Embargos Culturais

Francisco Campos e o elo dos intelectuais com o poder

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

6 de janeiro de 2013, 3h49

Caricatura: Arnaldo Godoy - ColunistaO mineiro Francisco Campos foi figura central do regime de Vargas. Constitucionalista, exuberantemente culto, foi a Francisco Campos que se incumbiu o desenho institucional do regime varguista. É dele, e de alguma parte de sua obra, que o presente ensaio trata.

Francisco Luís da Silva Campos nasceu em 1891 e faleceu em 1968. Foi Secretário do Interior de Minas Gerais, de 1926 a 1930, quando se interessou intensamente por questões de educação. Foi um dos mais destacados líderes revolucionários de 1930. Atuou como ministro da Educação e da Saúde Pública, de 1930 a 1932. Articulou em Minas Gerais a reacionária Legião de Outubro, a partir de 1931. Foi consultor-geral da República, de 1933 a 1937 e redator mais importante e mentor do texto constitucional de 1937. Foi ministro da Justiça nos anos difíceis de 1937 a 1941. Reproduzo em seguida a primeira menção que Getúlio Vargas faz a Francisco Campos em seu diário, em entrada de 1º de novembro de 1930:

“Começam as tentativas para a organização do Ministério. Alguns nomes eu já trazia fixados, outros foram sendo sugeridos depois. A mentalidade criada pela Revolução não admitia mais o emprego dos velhos processos, do critério puramente político. Por isso, causou certa dificuldade o desejo manifestado por Minas — Artur Bernardes — de que esse estado desse três ministros. Enfim, conformaram-se com dois, devendo ser criado o da Instrução e da Saúde Pública para Francisco Campos, que me pareceu, aliás, um excelente nome” (VARGAS, cit., p. 21).

Sigo com o diário do político gaúcho. No dia 9 de outubro, Getúlio Vargas foi ao Jockey Club com Francisco Campos. No dia 17 de novembro, já ministro, Campos despachou com Vargas. No dia 22 de dezembro de 1930, Vargas ouviu Francisco Campos, que opinou desfavoravelmente à emissão de papéis do governo, propondo a venda do stock então existente aos norte-americanos.

Em 12 de janeiro de 1931, Campos seguiu com comitiva a Belo Horizonte entregar uma espada a Olegário Maciel, por instruções de Getúlio Vargas, que concedera ao ex-presidente de Minas a patente de general. Francisco Campos fora levado à política federal como fiador da aliança entre Getúlio e Olegário Maciel; em seu lugar, Gustavo Capanema ficara em Minas Gerais (cf. SCHWARTZMAN et allii, 2000, p. 53). Afirmou-se que Francisco Campos tinha em mente eliminar as velhas chefias oligárquicas de Minas Gerais, dado que era notoriamente avesso a partidos políticos, parlamentos e demais formas de representação partidária (cf. BADARÓ, 2000, p. 162). Era um aliado ideal para Vargas.

Getúlio, em seu diário, continuava se referindo a Francisco Campos; tem-se a impressão que relação de amizade sincera e de confiança mútua não se firmava, e que houve reiterados episódios que indicam desconfiança por parte do parte de Vargas (cf. VARGAS, cit.).

No entanto, por volta de 15 de setembro de 1931, Vargas registrou que Campos conspirava contra ele, segundo haviam lhe avisado (cf. VARGAS, cit., p. 72). Em 9 de março de 1931, Vargas registrou que Virgílio de Melo Franco denunciara Francisco Campos como traidor do governo (cf. VARGAS, cit., p. 95). Em 26 de julho de 1932, o jogo de intrigas em Minas fazia com que Vargas pensasse em substituir Francisco Campos (cf. VARGAS, cit., p. 119). Em 15 de setembro de 1932, Vargas aceitou o pedido de demissão do político mineiro (cf. VARGAS, cit., p. 133).

Em 18 de outubro de 1934, Vargas recebeu Francisco Campos (na qualidade de consultor-geral da República): trataram, entre outros assuntos, da interpretação constitucional de uma anistia que se processava (cf. VARGAS, cit., p. 334). Em 19 de dezembro de 1935, Vargas registrou ter recebido em audiência Francisco Campos, então apontado como reitor da Universidade do Distrito Federal (cf. VARGAS, cit., p. 457). Em 3 de janeiro de 1936, Vargas anotou interessante registro, que menciona Francisco Campos e que dá conta de medidas de repressão ao comunismo:

“(…) continuo, com o ministro da Justiça, acompanhando os inquéritos e combinando medidas sobre a repressão do comunismo; com este e mais o general Pantaleão, Lourival Fontes, Francisco Campos e outros, estimulando e aconselhando um trabalho de propaganda doutrinária contra o comunismo” (VARGAS, cit., p. 465).

Em 30 de abril de 1936, Vargas anotou que Francisco Campos se despedia para tratamento em uma estação de águas (cf. VARGAS, cit., p. 503). Em 27 de abril de 1937, Vargas registrou encontro importantíssimo com Francisco Campos: pela primeira vez discutiram o projeto de Constituição que o jurista mineiro estava elaborando (cf. VARGAS, vol. II, p. 38).

