Desvio de finalidade

Protesto de CDAs revela falta de cuidado do Congresso

Autor

  • Milton Augusto de Brito Nobre

    é desembargador decano do TJ-PA; Membro do Conselho Nacional de Justiça (biênio 2009/2011) Presidente do Colégio Permanente de Presidentes dos Tribunais de Justiça do Brasil (Biênio 2013/2015) Professor Emérito da Universidade da Amazônia (UNAMA) e Professor Associado da UFPA.

11 de janeiro de 2013, 13h45

No ano de 2010, após ter adotado posição no plenário do CNJ contra a legalidade, conforme o ordenamento então em vigor, do Protesto de Certidões de Dívida Ativa e de sentenças judiciais, transitadas em julgado, dispondo sobre o pagamento de prestações pecuniárias líquidas relativas a créditos trabalhistas ou alimentares, publiquei, na Revista do Ministério Público do Estado do Pará[1], um longo artigo com o rótulo: "Protesto de CDAs: mutação ou deformação no protesto de títulos".

Prevendo que as investidas dos interessados na introdução no nosso ordenamento de mais esta aberração jurídica terminariam levando a consagrá-la em texto de lei fiz, dentre as minhas considerações derradeiras, as seguintes observações cuja atualidade permite-me aqui reproduzir:

Anoto que, não obstante os bons propósitos que podem mover os defensores da validade do protesto das CDAs, como meio de receber o montante elevadíssimo de dívida ativa não paga de fato existente no Brasil, e mesmo o protesto de sentenças transitadas em julgado que versem sobre o pagamento, em especial de dívidas líquidas de natureza alimentar ou trabalhista, no meu modo de ver, essas práticas, ainda que possam vir a ser consagradas em lei, o que não duvido possa acontecer com a atual relativização dos conceitos jurídicos e o predomínio de um conhecimento norteado pelo pragmatismo, ao mesmo tempo tão imediatista quanto pouco responsável, serão sempre destituídas de fundamento ético que as legitime juridicamente, uma vez que desfavorecem o equilíbrio entre as partes com riscos de prejuízo para os notoriamente mais fracos, ou sejam, no caso das CDAs, os contribuintes e, no daquelas sentenças, o alimentante ou o trabalhador, pois na hipótese destas, como antes sublinhado, sendo o apontamento feito sob responsabilidade destes, poderão vir a pagar as despesas cartoriais e até a responder por dano.

Daí para cá, certamente não tardou muito. E agora, para autorizar o protesto de CDAs, temos lei ou melhor esse “primor” de produto legislativo que é o artigo 25 da recente Lei 12.767, de 28.12.2012, editado para introduzir no artigo 1º da Lei 9.242, de 1997, um parágrafo único dispondo que “incluem-se entre os títulos sujeitos a protesto as certidões de dívida ativa da União, dos estados, do Distrito Federal, dos municípios e das respectivas autarquias e fundações públicas”.

A inconstitucionalidade desse dispositivo, porém, que espero venha a ser questionada brevemente perante o Supremo Tribunal Federal[2], não demanda grande esforço para ser demonstrada.

Com efeito, além dos dois motivos apontados por Raul Haidar, em minuciosa e oportuna crítica publicada sob o título "Contribuinte deve protestar, e não ser protestado", na revista Consultor Jurídico do dia 7 passado (clique aqui para ler), para batizar essa inovação de fraude legislativa — ou seja, por tratar de matéria estranha ao objeto da lei em que foi embutida e sem qualquer vinculação com este por afinidade, pertinência ou conexão, em franca contrariedade ao disposto no artigo 7º, inciso II, da Lei Complementar 95 de 26.02.1998, e versar assunto que não apresenta nem relevância e nem urgência, de modo a poder figurar em uma lei de conversão de Medida Provisória (como é o caso da que abrigou essa mal nascida deixa legal), conforme condiciona o artigo 62 da Constituição da República o protesto de CDAs, sendo desnecessário à realização da cobrança de dívidas para com a Fazenda Pública, bem ainda dele decorrendo a inclusão do nome do devedor em cadastros de inadimplentes que acarretam graves restrições creditícias, importando, na prática, em inviabilizar o exercício do direito de exercer atividade econômica, sem nenhuma possibilidade de defesa prévia efetiva pelo prejudicado, configura-se, claramente, como sanção indireta ou "sanção política".

Isso porque objetiva exclusivamente coagir ao pagamento do que o erário, em regra de modo unilateral, entende que lhe é devido, prática que tem sido repudiada pela Corte Suprema, como serve de exemplo o precedente firmado no RE 402.769/RS (Rel. Min. Celso de Mello)[3], cuja ementa, por revelar integralmente a razão de decidir, merece ser reproduzida:

SANÇÕES POLÍTICAS NO DIREITO TRIBUTÁRIO. INADMISSIBILIDADE DA UTILIZAÇÃO, PELO PODER PÚBLICO, DE MEIOS MAIS GRAVOSOS E INDIRETOS DE COERÇÃO ESTADTAL DESTINADOS ACOMPELIR O CONTRIBUINTE INADIMPLENTE A PAGAR O TRIBUTO (SÚMULAS 70, 323 E 547 DO STF). RESTRIÇÕES ESTATAIS QUE TRANSGRIDEM OS POSTULADOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE EM SENTIDO ESTRITO, CULMINAM POR INVIABILIZAR, SEM JUSTO FUNDAMENTO, O EXERCÍCIO, PELO SUJEITO PASSIVO DA OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA, DE ATIVIDADE ECONÔMICA OU PROFISSIONAL LÍCITA.

