Constituição e Poder

A importância da autonomia e diferenciação do Direito

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7 de janeiro de 2013, 20h21

Spacca
Néviton Guedes - 19/07/2012 [Spacca]Volto ao tema mais uma vez. “Nós, homens do conhecimento, não nos conhecemos; de nós mesmos somos desconhecidos — e não sem motivo. Nunca nos procuramos: como poderia acontecer que um dia nos encontrássemos?”[1]. Também no Brasil, o diagnóstico entre juristas parece-me perfeitamente contemplado pelo desalento do velho Nietzsche. Aqui, nós, os juristas, em qualquer área, mal nos entendemos. Mais do que isso, não queremos nos entender. Preferimos cada um criar e manter o próprio idioma, mesmo que signifique uma língua conhecida e falada por um grupo absolutamente restrito — às vezes, de um único falante.

No campo da teoria e da ciência do Direito, fica cada vez mais flagrante o fato de existirem muitas explicações sobre os mesmos fenômenos, como se o Direito fosse uma grande Babel. Já não se trata, como na origem da linda fantasia de Gabriel Garcia Marques, de silenciar os objetos pela inexistência de nomes com que designá-los, mas da impossibilidade de discerni-los num território em que os habitantes nomeiam coisas e fenômenos como bem entendem. Não admira, pois, que os tribunais brasileiros isolem-se, cada vez mais, na sua própria jurisprudência. Lênio Streck, querido amigo e professor, com inteira razão e o brilho de sempre, reclama há muito da ausência cada vez mais frequente e sentida de referências doutrinárias nas decisões judiciais. Sem que se exclua uma certa soberba de nossas cortes, talvez aqui esteja um pouco da explicação — suspeito que, na profusão de tantos idiomas e na ausência de um acordo linguístico entre juristas, os nossos tribunais vão acentuar seu discurso autorreferenciado e se fechar mais e mais no seu próprio dialeto.

Uma das características mais marcantes do Direito Moderno é, precisamente, a estabilização de expectativas, ou seja, esperar legitimamente que decisões e comportamentos se repetirão no futuro quando os tribunais se defrontarem com casos semelhantes. No Brasil, contudo, o sentimento é o de que vivemos uma espécie de “revolução institucional permanente”, para o que concorre nos últimos tempos, com dedicação e algum desassombro, o próprio Poder Judiciário. Sempre com maior acuidade do que eu, Marcelo Neves já havia tomado emprestado do velho Trotsky o seu evangelho por uma “revolução permanente”, para falar de uma “reconstitucionalização simbólica permanente”.

É de se perguntar: por que mudar tudo no Direito, permanentemente? Para uma resposta bem direta e a mais simples, não consigo deixar de pensar na conhecida lição de Giuseppe Tomasi di Lampedusa: “Se vogliamo che tutto rimanga come è, bisogna che tutto cambi. Mi sono spiegato?” (“Se queremos que tudo permaneça como está, é necessário que tudo mude. Fiz-me entender?”). Na análise mais elaborada do professor Marcelo Neves: muda-se a instância jurídica simbolicamente e de forma permanente apenas como álibi (simbólico) para que as estruturas sociais de poder (de fato) possam permanecer como sempre foram. Portanto, por paradoxal que pareça, aqueles que pensam promover revoluções pelo Direito podem muito bem estar — concedo que de forma ingênua — apenas prestando homenagem ao status quo.

De meu lado, como não tenho qualificações teóricas para enfrentar o desafio, valho-me aqui dos dois maiores teóricos da sociedade do Século passado: Max Weber, profeta de sua primeira metade, e Niklas Luhmann, um herói em suas últimas três décadas.

Estamos assistindo em nosso país ao enfraquecimento — alguns, mais assustados, já falam em desmoronamento — da segurança e da estabilidade do Direito, aquela previsibilidade que corresponde nada mais, nada menos, a uma das maiores conquistas da Modernidade ocidental — a avaliação é de Max Weber — e, em vez de lutar contra isso com todas as nossas forças, nós, incrivelmente, aplaudimos com grave serenidade. De fato, mesmo os que saúdam o momento vivido pelo Direito brasileiro não discordam, quando bem analisados os seus discursos, desse diagnóstico. Eles até comemoram o fato de o sistema jurídico brasileiro abrir-se, quase que em paroxismo, às mais extravagantes transformações.

