Senso Incomum

Concursos públicos: é só não fazer perguntas imbecis!

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28 de fevereiro de 2013, 9h50

Spacca
A luta pelas batatas
No romance Quincas Borba, Machado de Assis apresenta o Humanitas, peculiar sistema filosófico desenvolvido pelo personagem homônimo. Uma das características é o extremo pragmaticismo, somado a certo realismo extremado do tipo: “as coisas são assim porque são assim”. Por exemplo, não existe um problema ético nas tuas tribos que vão se enfrentar na batalha em torno das batatas. Talvez seja melhor contar um pouco mais da estória. Para explicar o significado paradigmático do Humanitas, que esconderia em si uma verdade universal, Quincas Borba constrói uma hipótese fictícia. Pede ele para seu interlocutor supor um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas são suficientes para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha para e ir a outro campo com batatas em abundancia. Mas, segundo a hipótese, se as tribos dividissem as batatas do campo um (aquele que está antes da transposição da montanha), não teriam energias suficientes para chegar até a fartura e provavelmente morreriam de inanição. Quincas, então, lança a premissa de que a paz, em um caso como esse, representaria a destruição e a guerra, a salvação. Assim, uma das tribos extermina a outra, recolhe os despojos e celebra a vitória. Como a tribo vencedora poderia se alimentar totalmente das batatas do campo um, ela teria forças para ultrapassar a montanha, chegar ao campo dois e possuir batatas estáveis pelo resto de suas vidas. Por isso, o nobre filósofo arremata: ao vencedor, as batatas!

Despiciendo dizer que as batatas são “a Viúva”, “o serviço público”. E o utilitarismo da guerra de extermínio é representado pela fórmula dos concursos públicos e daqueles que ganham fortunas vendendo “armas” para essa batalha. Poderíamos expandir, portanto, a fórmula de Quincas Borba, que, no romance, não cogitou do fornecimento dos recursos bélicos para as tribos envolvidas na luta pelas batatas.

As batatas e os concursos
Pois bem. Há anos denuncio a fórmula dos concursos públicos. Há anos denuncio a indústria que se formou alrededor dos concursos públicos. Venho dizendo, com a maior explicitude possível, que parcela considerável dos concursos públicos se transformou em quiz show, como se fosse um conjunto de pegadinhas para responder coisas que só assumem relevância porque são ditas pelos professores de cursos de preparação para ingresso nas diferentes carreiras do serviço público (mormente na área jurídica).

É um círculo vicioso e não virtuoso. Os concursos repetem o que se diz nos cursinhos, um conjunto de professores produz obras que são indicadas/utilizadas nos cursos de preparação, que por sua vez servem de guia para elaborar as questões que são feitas por aqueles que são responsáveis pela elaboração das provas (terceirizados — indústria que movimenta bilhões e os próprios órgãos da administração pública).

Eis que, em boa hora, a FGV-Direito Rio e a UFF divulgaram importante pesquisa (Estudo aponta falhas e propõe mudanças nos concursos públicos) apontando “problemas nos concursos públicos federais.” Segundo divulgado, os pesquisadores descobriram/constataram que as provas a que são submetidos os candidatos dos mais diversos certames para as mais diversas carreiras do serviço público federal tornaram-se um “fim em si mesmo e não um “meio para o acesso à carreira desejada”. Ainda segundo a pesquisa, o concurso não está atingindo a “finalidade para o qual foi criado, que é selecionar um profissional adequado para cargo na administração pública.” Bingo. Quem já leu livros meus ou as colunas aqui da ConJur, já sabia disso. De todo modo, sempre é bom termos pesquisas empíricas para comprovar aquilo que para nós é autoevidente.

Na mesma linha, por ter se tornado um “fim em si mesmo”, o atual modelo de prova acabou por criar concursos que selecionam “pessoas que têm mais aptidão para fazer prova de concurso” em detrimento de pessoas com aptidões reais para o desempenho da função. “Temos uma ineficiência de fiscalização de competências reais”, afirma um dos autores da pesquisa. Ou seja, segundo a pesquisa, passam mais nos concursos os que são treinados para os concursos e não aqueles que tem capacidades reais para exercer a função pública.

Esplêndida a pesquisa. Parabéns aos professores da FGV e da Federal Fluminense. Cumprimentos ao professor Fernando Fontainha, que coordenou a pesquisa.  Desde os anos 80 há pesquisas apontando para isso. Mais: há pesquisas importantes — eu mesmo cito algumas em Hermenêutica Jurídica e(m) Crise – mostrando que esse modelo de concursos é fruto da crise do ensino jurídico e da crise de paradigmas que atravessa o Direito. Ensino jurídico prêt-à-porter implica atender demandas de concursos prêt-à-porters. Círculo vicioso, que José Eduardo Faria, Tercio Ferraz Jr., Luis Alberto Warat, entre outros, já denuncia(va)m há trinta anos.

