Desestímulo à litigiosidade

Estado de Direito exige estabilidade da jurisprudência

Autor

  • Wadih Damous

    é advogado mestre em Direito Constitucional e Teoria do Estado PUC-RJ. Presidente da OAB-RJ (2007/12). Deputado federal pelo PT-RJ (2015/18).

10 de janeiro de 2013, 13h14

A morosidade do Poder Judiciário é tema sempre em voga, objeto de preocupação permanente daqueles que se dedicam a pensar a melhoria da prestação Jurisdicional. A cada ano, o Conselho Nacional de Justiça divulga estudo denominado “Justiça em Números”, por meio do qual se percebe que os problemas da Justiça estão longe de serem solucionados. Em alguns aspectos, vêm até mesmo se agravando.

A doutrina do Processo Civil, tanto brasileira quanto estrangeira, já se debruça sobre o tema há algumas décadas. Há várias linhas de pensamento que procuram identificar as causas e propor soluções para a morosidade judicial. Todas elas, em certa medida, traduzem possibilidades razoáveis, mas nem todas, infelizmente, são aplicadas na prática.

Como exemplo, tem-se a linha de pensamento que identifica percentual elevado de recursos interpostos pela própria administração pública, os quais, a depender do tribunal, superam em muito o percentual de recursos interpostos por litigantes privados. A solução para esse problema é relativamente simples: criar, por força de lei, critérios e hipóteses claras em que o advogado público está dispensado de recorrer. É notório que, na prática, é mais fácil e seguro para o advogado público interpor um recurso do que percorrer o árduo e arriscado — por conta da fluência inexorável do prazo processual— procedimento para obter a respectiva dispensa do chefe do órgão a que pertence. Há projeto de lei nesse sentido que, no entanto, está há tempos abandonado nos escaninhos do Congresso.

Outra linha de pensamento procura identificar na estrutura material do Poder Judiciário a causa maior de sua crise. O problema dessa ideia é que ela tende a desembocar em um círculo vicioso. Quando aumenta a eficiência do Poder Judiciário, a demanda por esse meio de solução de conflitos tende a aumentar, congestionando novamente suas engrenagens.

A reforma da lei processual, tendente a criar instrumentos mais eficazes e procedimentos mais simples, reduzindo o formalismo exacerbado e desburocratizando o processo, é também uma linha importante, mas que, por óbvio, não resolve todos os problemas. As reformas processuais efetivadas nos últimos anos, que deverão culminar com a edição do Novo Código de Processo Civil, ora em tramitação na Câmara dos Deputados, são importantes, mas não se pode depositar nelas todas as fichas para a melhoria da Justiça.

A utilização dos meios alternativos (ou adequados, como preferem os especialistas) de solução de conflitos, tais como a arbitragem e a mediação, têm valor intrínseco inegável na promoção de soluções justas e adequadas, mas não servem à diminuição da carga de processos do Poder Judiciário, ao menos não de forma significativa. E isso ocorre por duas razões principais: o custo financeiro e a inadequação de tais meios para diversas espécies de conflitos.

Parece-me que a solução mais eficaz que vem sendo propugnada pela doutrina, mas que encontra pouco respaldo prático, passa antes pela mudança de mentalidade dos julgadores. É muito arraigada na cultura jurídica brasileira a ideia de liberdade de convicção do julgador, como característica e prerrogativa inerente à função judicante. É claro que a liberdade do magistrado para julgar de acordo com a sua convicção é um valor importante, especialmente durante e na transição do regime autoritário que o Brasil atravessou. No entanto, em um período de democracia estável, ela deve ser bem compreendida, sob pena de se tornar um entrave à prestação jurisdicional efetiva.

É evidente que o juiz deve decidir livre de pressões políticas ou hierárquicas, estas quando motivadas por interesses pessoais, por exemplo. Mas a insistência de alguns magistrados, e até mesmo de tribunais, de decidirem de forma oposta à jurisprudência dominante, ou até mesmo pacífica, dos Tribunais Superiores, configura interpretação distorcida e deletéria da liberdade de convicção.

O respeito à jurisprudência dos Tribunais Superiores é essencial para prestigiar a segurança jurídica, valor especialmente importante no Brasil atual. Nesse caso, também a efetividade (normalmente contraposta à segurança jurídica) é prestigiada, já que, por razões, óbvias, o estímulo para recorrer de uma decisão é muito maior quando ela está em desacordo com a Jurisprudência dos órgãos que a revisarão.

Há, no entanto, uma condição importante para que o cenário acima descrito seja viável: a estabilidade da jurisprudência dos próprios Tribunais Superiores. O Superior Tribunal de Justiça, talvez, seja o maior exemplo de que se está aqui dizendo. Eleja-se qualquer questão jurídica, e provavelmente será possível encontrar decisões do STJ nos mais diversos sentidos, seja em órgãos fracionários distintos, seja em um único órgão, a depender da época ou de mudanças eventuais ou definitivas de composição. É evidente que, para seguir a jurisprudência dos Tribunais Superiores, há de se saber o que diz essa jurisprudência, com um mínimo de segurança.

As duas linhas, portanto, devem caminhar em conjunto. Os magistrados dos Tribunais Superiores devem compreender que são apenas uma peça de uma engrenagem mais complexa, e que não devem, em todos os casos e a qualquer custo, decidir de acordo com sua convicção pessoal, permitindo que os entendimentos flutuem ao sabor de condições eventuais, bem como mudando de opinião com certa frequência.

Uma vez estabilizada a jurisprudência dos Tribunais Superiores, os órgãos inferiores terão parâmetros seguros para se guiarem. Os cidadãos, por sua vez, orientados por seus advogados, conhecerão com maior segurança, de antemão, os posicionamentos do Poder Judiciário, podendo planejar suas condutas e decidir, por exemplo, não submeter um conflito a ele, sabedores da pouca chance de êxito. Hoje, a profusão de entendimentos conflitantes que emergem do Poder Judiciário sobre uma mesma questão estimula a litigiosidade, pois dá sempre a esperança do êxito ao litigante, seja qual for sua pretensão.

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