No dia 19 de outubro daquele ano, voltaram a falar sobre o assunto (cf. VARGAS, cit., p.76). Em 5 de março de 1938, Getúlio queixou-se de Campos, a quem admoestou, por não ter conversado com Plínio Salgado e demais conspiradores; Vargas falava em dever de lealdade (cf. VARGAS, cit., p. 113). As relações entre Francisco Campos e Getúlio Vargas eram politicamente muito intensas.

Lê-se no Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro da Fundação Getúlio Vargas, no verbete alusivo a Francisco Campos, que o político mineiro logrou afirmar-se como o mais importante ideólogo da direita brasileira, ao lado de Oliveira Vianna e de Azevedo Amaral (MALIN, 2001, p. 1003). É no mesmo verbete que se encontra a síntese que segue:

“Uma das ideias mais caras a Francisco Campos era a da unidade de um estado nacional. Segundo Jarbas Medeiros, seu pensamento, que o credenciara a montar o arcabouço jurídico-institucional do Estado Novo, pode ser sintetizado nos seguintes aspectos: 1) uma visão apocalíptica do período que se vivia (…); 2) uma visão de sociedade moderna como ‘sociedade de massa’ (…); 3) uma visão do Estado moderno como Estado autoritário e antiliberal (…); 4) uma apologia das elites, vistas como agentes da história (…) (MALIN, cit., loc.cit.).

Fragmentos significativos do pensamento de Francisco Campos — que refletem o modelo institucional que julgou o processo de que cuida o presente ensaio — encontram-se reproduzidos em coletânea publicada pelo Senado Federal. No referido livro há excertos relativos a miríade de assuntos, que transitam em rubricas quais A Política e o Nosso Tempo, Diretrizes do Estado Nacional, Problemas do Brasil e Soluções do Regime, Síntese da Reorganização Nacional, A Consolidação Jurídica do Regime, Exposição de Motivos do Projeto de Código de Processo Civil, entre tantos outros, que incluem patrióticas Orações à Bandeira.

Indiscutivelmente, Francisco Campos foi um homem integrado em seu tempo; isto é, se observamos o que se passava na Alemanha, na Itália, na Espanha. Francisco Campos conhecia Direito Constitucional, era versado em línguas estrangeiras; tudo justificando o epíteto de Chico Ciência, que o acompanhava.

Francisco Campos via-se em uma época de transição, marcada pelo trágico — e a imagem é alemã, remete-nos a Nietzsche e a Wagner — em que todos os movimentos são permitidos, conquanto que convergentes com meta definida. Trata-se de realismo de sabor florentino, maquiavélico:

“A época de transição é precisamente aquela em que o passado continua a interpretar o presente; em que o presente ainda não encontrou as suas formas espirituais, e as formas espirituais do passado, com que continuamos a vestir a imagem do mundo, se revelam inadequadas, obsoletas ou desconformes, pela rigidez, com um corpo de linhas ainda indefinidas ou cuja substância ainda não fixou os seus pólos de condensação” (CAMPOS, cit. p. 13).

Crítico acirrado do comunismo, que comparava a uma sofística moderna, Francisco Campos expressava pensamento comum entre os líderes do Estado Novo:

“Entre Sócrates e os sofistas havia um diálogo, uma discussão, porque um e outro admitiam valores comuns, pelo menos um valor — o valor da verdade. A sofística de hoje, continuando embora a empregar a linguagem dos valores tradicionais, eliminou a substância de qualquer valor, até o valor da verdade, pois a sua significação passou a ser exatamente o contrário, o valor da verdade não consistindo a rigor na verdade, mas naquilo que, não sendo a verdade, funciona, entretanto, como verdade (…). A ideia de Marx não é verdadeira, mas, aceitada como verdade, constitui o único instrumento capaz de conduzir a grande revolução. Convém, portanto, cultivar a ideia de luta de classes e forjar um instrumento intelectual ou, antes, uma imagem dotada de grande carga emocional, destinada a servir de polarizador das ideias ou, melhor, dos sentimentos de luta e de violência, tão profundamente ancorados na natureza humana. Essa imagem é um mito. Não tem sentido indagar, a propósito de um mito, do seu valor de verdade. O seu valor é de ação. O seu valor prático, porém, depende, de certa maneira, da crença no seu valor teórico, pois um mito que se sabe não ser verdadeiro deixa de ser mito para ser mentira. Na medida, pois, em que o mito tem um valor de verdade, é que ele possui um valor de ação, ou um valor pragmático” (CAMPOS, cit. p. 15, 16).