A crise (interminável) do Direito
O que quero dizer é que, enquanto os livros mais vendidos e mais utilizados nas salas de aula forem os manuais simplificadores (para dizer o menos) e compêndios quetais, não se pode esperar melhoras nos concursos públicos. A ligação é umbilical (na verdade, a crise do ensino e dos concursos são gêmeos xifópagos, para usar um personagem sempre presente nas salas de aula e nos concursos). Como venho repetindo: parcela considerável dos livros utilizados hoje nas salas de aulas das faculdades de direito e nos cursinhos de preparação para concursos deveria ter uma tarja como as das carteiras de cigarro, algo do tipo “o uso constante desse material faz mal à ciência jurídica e ao seu utente”, acompanhado de uma fotografia, na contracapa, de um aluno com cara de imbecil, dizendo “li e fiquei assim”

Portanto, o furo é mais embaixo. É de fundamento. Nesse “mercado jurídico”, bobos são os que escrevem livros mais sofisticados, pensando que algum dia os concursos podem “pedir” questões sobre teoria do direito ou uma dogmática mais aprofundada. Na metáfora fundamental de Quincas Borba, estes estão perdendo a guerra pelas batatas. E o espólio já tem dono.

Daí o gancho. Diz a pesquisa, também, que os concursos alimentam um mercado milionário (claro que não há novidade nisso). Para se ter uma ideia, o valor movimentado pelos concursos (isto é, o valor que a Viúva dispende para os terceirizados) é, diz a pesquisa, de R$ 30 bilhões. Não sei se nesse valor estão incluídos “aqueles que vivem em torno dos castelos” (ou seja, os cursos de preparação para os concursos). Penso que não.  Além disso, “Os dados vão além e apontam que os salários ofertados são estipulados conforme a complexidade do certame, e não com base no nível acadêmico ou na competência do candidato. Quanto mais difícil e maior o número de provas, maiores as remunerações.

Para reverter o cenário, a pesquisa propõe medidas, como o fim das provas objetivas (múltipla escolha). De acordo com o levantamento, cerca de 97% das provas aplicadas em 698 seleções, entre 2001 e 2010, seguiam o modelo. A proposta é o uso de questões escritas discursivas que abordem situações reais a serem vivenciadas pelos futuros contratados.

Acabar com a prova objetiva?
Embora a pesquisa seja meritória, a sugestão de acabar com a prova objetiva pode significar atirar fora a água juntamente com a criança. Prova objetiva não é um mal em si. Sua substituição apenas servirá para esconder o problema.  E o problema se agravará. É possível elaborar questões ditas objetivas sem lançar mão de questões idiotas e argumentos imbecis, como se Caio e Ticio, gêmeos xifópagos, brigam… qual é o tipo penal… Ou se o constitucionalismo começou com os hebreus… Ou o que é inconstitucionalidade “fulgurante” (ou algo assim), conforme o autor fulano (que, por sua vez, venderá milhares de livros para os candidatos). Se dez mil candidatos se inscrevem, como fazer questões subjetivo-discursivas? E quem vai corrigir? Quais os critérios? Os da cabeça do avaliador?

Veja-se que sempre voltamos ao ponto de partida. Por que chegamos a esse ponto? Alguém acha que nos concursos da área jurídica é possível fazer algo diferente se não alterarmos o ensino jurídico e a produção doutrinária-jurisprudencial? Como alterar a superestrutura se a infraestrutura está, toda ela, tomada por esse imaginário concursista (que envolve os concursos lato sensu e o exame da OAB)? E a constatação dessa estandardização da educação jurídica, repito, já era conhecida desde a década de 1980.

Em vários textos, refiro um trabalho de um aluno de pós-graduação na Faculdade de Direito da USP, do longínquo ano de 1981, que já então denunciava: “O ensino do Direito como está posto favorece o imobilismo de alunos e professores. No esforço de renovação, uns atingem o grau de doutrinadores e o prestígio da cadeira universitária. Os outros, além do mítico título de ‘doutor’, obtêm a habilitação profissional que lhes permite viver de um trabalho não braçal (white collar). A tarefa do ensino para o aluno é cumprida nestes termos: aprendido o abc do Processo e do Direito Civil, já está habilitado a viver de inventários e cobranças sem maior indagação. […]”

Diz ainda a pesquisa: “É claro que este operário anônimo do Direito é necessário, mas por que deve ser inconsciente? […] Sua atividade passa a ser meramente formal, sem influência no processo de tomada de decisão e no planejamento.”

