Direito & Mídia

O pesadelo da pedofilia e o cordeiro sem Deus

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9 de janeiro de 2013, 7h00

Spacca
Caricatura: Carlos Costa - Jornalista [Spacca]Alguns costumes de infância nos acompanham ao longo da vida. Ouvir noticiário de rádio, no caso, é um deles — embora nascido pouco antes da chegada da TV, só fui ver a “caixa de imagens” quando terminava a adolescência. Foi assim que ouvi semanas atrás, a prestação de contas do presidente da Câmara dos Deputados sobre o ano legislativo — algo oportuno num momento de maré extremamente baixa para a classe política, com seu índice de confiabilidade caindo a níveis “nunca antes vistos na história desse país”, parafraseando o bordão lulista.

O fato é que, além de previsíveis gabolices — como afirmar que o Congresso brasileiro é mais operante que o norte-americano ou o de muitos países europeus, pela quantidade de leis apreciadas e votadas, pois se sabe que quantidade não traduz necessariamente qualidade —, o fato é que muitas das medidas somam pontos a favor do Legislativo. Entre elas, o arrocho na “lei seca”, que patina e demora em emplacar; e o aumento da pena para o crime de pedofilia.

Para muitos a própria palavra soa incômoda, como se esse assunto fosse mais um daqueles a serem escondidos sob o tapete. “De eso no se habla”, não se fala nisso, como no filme de mesmo nome da diretora argentina María Luisa Bemberg, protagonizado por um ainda maduro Marcelo Mastroianni. Na película, de 1993, a filha da abastada estancieira Leonor é uma anã, mas todos se comportam como se nada ocorresse, na atitude de avestruz de esconder os olhos para não tomar conhecimento das rugosidades do empírico — admito que nunca vi uma avestruz afundando o pescoço no buraco, mas é o que se diz.

No início deste mês, em Viçosa (MG), participei de um jantar em que alguns amigos, Lea, Fabio, Adriana, João, Quick e Geraldo, celebravam os vinte anos de um programa de vanguarda, o Fanzine, que fez muito sucesso na emissora de TV da universidade federal ali instalada. Num momento da conversa, uma das comensais comentou o escândalo de um querido personagem da cidade, preso por envolvimento com crianças — todas mediando os 6 anos, idade em que o personagem talvez sofrera problema semelhante, tendo ficado alguns dias desaparecido —, isso mais de quatro décadas atrás.

Percebi o quanto esse tema incomoda, pois não há “traços característicos” na anomalia. Na volta, numa dessas coincidências, recebi uma mensagem de um brilhante delegado da Polícia Federal que conheci ao realizar, para a extinta revista Getulio, um debate sobre a espetacularização da mídia nos casos da esfera do Direito Criminal ou Penal. O doutor Edson Fábio Garutti Moreira era o delegado representando a Polícia Federal na tertúlia, e se saiu muito bem naquele encontro mediado pela professora Flavia Rahal, com presenças luminares como a dos ilustres advogados Arnaldo Malheiros Filho, Luís Francisco Carvalho, a juíza Carolina Rossi e o promotor Alexandre Pereira.

Troquei outras mensagens com Garutti e ele enviou esse texto que condenso a seguir, pois seu depoimento é muito mais eloquente do que poderiam ser minhas considerações:

“O trabalho na Polícia Federal é gratificante — não só temos a chance de fazer a diferença na vida de algumas pessoas, mas, principalmente, algumas vezes somos a única chance que algumas delas têm para afiançar a esperança. Como exemplo, conto sobre as diligências reais cumpridas em um caso de pedofilia. São coisas sérias e tristes e, para muitos, também chocante.

“Numa quinta-feira (28/6/2012) houve uma operação da Polícia Federal para o cumprimento de diversos mandados de prisão preventiva pelo delito de pedofilia pela internet. Os alvos desses mandados estavam espalhados por todo o Brasil e no exterior. Essas pessoas faziam parte de um grupo na internet que compartilhava fotos e vídeos com cenas pornográficas envolvendo crianças e adolescentes. Havia tanto cenas de mera exibição corporal quanto de sexo explícito, entre os próprios menores isolados, entre si, ou com adultos envolvidos.

“Essa operação policial foi coordenada pela unidade do Rio Grande do Sul e aqui em São Paulo houve alguns mandados judiciais a serem cumpridos. Havia grande chance de que, ao serem cumpridos os mandados de prisão preventiva, também se verificasse a ocorrência de flagrante delito, tendo em vista que, atualmente, o simples ato de armazenar material de pedofilia já se traduz em crime previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente. Grande era, pois, a probabilidade de encontrar esse tipo de material nos locais. (Há uma gradação para a gravidade dos diversos delitos: armazenar fotos e vídeos é uma coisa; transmitir é outra coisa; se houver finalidade comercial é outra. Tudo isso desemboca na conduta que considero a mais grave: produzir esse material. É nesse ato de produção que a opressão sobre a criança se torna mais evidente.)

