Senso Incomum

O processo eletrônico e os novos hermeneutas - Parte I

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3 de janeiro de 2013, 7h26

Spacca
Caricatura Lenio Streck [Spacca]Esta coluna é (mais) uma ode que faço ao Judiciário. Já defendi (clique aqui para ler) eleições diretas para os órgãos de cúpula dos tribunais, para aprofundar a “questão democrática” no Poder Judiciário. A coluna de hoje é conservadora. Reconheço. O texto defende “juízes julgadores”. À moda antiga. E não “juízes-gestores”! Eis o convite à reflexão. Peço desculpas, mas será dividida em duas partes.

Ultrapassando as portas da lei, inicio.

Hermes. A origem.
Tenho contado e recontado essa estória — aliás, conhecida pela maioria que estuda interpretação e hermenêutica. Hermes era um semideus que fazia a intermediação entre os deuses e os mortais. Hermes traduzia a linguagem dos deuses. Hermes se tornou poderoso, porque contava aos mortais o que os deuses diziam. Pois é. O “grande lance” é que nunca-se-soube-o-que-os-deuses-disseram. Só se soube o que Hermes disse que os deuses disseram.

Não temos acesso direto às coisas. Aliás, se tivéssemos, seríamos deuses, por assim dizer. E nem teria graça… Interpretar é como a metáfora do mapa. Um mapa representa algo. Se um mapa é tão perfeito que mostra exatamente as coisas, já não é um mapa. É, sim, a própria coisa. Metaforizado isso, podemos dizer que a mediação hermenêutica é a condição de possibilidade de estarmos no mundo.

Por que estou dizendo isso, na primeira coluna de 2013? Simples. Escrevo sobre Hermes para falar das “novas testemunhas” do processo. Que não são as de ou do Jeová. Escrevo para falar do modo como os juízes e membros do Ministério Público lidam e passarão a lidar com essa nova fenomenologia chamada “processo eletrônico”.

E aparece(ra)m os neo-gestores
Faz algum tempo, alguém inventou o processo eletrônico (desde 2002). Em vez de autos de papel, autos virtuais. Ao invés de pilhas de processos, temos agora “nuvem”. Não há nem pen drive, que ainda é algo que se pode tocar. Agora, tudo se passa em uma “nuvem” (fico pensando — e se um buraco negro a sugar?). Tudo fica clean. Organizado e limpo como uma prisão escandinava. Fóruns e tribunais sem papel sobre as mesas. Assinaturas eletrônicas substituem as canetas. Como o Brasil é avançado, pois não? Trata-se, conforme Marco Marrafon, de uma “burocratização eficientista”.

Sou um conservador. Ou romântico. Alguns — ou muitos — dirão que sou um reacionário, que sou contra o progresso. Obscurantista. Não faz mal. Tenho dúvida — ou melhor, sou cético — em relação à eficácia social-humanística desse novo modelo de “gestão” (como implico com essa palavra…).

Desde que os novos gestores tomaram conta das Universidades, começou o declínio do ensino e da pesquisa. Tudo vira número. Estatística. Um pé nas brasas e um pé no gelo: Temperatura média, excelente. Perderei os dois pés… Mas, e daí? Dou um tiro em um pato e erro o alvo um metro à direita; dou outro tiro no pato errando, desta vez, por um metro à esquerda. Para o neo-gestor, na média o pato foi atingido. Tudo se transforma em números e metas.

No Judiciário, um número x de sentenças deve ser alcançado. Sua qualidade? Pouco importa. Importante é: decidir. Quantidades. Mais adiante, voltarei a esse assunto. Na academia, criou-se o lema: publique ou morra (publish or parish). Aí começa o fator “Imperatriz Leopoldinense”. Desfila conforme o regulamento. O desfile (de Escola) pode ser medíocre… Mas a soma dos quesitos… Todos nota 10 (os mais jovens não conhecem o “fator Imperatriz”… É como jogar só pelo regulamento; a arte fica de lado; o que vale é isolar os quesitos; por isso, o “todo” pode ser medíocre; mas as partes, isoladamente, são “perfeitas”). Um professor ordena que um aluno seu escreva um texto; ele, o professor e mais outro colega, também professor, assinam. Publicado, ambos terão um texto integral (o regulamento diz que até três autores, conta para todos). Textinhos de dez ou doze laudas e… Bingo! Gente que escreve sobre “o papel do artigo tal da Lei tal”. Ou artigos sobre “sustentabilidade”, a nova moda. Já vi artigos Qualis A sobre temas que não dão um artigo no Jornal “O Povo”, de Cachoeira do Sul (ou de Itapemirim). Tudo é número. No Judiciário, quando faltam processos para atingir as metas, cresce o número de decisões passíveis de Embargos de Declaração e Agravos… E Embargos de Embargos. Bingo! Achamos a chave do sucesso. Afogados em números, deixamos a qualidade ir pelo ralo.