É a Constituição de 1937 o maior legado de Francisco Campos. Inicia-se o texto com longo consideranda, que resume o instante político, e que dava conta, como segue:

ATENDENDO às legitimas aspirações do povo brasileiro à paz política e social, profundamente perturbada por conhecidos fatores de desordem, resultantes da crescente a gravação dos dissídios partidários, que, uma, notória propaganda demagógica procura desnaturar em luta de classes, e da extremação, de conflitos ideológicos, tendentes, pelo seu desenvolvimento natural, resolver-se em termos de violência, colocando a Nação sob a funesta iminência da guerra civil;  

ATENDENDO ao estado de apreensão criado no País pela infiltração comunista, que se torna dia a dia mais extensa e mais profunda, exigindo remédios, de caráter radical e permanente;

ATENDENDO a que, sob as instituições anteriores, não dispunha, o Estado de meios normais de preservação e de defesa da paz, da segurança e do bem-estar do povo;

Sem o apoio das forças armadas e cedendo às inspirações da opinião nacional, umas e outras justificadamente apreensivas diante dos perigos que ameaçam a nossa unidade e da rapidez com que se vem processando a decomposição das nossas instituições civis e políticas:

Resolve assegurar à Nação a sua unidade, o respeito à sua honra e à sua independência, e ao povo brasileiro, sob um regime de paz política e social, as condições necessárias à sua segurança, ao seu bem-estar e à sua prosperidade, decretando a seguinte Constituição, que se cumprirá desde hoje em todo o País (…)

 

O texto indicava um regime ditatorial. A hipertrofia do Executivo federal ficava clara em regra que apontava que “o Governo federal intervirá nos Estados, mediante a nomeação pelo Presidente da República de um interventor, que assumirá no Estado as funções que, pela sua Constituição, competirem ao Poder Executivo, ou as que, de acordo com as conveniências e necessidades de cada caso, lhe forem atribuídas pelo Presidente da República: para impedir invasão iminente de um país estrangeiro no território nacional, ou de um Estado em outro, bem como para repelir uma ou outra invasão, para restabelecer a ordem gravemente alterada, nos casos em que o Estado não queira ou não possa fazê-lo, para administrar o Estado, quando, por qualquer motivo, um dos seus Poderes estiver impedido de funcionar, para reorganizar as finanças do Estado que suspender, por mais de dois anos consecutivos, o serviço de sua dívida fundada, ou que, passado um ano do vencimento, não houver resgatado empréstimo contraído com a União, para assegurar a execução de princípios constitucionais, a exemplo da forma republicana e representativa de governo, do governo presidencial, dos direitos e garantias assegurados na Constituição e para assegurar a execução das leis e sentenças federais”.

O poder central plasmava-se na figura presidencial. Determinou-se que “o Presidente da República, autoridade suprema do Estado, coordena a atividade dos órgãos representativos, de grau superior, dirige a política interna e externa, promove ou orienta a política legislativa de interesse nacional, e superintende a administração do País”.

Em âmbito de competência privativa, competia ao chefe da nação “sancionar, promulgar e fazer publicar as leis e expedir decretos e regulamentos para a sua execução, expedir decretos-leis, manter relações com os Estados estrangeiros, celebrar convenções e tratados internacionais ad referendum do Poder Legislativo, exercer a chefia suprema das forças armadas da União, administrando-as por intermédio dos órgãos do alto comando, decretar a mobilização das forças armadas, declarar a guerra, depois de autorizado pelo Poder Legislativo, e, independentemente de autorização, em caso de invasão ou agressão estrangeira, fazer a paz ad referendum do Poder Legislativo permitir, após autorização do Poder Legislativo, a passagem de forças estrangeiras pelo território nacional, intervir nos Estados e neles executar a intervenção, nos termos constitucionais, decretar o estado de emergência e o estado de guerra, prover os cargos federais, salvo as exceções previstas na Constituição e nas leis, autorizar brasileiros a aceitar pensão, emprego ou comissão de governo estrangeiro, determinar que entrem provisoriamente em execução, antes de aprovados pelo Parlamento, os tratados ou convenções internacionais, se a isto o aconselharem os interesses do País, indicar um dos candidatos à Presidência da República, dissolver a Câmara dos Deputados, nomear os Ministros de Estado, designar os membros do Conselho Federal reservados à sua escolha, adiar, prorrogar e convocar o Parlamento, bem como exercer o direito de graça”.

Disposições transitórias ao referido texto constitucional oxigenavam a autoridade presidencial. De tal modo, indicou-se que dentro prazo de 60 dias, a contar da data dessa Constituição, poderão ser aposentados ou reformados de acordo com a legislação em vigor os funcionários civis e militares cujo afastamento se impuser, a juízo exclusivo do Governo, no interesse do serviço público ou por conveniência do regime. A Constituição, em seu artigo 186, declarou o estado de emergência.

Francisco Campos é um homem de seu tempo. Provoca-nos, quanto a instigante questão, retomada por autores tão díspares quanto Bobbio, Foucault e Baumann, no que se refere à relação entre os intelectuais e o poder. Não pode, no entanto, ser julgado com nossos olhos de hoje, que contamos com o benefício do retrospecto.

BIBLIOGRAFIA

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