Note-se, ademais, que o protesto das CDAs revela, mais uma vez, a falta de cuidado técnico com que o Congresso Nacional vem exercendo a sua principal função, uma vez que a inutilidade dessa formalidade cartorial, salvo para constranger abusivamente os contribuintes, também é notória por, pelo menos, mais três razões.

A primeira, porque sendo o protesto, pela própria definição contida na cabeça do artigo 1º da Lei 9.242, de 1997, o ato formal e solene pelo qual se prova a inadimplência e o descumprimento de obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida, apresenta-se totalmente desnecessário no caso das CDAs, uma vez que estas já constituem prova formal e solene do inadimplemento de obrigações pecuniárias vencidas, tributárias ou não tributárias, devidas ao erário.

A segunda, porque o protesto, em especial o tecnicamente chamado de facultativo, por não ter como finalidade assegurar direito de regresso ou guarnecer pedido de falência, visa garantir a publicidade do descumprimento de uma obrigação constituída entre particulares, no plano de típicas relações jurídicas privadas ou de coordenação, vale dizer, convoladas por livre vontade e interesse das partes, pelo que se afigura absolutamente dispensável para cobrança das CDAs, pois são títulos públicos, incorporadores de obrigações tributárias ou não tributárias vencidas e não pagas, sendo as primeiras. Isto é, as tributárias, que constituem sua parte numericamente mais significativa, resultantes de relações essencialmente públicas, tipicamente de imposição, uma vez que independem e até não raro contrariam a vontade de uma das partes (a dos contribuintes).

E, finalmente, a terceira porque o protesto das CDAs, sendo inútil como prova do inadimplemento de dívida para com a Fazenda Pública e desnecessário com a finalidade de assegurar a publicidade desse fato, salta aos olhos que legalizar a pretensão de tirá-lo objetiva unicamente constranger o devedor-contribuinte a pagar, sem qualquer possibilidade de discussão, a dívida certificada, de modo a evitar sua inscrição nos diversos cadastros de inadimplentes (Serasa, SPC, etc.) com as graves restrições negociais, sobretudo, creditícias que daí decorrem, tudo isso com se não bastassem aquelas que já decorrem da inclusão automática no Cadin como acontece no caso de dívidas com o Fisco Federal[4].

Por outro lado, esse desvio de finalidade do protesto para transformá-lo em mais um meio de cobrança das CDAs, além do que já assegura a Lei 6.830, de 22.09.1980, alterada pelas Leis 11.051 de 2004 e 11.960 de 2009, não será eficiente para garantir uma redução significativa no número das execuções judiciais desses títulos públicos, pois ao contrário do que pensam os defensores de tão abusivo exercício do direito de credor da Fazenda Pública, o seu apontamento vai desencadear uma intensa chuva de medidas cautelares de sustação do protesto, cumuladas ou não com ações anulatórias, ações de cancelamento ou, ainda, de responsabilização do Estado por dano[5].

Não creio que seja necessário recorrer as lições de Habermas, para demonstrar que o direito está vinculado à moral através do componente de legitimidade da validez jurídica e que "não pode existir direito autônomo sem a realização da democracia"[6], pois essa compreensão hoje é, pelo menos no nosso país, francamente majoritária. É preciso, portanto, que continuemos a protestar contra esse novo protesto, criado a partir das ideias de que os fins justificam os meios e que, em nome de um certo interesse público, pode o Leviatã editar leis que promovem desvios na finalidade de institutos jurídicos centenários e armar-se, ainda mais, para constranger o contribuinte.


[1] Revista do Ministério Público do Estado do Pará. Belém: Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional, ano 5, vol.1, 2010, p. 145

[2] Essa expectativa tem como base o fato de que o Conselho Federal da OAB ingressou na Justiça Federal com o propósito, aliás bem sucedido na 13ª Vara Federal do DF, de anular a Portaria Interministerial nº 574-A de 2010 que regulou o Protesto de CDAs da União.

[3] DJ de 06.04.2005.

[4] Conforme dispõe o §4º do art. 2º da lei nº 10.552 de 2002, com a redação dada pela lei nº 11.941 de 2009 no que se refere a esses créditos, porém os Estados e Municípios têm regras semelhantes.

[5] Embora existam alguns precedentes do STJ, concluindo pela improcedência dessas ações, quando buscam indenização por dano moral, não creio que isso venha a se consolidar em definitivo e em geral, até porque a aferição judicial da ocorrência dessa espécie de dano é extremamente suscetível de variação caso a caso.

[6] Jürgen Habermas. Law and morality – two lectures, in The Tanner Lectures VIII. Salk Lake City: University of Utah Press, 1987, 279 (trad. livre).

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    é desembargador, ex-presidente do Tribunal de Justiça do Pará, professor Emérito da Universidade da Amazônia e associado I da UFPA, integrante do Conselho Nacional de Justiça no biênio 2009/2011.

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