Crise de papel?
Quem disse que existe crise de papel no mundo? Qual é a prognose de que vai faltar papel? Papel é material fóssil que está em extinção? Papel polui? Papel não pode ser reaproveitado? Engraçado: o Brasil é o único país do mundo que adotou essa ideia de gestão do Judiciário, que inclui — ou tem como pedra de toque — essa modalidade virtual de processo. Outra coisa: poupar em papel? O que representa o papel no volume de gastos do Judiciário? Gasta-se mais em vale-refeição do que em papel, só para iniciar o tema.

Os novos gestores querem até mesmo limitar o número de páginas de cada peça processual. Algo como “projeto petição 10”. Ótimo: pelo nível da teoria do Direito hoje, dez páginas é muito…! Sugiro fazer tudo por twitter: 140 caracteres e deu prá bola. Eles usam gráficos. Sempre com novas ideias. E gostam de power point. Tire-se-lhes o power point e… Puff. Desaparecem. Fazem reuniões apresentando números.

Nesse novo imaginário da efetividade quantitativa, perdemos a noção do “caso concreto”. O importante é alcançar efetividades quantitativas. O juiz de Direito e professor Alexandre Morais da Rosa tem escrito muito sobre essa problemática. Alexandre mostra essa síndrome “pós-moderna”: “O sintoma disto pode ser visto pelos inúmeros Relatórios que o Conselho Nacional de Justiça – CNJ obriga a preencher a todo o momento. O culto pela ‘avaliação’, até porque não se sabe, de fato, quais são os critérios de quem analisa, se é que analisa, ganha contornos patológicos nesta virada de século, tudo em nome da Boa Governança”.

E continua:

“Cada vez mais os magistrados são obrigados a enquadrar suas atividades em fichas técnicas de cumprimento de obrigações conforme o Protocolo, também editado ou reiterado pelo CNJ, com o primeiro reflexo de se jogar conforme as regras do jogo, a saber, cada vez mais só se valoriza o que gera bônus, transformando a atividade jurisdicional em uma verdadeira atividade de ‘franqueado jurisdicional’. Claro que abusos acontecem no Poder Judiciário. Contudo, eles não podem ser o ‘Cavalo de Tróia’ da eficiência. O resultado mais evidente é a ‘homogeneização’ das decisões, voluntariamente ou de maneira forçada (Súmulas, Reclamação, Recusa recursal, etc.), com a transformação dos antigos juízes em meros gestores de unidades jurisdicionais” (http://alexandremoraisdarosa.blogspot.com.br/2010/01/fmj-texto-da-palestra.html).

Efetividade e Gestão: a nova marca. Se o Agravo é de Instrumento ou Retido, o melhor é negar. Transforme-se-o em Retido. É mais uma decisão. Para cumprir a meta do CNJ. E na administração das “Casas”, tudo é calculado. Vi, dia desses, uma instrução normativa do Ministério do Planejamento (ou da Administração) dizendo que um funcionário tem 23 segundos para limpar um metro quadrado de piso. Pensei: e como, raios, isso chegou a ser normatizado? E porque 23 segundos? É. Uma empresa de Gestão estava “vendendo” a ideia…

Aldacy Rachid Coutinho, professora de Direito do Trabalho da UFPR — e continuo com o texto de Morais da Rosa retro —, aponta que, “dentre as diversas questões ocultas na atualidade, algumas podem e devem ser enfrentadas. Não se pode mais fingir cinicamente que não se sabia!”

E a Professora conclui:

“Passamos de um Judiciário em que a figura do juiz era autônoma para uma ‘jurisdição monitorada’. Basta perceber que os Tribunais controlam desde a quantidade de julgados até o numero de audiências designadas, bem assim indaga o motivo de não se marcar, eventualmente, audiências em alguns dias… Este tipo de ingerência abusiva implica na adoção eficientista da magistratura, numa verdadeira confusão do que se configura o ‘trabalho’ da magistratura”.

