo negócio para o fisco, pois, quando o contribuinte consegue resultado positivo nessa instância, não há custas nem honorários que devam ser pagos ao contribuinte. Este é vítima do erro do fisco e tem que pagar por isso!

No principal desses casos autuais, há outra questão pelo menos curiosa: se os fatos objeto de tributação são de 2007 e os autos só ocorreram no final de 2012, tudo indica que as autoridades fazendárias foram exageradamente lentas em diagnosticar as supostas irregularidades e, pior ainda, possivelmente ultrapassaram os prazos legais para encerramento da fiscalização. O Código Tributário Nacional, no artigo 196, determina que o procedimento fiscal deve ter um prazo de encerramento fixado. Nenhuma empresa pode permanecer durante vários anos sob fiscalização. 

A Lei 9784/99 estabelece as regras que o processo tributário administrativo deve obedecer. Em síntese, são os mesmos previstos no artigo 37 da CF como normas gerais do poder público: legalidade, impessoalidade, moralidade, eficiência, razoabilidade, etc. Claro está que não existe eficiência alguma se uma sociedade anônima de capital aberto que apresenta e publica regularmente seus balanços e demonstrativos contábeis, só venha a ser fiscalizada anos depois, a ponto de ser autuada pouco tempo antes de esgotado o prazo decadencial.

Muitas vezes a sociedade reclama por mudanças na legislação em vigor ou a criação de uma nova lei que seja a solução final para todos os nossos males. Na verdade, já temos leis demais. Precisamos, tão somente, que elas sejam cumpridas, obedecidas e cumpram a  finalidade para a qual foram feitas. Não adianta termos boas leis (e já temos) se elas puderem ser alteradas sem qualquer justificativa, sem qualquer debate, e, pior ainda, vier a mudança escondida no fundo de outra lei que nada em a ver com o assunto. 

Todos os cidadãos e contribuintes temos o dever de cumprir as leis e quando não procedemos dessa forma sujeitamo-nos a penalidades que vão desde graves prejuízos financeiros até mesmo à perda da liberdade.

Mas, infelizmente, não existe a aplicação da lei com o mesmo rigor quando os erros são cometidos por servidores públicos. Em quase quatro décadas de advocacia não sei de nenhum caso de servidor que tenha sido condenado ou mesmo processado por crime de excesso de exação e nem mesmo por abuso de autoridade. 

Um caso extremamente comum de desobediência à lei por parte da Receita Federal é a procrastinação das suas decisões. Nós, contribuintes, temos prazo para tudo e estamos sujeitos a pesadas multas quando não os cumprimos. 

A Lei 11.457 de 16/03/2007 diz em seu artigo 24 que: “É obrigatório que seja proferida decisão administrativa no prazo máximo de 360 (trezentos e sessenta) dias a contar do protocolo de petições, defesas ou recursos administrativos do contribuinte”.

Há inúmeros casos de contribuintes que foram autuados por supostas irregularidades na declaração de imposto de renda (pessoa física) quando teriam feito deduções irregulares. Esses contribuintes tinham importâncias expressivas a receber a título de restituição, mas sem fundamento algum, suas deduções foram desconsideradas. Foram, em síntese, vítimas de uma gatunagem fazendária.

Vários desses contribuintes apresentaram impugnação, juntando comprovantes de que suas deduções eram legítimas, mas há casos que há mais de dois anos aguardam julgamento.

Um desses contribuintes foi reclamar na repartição e ouviu como resposta que há um prazo de até cinco anos para examinar o caso! Isso não é verdade, pois o prazo de cinco anos que existe é para a cobrança do tributo devido. Para decidir sobre a defesa, diz a lei que é de um ano!

Poderia e deveria o contribuinte ingressar com a medida judicial para exigir o cumprimento da lei. Mas, infelizmente, pode ele ter razões suficientes para ter receio do enfrentamento. Uma dessas razões é que não existe certeza sobre o resultado do possível processo, onde haverá custas e honorários de advogado. Outra, é ter como resultado uma demora maior ainda como uma espécie de retaliação. Afinal, os servidores públicos mesmo que errem são protegidos pela estabilidade dos seus empregos.

No caso dos autos que tanta repercussão tiveram, consta que a origem das exigências estaria em planejamento tributário não aceito como legítimo. Já ouvimos que tais operações (planejamento) existem no mundo todo, mas podem ser interpretadas como ilegais. Não é raro (felizmente para os advogados) que o fisco faça interpretações erradas.

Planejamento tributário só é ilegal se contraria norma expressa de lei. Ninguém é obrigado a pagar imposto que legalmente possa ser afastado da incidência. Aliás, é dever do empresário pagar o mínimo possível de tributo. Quem afirma o contrário não tem formação jurídica. Se tivesse veria que somente é ilegal o que a lei proíbe. Melhor ainda: a Constituição garante no inciso II do artigo 5º que só não se pode fazer o que a lei expressamente proibir. Tal norma não dependente de interpretação e é cláusula pétrea.

Tudo indica que essas autuações foram feitas de afogadilho, no apagar das luzes do ano passado, apenas com a finalidade de criar factóides capazes de ter ampla repercussão.  Os autos não vão servir para muita coisa, a não ser reduzir um pouco o valor  das ações das empresas, causar alguma chateação a seus dirigentes e, o melhor de tudo, gerar receitas para escritórios de advogados. 

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  • é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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