“Um dos maiores problemas dessa criminalidade pedófila é que esse material não é encontrado para venda, está à disposição somente mediante troca (ou compartilhamento pela internet). Assim, para obter algum material na rede, um pedófilo terá que disponibilizar no grupo o ‘seu’ material novo e somente haverá troca se o material postado for, de fato, inédito. Quando o material já é conhecido, já ‘batido’, a troca não é feita e, sem apresentação de material novo, o participante é banido do grupo.

“Assim, é incentivada a produção de material novo, dia após dia, para satisfazer o desejo conectado de pedófilos do mundo inteiro. É certo que o usuário de droga ilícita incentiva o tráfico, mas ele não a fabrica. Com a pedofilia, a relação é pior, pois o ‘usuário’ dificilmente consegue ‘comprá-la’. Ele somente conseguirá material se participar da produção de novas fotos e vídeos. A novidade impera, pois o material produzido circula rapidamente e em pouco tempo se torna ‘notícia velha’, sem mais valor para troca nas comunidades virtuais de pedófilos — alimentando um círculo vicioso e criminoso que chamaríamos de ‘infernal’.

“O que nos choca perante a ação do pedófilo é que, em sua torpe visão, não acredita que esteja praticando um mal para as crianças. Geralmente, justificam eles, antes da prática de sexo com crianças, administram sedativos que amenizam a dor do ato — além de fazer, talvez, a criança apagar o registro desse ato da memória recente (até para impedi-la de comunicar a alguém o ocorrido).

“Pois bem, voltando à operação policial, havia forte suspeita de que alguns desses alvos de prisão praticariam atos de pedofilia se valendo de situações de parentesco ou coabitação.

“Naquela quinta-feira, o dia começou cedo — e foi acabar muito tarde — e parece que nem acabou. As equipes em São Paulo se dirigiram para os seus alvos e começaram a realizar as prisões preventivas. Lá pelas tantas, já se sabia que quase todos os alvos tinham sido presos e verificado o armazenamento de material em seus computadores, o que resultou em diversas prisões em flagrante — decorrentes dos fatos constatados nos locais. Para bem caracterizar a situação flagrancial é necessário que se abram no local alguns arquivos de mídia e se verifique o seu conteúdo, que é mostrado às testemunhas do povo que acompanham as diligências, a fim de que confirmem que se trata de cena envolvendo menores, tudo registrado em auto circunstanciado próprio.

“Não sejamos ingênuos, em todos esses anos de atuação, nunca vi no computador de um pedófilo alguma cena envolvendo menor de idade que deixasse a dúvida se era alguém de 17 ou 18 anos — isso não acontece. O pedófilo gosta mesmo é de criança, por vezes, das menores dentre as menores. Nos mandados de prisão cumpridos naquela quinta-feira, presenciei uma das cenas que a gente reza para não ver nunca na vida. O homem era casado e morava com esposa. Ambos na faixa dos trinta e poucos anos. Uma casa modesta, mas própria; um carro na garagem; computadores potentes. Tinham um filho, que ficara dormindo no quarto durante os atos iniciais da diligência de busca — é praxe a discrição policial nessas ocorrências devido à repercussão que pode ocorrer entre familiares e vizinhos. Então, tenta-se perturbar o mínimo possível a paz do lar. A busca se desenrolava enquanto o filho dormia e, ao final, seria feita a diligência também naquele quarto.

“Ao consultar o computador desse homem adulto, vimos inúmeros vídeos e fotos de pedofilia. As fotos por si só eram chocantes — sexo entre adultos e meninos e meninas, indistintamente. Coito vagínico, sexo anal, sexo oral, introdução de dedos, beijos, carícias genitais entre homens barbados e crianças esquálidas — pesadelo. Mas não era só, a pasta do computador que abrimos a seguir nos fez desacreditar no ser humano… Nela localizamos fotos e vídeos do próprio suspeito, o homem que estávamos prendendo, praticando sexo anal em uma criança — na verdade, um bebê. A desgraça do vídeo prosseguia e mostrava a completa deturpação de uma cabeça humana estragada. À força, em cima daquele que só fraquezas tinha, sem ninguém para protegê-lo, em total desamparo. Aquela minúscula criança não tinha ninguém por ela. Teria Deus por ela?

“A visão repugnante tomou conta da equipe e por um instante de descuido, momento de distração, a esposa desse suspeito escapou da casa pela garagem, carregando um embrulho de lençol nos braços. Rapidamente, vimos a porta do quarto da criança aberta e corremos atrás da mulher. O que haveria naquele embrulho? Alcançada, ela teve de desembrulhar o lençol. Meio acordado, meio dormindo, estava ali um cordeiro: o mesmo bebê que havíamos visto nos vídeos! Tinha pouco mais de dois anos, visivelmente sedado, com marcas evidentes do abuso sexual. Era filho único daquele homem e daquela mulher. Era mesmo um cordeiro, imolado, a esponja que absorvia o vinagre azedo daquele casal doente”. Edson Fábio Garutti Moreira, delegado de Polícia Federal.

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