O processo eletrônico
Sigo. O busiles deste artigo — dividido em duas partes — não é apenas falar dos gestores pós-modernos que infestam governos, universidades e a administração da Justiça. Eles estão por todos os lados. Como os estagiários. Ande no elevador e preste atenção nas conversas: há sempre um neo-gestor por perto. Há governos e prefeituras que criaram secretarias de gestão estratégica. Falta só fundar uma faculdade para formar “estrategistas”. É quase uma epidemia. Bom, cursos de pós-graduação em gestão estratégica já existem. Aos montes. Muitos deles financiados pela Viúva. E logo aparecerão mais mestrados profissionalizantes para ensinar “gestão e estratégia”. De todo modo, meu objetivo é falar do principal produto dessa pós-modernidade: o tal processo eletrônico.

Vamos lá. De que modo os leitores acham que é acessado o processo eletrônico? Acham os leitores (e utentes do sistema judiciário) que um juiz, desembargador, ministro de tribunal, promotor ou procurador senta mesmo na frente de uma tela do computador para ler as peças e olhar vídeos de gravações de audiências? Alguém acredita mesmo nisso?

Vozes importantes do Judiciário, cujas fontes aqui preservo com base na Constituição, apontam a dificuldade de leitura das peças eletrônicas. Confessam que essa dificuldade é quase que intransponível. Imagine-se um processo criminal de crime financeiro em que a prova é invariavelmente documental. Complexa. Abrir todos os documentos é uma tortura, aduzem.

Magistrados importantes, criteriosos no exame da prova — porque eles sabem que a facticidade é quase-tudo no crime — já não estão resistindo mais ao apelo da “terceirização da jurisdição”, obrigando-se a confiar em relatórios e exames feitos exclusivamente por servidores. Claro que os servidores-assessores são muito qualificados e confiáveis, mas o risco de se abdicar da parte mais importante do julgamento é grande. Como diz um deles, “logo alguém vai dizer que os juízes são dispensáveis ou que não existem mais juízes em Berlim”.

Já há consenso em tribunais federais no sentido de que, embora não se admita retrocesso no avanço cibernético, do ponto de vista qualitativo haverá um grande prejuízo. Inexorável prejuízo qualitativo. Se já havia uma tendência de fuga da facticidade, agora, com o processo eletrônico, tudo passou a ser mesmo “virtual”. O caso concreto fica obnubilado. Heidegger tinha razão quando falava da relação ser e ente e o (des)velamento. Um dos magistrados lembra o relato do estrangeiro (Camus): a Justiça nunca se interessou pelo assassinato que ele praticou, sobre os fatos nunca fora perguntado… E foi condenado à morte.

Mais e na mesma linha: o próprio ex-presidente do TRF da 4ª Região, desembargador Vladimir Passos de Freitas, ilustre jurista que ocupa coluna aqui na ConJur e entusiasta do processo eletrônico, confessa que “Os juízes e servidores devem praticar ginástica laboral sob pena de adquirirem moléstias profissionais (v.g., tendinite). A visão continuada na tela também deve causar mal físico” (clique aqui para ler).

Concordo. Volta e meia, lido com processo eletrônico. E acrescento: na mesma linha de depoimentos de magistrados, afirmo que é impossível ter acesso completo aos autos. E, para ter esse acesso, o tempo é maior do que o tempo do papel. No limite, faz-se o paradoxal: imprime-se o processo eletrônico… Ou as peças principais. Mas, se era para ser eletrônico, por que imprimir? O que os neo-gestores dizem disso?

O CNJ tem Resolução dizendo que, a critério do tribunal, os documentos eletrônicos podem ser “degravados” ou “transcritos”. Tenho requerido que as audiências sejam degravadas. Para saber o que as testemunhas disseram… Afinal, não é bom saber o que os protagonistas do processo disseram? Normalmente, o relator nega a degravação. Como ele nega, tenho que ir aos “autos”. Bom, é um tormento. O leitor não tente fazer isso em casa… É prejudicial à saúde, mormente aos olhos. E à paciência. E às costas, porque você fica sentado na frente de um monitor.

Contam-me funcionários federais que lidam até com dois monitores na frente, para “relatar” para o destinatário, o juiz, o conteúdo dos autos eletrônicos. E já começam as doenças profissionais. Logo, aposentadorias precoces aumentarão o déficit da previdência. Diz Passos de Freitas que “Os servidores têm diante de si a possibilidade de trabalhar em casa, dirigindo-se à Justiça um ou dois dias da semana. Em tempos de tráfego intenso, ver-se livre de ruas congestionadas é um alívio. Evidentemente, este tipo de concessão deve ser regulamentado e exige uma boa dose de responsabilidade do servidor e da chefia”.