Pela importância, pois, volto a um tema que me incomoda desde sempre. Fez parte tanto de minha dissertação de mestrado como de minha tese de doutoramento.

O Direito, como qualquer sistema social, só pode existir a partir da diferenciação funcional em relação ao seu meio ambiente, isto é, em relação aos demais subsistemas sociais — mídia, economia, política, religião, moral etc. Melhor explicando, “como todos os sistemas, os procedimentos judiciais constituem-se pela diferenciação, pela consolidação de limites diante de um meio ambiente. (…) Diferenciação não significa isolamento causal ou comunicativo. Tribunais não são prisões. Antes, trata-se apenas de construir uma esfera de sentido para si, de tal forma que processos seletivos de tratamento de informações colhidas do meio ambiente possam ser orientados por regras e decisões próprias do sistema. Portanto, que estruturas e eventos do meio ambiente não tenham validade imediata no sistema, mas apenas depois de serem reconhecidos pela filtragem (Filterung) de informações. A diferenciação só pode com isso ser executada pelo estabelecimento autônomo do processo[2].”

Além disso, os procedimentos judiciais não podem ser deixados ao acaso: “não podem ser descobertos e compatibilizados caso a caso” (Luhmann). O Direito deve diferenciar-se dos demais subsistemas para estabilizar. Seria terrível que se promovesse a sua indiferenciação com intuito, ainda que inocente, de instabilizar. No dizer ainda de Luhmann, os procedimentos judiciais e as decisões deles resultantes não podem depender dos humores e dos interesses sociais momentâneos e aleatórios. Um cidadão não pode ser considerado culpado ou inocente, por exemplo, pelas relações de sub ou de sobreintegração que mantenha com o poder, com a economia ou com os meios de comunicação. No mais possível, e isso é básico a uma democracia, um julgamento — sobretudo de caráter subjetivo, em que estão envolvidas vidas de pessoas — não pode depender dos azares do momento, do humor da opinião pública, de suas relações de poder ou de sua condição econômica.

Obviamente, no controle abstrato de constitucionalidade e em outros processos de natureza objetiva, em que não se decide sobre a específica situação pessoal de um cidadão, em que o Tribunal Constitucional claramente assume características de órgão político, insisto, por óbvio, que o julgamento acaba sendo permeado por maior comunicação e sofre uma maior influência de outras esferas sociais. No controle de constitucionalidade abstrato, de caráter objetivo e acentuadamente político, sobretudo num país em que a Corte Constitucional abertamente assume ares e poderes de legislador positivo, não faria mal um maior contato com a opinião pública e os demais atores sociais. Por isso, parece-me absolutamente lúcida — sem qualquer favor e como sempre — a leitura[3] do extraordinário professor e amigo Luís Roberto Barroso (em coautoria com Eduardo Mendonça), quando enxerga na jurisdição constitucional notas de um poder que também se qualifica pela regra da representatividade popular e, por aí, deve prestar contas à “opinião pública” — como diz o professor Barroso, seja lá o que isso de fato signifique.

Por outro lado, deixe-se claro que o Poder Judiciário, em sua administração, e o magistrado, no seu ofício, devem a mais irrestrita prestação de contas à opinião pública, ao público e ao cidadão. Coisa bem diversa é um magistrado ou tribunal, no curso de um processo judicial subjetivo, portanto, ir perscrutar os humores da chamada “opinião pública” para, só então, proferir julgamentos sobre a vida das pessoas.

E de qualquer sorte, seja o processo de natureza subjetiva ou objetiva, deve sempre seguir regras pré-constituídas, do próprio sistema jurídico, de modo a não recair numa situação primitiva de absoluta imprevisibilidade. A razão de ser do procedimento judicial relaciona-se com a redução (absorção) da incerteza sempre existente tanto nas questões de Direito quanto nas questões de verdade presentes nos fatos controvertidos que são levados ao Judiciário. Se o Direito não quer se diluir em mera instância dos outros subsistemas sociais, o processo judicial “deve ser dirigido por critérios internos do próprio procedimento e não por critérios externos” [4].