Mais: “O jurista formado por escolas, convém lembrar, não será apenas advogado: será também o juiz que fará parte, afinal de contas, de um dos poderes políticos do Estado. A alienação do jurista, deste modo, colabora também na supressão das garantias de direitos. É que o centro de equilíbrio social (ou de legitimação) é colocado na eficiência, não no bem do homem. Começa-se a falar em um bem comum que só existe nas estatísticas dos planejadores, mas que a pobreza dos centros urbanos desmente. E, em nome desse bem comum, alcançável pela eficiência, sacrificam-se alguns valores que talvez não fosse inútil preservar”.[1]

Pergunto: o que mudou de lá para cá?

Atualmente, a situação é ainda mais dramática em decorrência da massificação do curso de Direito. Não são muitas as faculdades que possuem estrutura — institucional e humana — para formar quadros qualificados de juristas. E vejam que os fatores que levam a isso podem ser ampliados se considerarmos outras tantas distorções que estão presentes hoje na graduação em direito. Não precisamos discorrer aqui sobre todos. Nem espaço haveria para isso. Todavia, um ponto diretamente relacionado ao problema apresentado, diz respeito à indexação da qualidade do curso oferecido aos índices de aprovação no Exame de Ordem. Em muitos casos, esse fator acaba por levar a uma espécie de “vestibularização do direito”.

Empresa pública para fazer concursos?
Por fim, a pesquisa em tela discute se não seria necessária a criação de uma empresa pública especialmente encarregada de elaborar os concursos (ipsis literis: "O levantamento detectou a presença majoritária de sete institutos e centros responsáveis pela elaboração das provas, entre eles o Centro de Seleção e de Promoção de Eventos da Universidade de Brasília, que detém a maior fatia do mercado" — como dito, o mercado movimenta 15 bilhões de dólares).

Pois é. Se entendi bem, a UnB faz parte da máquina pública e vende esse “produto” para a própria máquina? Sem fazer juízo de valor, penso que falar em constituir uma empresa pública para tomar conta dos concursos não terá muito sentido, considerando a notícia de que é uma instituição pública que detém a maior fatia do mercado dos bilhões de reais.  Seria a Viúva brigando contra ela mesma… Não sei se haveria batatas para todo mundo. Quem conseguirá chegar até o campo dois? Será necessário exterminar a outra tribo?

Em conclusão
No modo como os concursos públicos estão alojados na cultura de Vera Cruz-Santa Cruz-Pindorama não é exagero afirmar que hoje o conhecimento acerca das estruturas que compõem o nosso Estado passa por um aprofundamento dessa questão. Algumas leituras weberianas sobre o Brasil, como a obra de Faoro, poderiam nos ajudar nessa tarefa de destrinchar os mistérios… Ensino jurídico, concursos públicos, crise do Direito: tudo está interligado.  Não devemos nos surpreender com o que ocorre no cotidiano das práticas jurídicas, quando advogados, ao invés de buscaram a liberdade de clientes, pedem a prisão (veja-se, v.g., Defensor Público pede a prisão de administradores de Hospital Federal do Rio — a moda pode pegar, pois no RS advogado também pediu recentemente a prorrogação da prisão temporária de seu cliente), sentenças são anuladas porque não tem fundamentação, a estagioariocracia em franca ascensão, livros jurídicos quase sem citação de fontes e a proliferação da praga contemporânea chamada embargos declaratórios, além do uso da pedra filosofal da hermenêutica, denominada “ponderação”. Nada disso nos deve surpreender hoje em dia… Nem as perguntas/pegadinhas que são feitas nos concursos públicos… Por isso, já iniciaríamos uma mudança se as perguntas sobre Caio e Tício, gêmeos xifópagos, Mévio, enfiteuse, constitucionalismo pré-medieval etc, fossem banidas dos concursos. Se não for por nada, pelo menos para dar um bom efeito simbólico!  

De todo modo, se quisermos compreender o Brasil, sempre é bom recorrer aquele que ainda hoje é um dos seus melhores intérpretes. Vamos à personagem do romance O Primo Basílio, de Eça de Queiroz, e à criação de um espécime típico da fauna brasileira: o Conselheiro Acácio. Uma de suas frases se aplica perfeitamente ao caso aqui discutido e descoberto pela pesquisa em pauta: “as consequências vêm sempre depois. Era um gênio esse Conselheiro, pois não?


[1] Consultar Faria, José Eduardo. A reforma do ensino jurídico. p. 37. 

 

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