E digo eu: como controlar as horas extras? Como deixar para o servidor “fazer” um trabalho tão importante em casa? E a segurança? O entorno do lar, da casa, pode fazer parte do “processo judicial” a ser “traduzido” pelo servidor? Ora, corremos o risco de o tribunal perder o controle sobre o que o servidor está fazendo e com quem está. Parece-me extremamente preocupante essa questão, pois não? E que trabalho o servidor leva para casa? (sobre teletrabalho, confira-se http://www.tele-trabalho.blogspot.com.br). Seria exatamente a tarefa de ler os autos nas cansativas telas dos monitores dos computadores? Esses mesmos que causam doenças profissionais?

Eis a questão. Aqui entram os novos hermeneutas. As novas testemunhas (que não são de Jeová). Como os magistrados não dispõem de tempo ou paciência (ou saúde) para ficar na frente de monitores e os tribunais não fazem paradas técnicas para assistir “o que, de fato, ocorreu na audiência” que está em um CD, essa tarefa deve ser feita por alguém que traduz esse mistério que está no processo virtual. Aqui entra a figura de Hermes.

O próprio desembargador Passos de Freitas reconhece: “A leitura é mais cansativa do que a feita em papel. Espera-se que a evolução leve o processo eletrônico a ser lido como os livros no Ipad, inclusive permitindo que se folheiem as folhas e não que se tenha que abrir arquivo por arquivo”.

Ok. Mas quando acontecerá isso? Até lá, quantas demandas terão sido prejudicadas pela “leitura cansativa”? Posso testemunhar isso por ter visto alguns processos eletrônicos da Justiça criminal do Rio Grande do Sul. Será que, fôssemos médicos, seria lícito que fizéssemos esse tipo de experiência em operações cirúrgicas, sob a alegação de que, no futuro, os bisturis seriam mais sofisticados? E os que morressem no meio do caminho? Entram nas estatísticas de “perdas calculadas”?

Outro detalhe que não pode ser olvidado. Supondo que, daqui a algum tempo, chegaremos à tecnologia do livro em Ipad, quem atualizará o software de todo o acervo já existente? Quem pagará essa conta? A viúva? Um amigo fez uma tese de doutorado há dez anos sobre processo constituinte. Seu banco de dados estava em um tipo de digitalização. Pois bem. Hoje, perdeu tudo. Não há software para reproduzir aqueles dados. Lembram-se da microfilmagem? Onde estão os microfilmes? Se não há mais máquinas para ler os filmes, esta(re)mos perdendo “aquele avanço tecnológico”. E assim acontecerá no futuro, com o abandono do papel impresso. Um pesquisador francês esteve no Brasil. Esteve no TRE do RS. Ali lhe disseram que tudo estava sendo feito eletronicamente. Inclusive haviam mandado incinerar os votos e documentos de 1970 para trás. O francês quase teve um infarto. Seu trabalho na França é pesquisar os documentos das eleições do país dele no século XIX. Como farão pesquisa no futuro em terrae brasilis? Sempre dependeremos das atualizações de softwares? Ficaremos reféns disso?

As novas testemunhas
Andante. Os funcionários — assessores em geral, mais a valorosa classe dos neo-escravos (os estagiários) — são aqueles que fazem essa tradução (não esqueçamos que o próprio Aristóteles justificava a escravidão…). Logo, são eles as testemunhas do processo. Sim, as testemunhas dos autos. Sem aqueles que leem para nós o que está no processo virtual, não há comunicação.

Nunca-sabe(re)mos-o-que-os-autos-nos-dizem; só sabe(re)mos aquilo que os assessores nos dizem que os autos disseram… Em uma perfeita paródia do mito de Hermes.

Bom, uma coluna não deve, via de regra, passar de 2,5 mil palavras. Aqui, já são 2.573. E estou em férias. Mas tem muito ainda por falar. Na próxima semana, o fecho. Mostrarei o problema dos novos hermeneutas. De como é perigoso “terceirizar a jurisdição”. Chamarei a isso de “franqueamento da jurisdição”. E de como é perigoso trocar a jurisdição pela gestão. É que sou um jurista à moda antiga.

E aguardem o Livro com uma seleção das melhores colunas de 2012, claro que repaginadas, revisadas e com muitas notas de rodapé explicando o que é solipsismo, círculo hermenêutico, linguistic turn, discricionariedade etc., além de uma introdução sobre senso comum teórico dos juristas e uma conclusão sobre o perigo que a ciência jurídica corre em face da cultura prêt-à-porter. A Editora é a RT.

Foram quase 50 colunas em 2012. Obrigado pela leitura qualificada que fizeram. Aos que amam e aos que odeiam a coluna, Feliz 2013! Na forma da lei e da Constituição!

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