Como lembra Luhmann, até no processo de procriação e nascimento, os organismos não são gerados por um procedimento aleatório, isto é, por um novo desenvolvimento ou uma nova evolução sob o império do puro acaso, “antes se criam e formam pela instauração de um programa pré-constituído de seleção, que dá origem ao organismo no mais curto espaço de tempo e segundo regras hereditárias[5]”. Como a medida — extensão e profundidade — da possível diferenciação do processo judicial está relacionada com outras estruturas sociais, seria muito importante que aqueles que dizem que o processo judicial deve prestar contas a outras instâncias (sistemas) sociais tivessem clareza sobre relações que o Judiciário de fato mantém, por exemplo, com a mídia, o poder e a economia.

A diferenciação exige também algum distanciamento do processo judicial da base social em que ele se encontra inserido e se desenvolve. No que seja possível, as informações que são levadas ao processo devem ser trazidas por meios próprios (ações e recursos) e por personagens com papéis institucionalizados juridicamente (testemunhas, peritos, funcionários), e não por meios não institucionalizados no processo ou personagens ainda investidos dos seus papéis e interesses sociais primitivos. O processo judicial existe, aliás, em grande medida para destacar (diferenciar) os instrumentos e as personagens (partes, testemunhas, servidores do Judiciário), por intermédio dos quais o Direito se realiza. Esse “distanciar-se”, aliás, é principalmente obrigação do magistrado, que, obviamente, não pode decidir com imparcialidade qualquer caso no qual se sinta envolvido não como magistrado, mas como um participante qualquer, com seu papel original. Por isso, diante de um processo, inclusive e principalmente o magistrado “pode e deve decidir como um estranho (Er kann und soll als Fremder entscheiden)”[6].

O Juiz deve alcançar a sua decisão a partir do direito posto, onde se definem quais são os fatos e em que sentido eles são relevantes para a sua decisão. Todas as tentativas de buscar um sentido de verdade e de justo fora do Direito irão apenas mascarar a imposição de critérios que não foram democraticamente estabelecidos — já que critérios externos ao Direito ou não são públicos ou não são acessíveis em igualdade pelos participantes, ou nem uma coisa nem outra. Essa é uma condição prévia essencial à autonomia e ao desenvolvimento da decisão judicial. Como já se disse, esse distanciamento (diferenciação) não implica, por óbvio, isolamento absoluto do processo judicial. O meio-ambiente em que se desenvolve o processo judicial, obviamente, acaba sempre encontrando “uma válvula de escape”, segundo Luhmann, para influenciar o sistema judicial. Josef Esser já acentuava a forma como se realiza, no interior dos procedimentos judiciais, a influência dos valores sociais, isto é, a “transmissão de valorações e mudança de valorações”. “O magistrado, com a ajuda de figuras abstratas e modos de argumentação, reabsorve as valorações sociais e, nessa medida, se aproximam de um ponto de vista sociológico”[7]. Contudo, essa influência deve ser dirigida a partir de prévias e expressas decisões legislativas e sob a forma que é própria e específica do processo judicial[8].

Honestamente, não sei se tudo isso tem sido adequadamente considerado quando saudamos com vivas e sem reservas a flagrante espetacularização dos processos judiciais e, com isso, a influência que eventualmente os meios de comunicação de massa possam revelar e impor às decisões do Poder Judiciário. Mas, como são muitas e tão autorizadas as vozes que dizem o contrário, tenho sempre a esperança e o reconfortante receio de que eu esteja errado.


[1] Friedrich Nietzsche. Genealogia da moral. SP: Companhia das Letras, 2009, p. 7.

[2] Niklas Luhmann. Legitimation durch Verfahren. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1983, p. 59.

[3] Vejam o cuidadoso artigo do Professor Barroso e de Eduardo Mendonça: http://www.conjur.com.br/2013-jan-03/retrospectiva-2012-stf-entre-papeis-contramajoritario-representativo.

[4] Niklas Luhmann. Legitimation durch Verfahren, p. 60.

[5] Niklas Luhmann. Legitimation durch Verfahren, p. 59.

[6] Niklas Luhmann. Legitimation durch Verfahren, p. 64.

[7] Aqui, Luhmann nos remete a clássico trabalho de Josef Esser sobre a pré-compreensão e escolha de métodos no processo de adjudicação jurídica como garantia de racionalidade das decisões judiciais (Josef Esser.Verständnis und Methodenwahl in der Rechtsfindung: Rationalitätsgarantien der richterlichen Entscheidgungspraxis, Frankfurt 1970 apud Niklas Luhmann. Legitimation durch Verfahren, p. 4.

[8] Niklas Luhmann. Legitimation durch Verfahren, p. 4.

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