A Toda Prova

Denúncia anônima tem limitações para motivar inquérito

Autor

  • Aldo de Campos Costa

    é procurador da República. Foi advogado professor substituto da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça assessor especial do Ministro da Justiça e assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal.

27 de fevereiro de 2013, 15h47

A notícia anônima sobre eventual prática criminosa, por si só, não é idônea para a instauração de inquérito policial, prestando-se apenas a embasar procedimentos investigatórios preliminares em busca de indícios que corroborem as informações (prova objetiva do IV concurso público para ingresso na classe inicial da carreira de Defensor Público do Estado do Maranhão).

O debate referente à possibilidade de se admitir acusações baseadas em declarações anônimas envolve questões complexas e controvertidas[1]. Uma delas consiste em saber em que hipóteses a utilização de um documento cujo autor não foi identificado justifica a instauração de um processo administrativo de investigação.

Para esse efeito, a doutrina[2] afirma que, num primeiro momento, o órgão persecutório deve promover diligências informais, no plano da existência do fato — e não da autoria — para apurar se foi ou não, ou se está ou não, sendo praticada a alegada infração penal[3].

Essas diligências informais podem ser melhor compreendidas através de alguns exemplos retirados da jurisprudência. Vide, quanto a esse respeito, casos de (a) policiais que vão até ao local denunciado anonimamente, encontrando os réus carregando veículo com produto embalado como se fosse alimento[4]; (b) policiais que, após denúncia anônima, se deslocam à residência de réu, que é surpreendido acessando o banco de dados de acesso restrito com senha obtida por meios ilegais[5]; e (c) policiais que, ao abordarem determinado indivíduo, reconhecem a verossimilhança de delação anônima de posse de arma de fogo com numeração suprimida[6].

Mas não é só a polícia que pode efetuar diligências informais buscando confirmar notícia anônima[7]. No exercício das atribuições e prerrogativas que lhe são atribuídas pela Constituição da República e pela legislação infraconstitucional[8], é facultado ao Ministério Público notificar testemunhas; realizar inspeções; ter livre acesso a qualquer local público ou privado, respeitadas as normas constitucionais pertinentes à inviolabilidade do domicílio; além de requisitar informações, exames, perícias e documentos.

Registre-se, contudo, que os procedimentos de averiguação em que as diligências preliminares não são efetivadas informalmente, mas sim por meio de despacho, tomada de declarações e relatórios formais, devidamente documentados ou identificados com o número da denúncia anônima recebida, procedendo-se, inclusive, à oitiva de supostas testemunhas, destoam do que é recomendado pela jurisprudência para essas hipóteses, na medida em que se equiparam a providências próprias de um processo administrativo de investigação efetivamente instaurado[9].

O que não se admite, em matéria de declarações de testemunhas anônimas num processo penal, é a imediata instauração do procedimento investigatório propriamente dito, sem que se tenha demonstrada nem a infração penal nem mesmo qualquer indicativo idôneo de sua existência. Essa constatação pode ser resumida da seguinte forma: nada impede a deflagração da persecução penal pela chamada denúncia anônima, desde que esta seja seguida de diligências destinadas a verificar se, dos fatos nela noticiados, há base para a instauração da respectiva investigação[10].

Daí a razão pela qual nossos tribunais de superposição terem por costume validar: (a) ação policial deflagrada a partir de denúncia anônima, com vistas à verificação de possíveis crimes contra a administração pública, e ulterior instauração de inquérito[11]; (b) diligências preliminares para apurar a veracidade das informações obtidas anonimamente e, só então, a instauração do procedimento investigatório propriamente dito[12]; (c) instauração de inquérito policial militar posterior a investigação preliminar motivada por denúncia anônima[13]; (d) investigação preliminar em data anterior à instauração do inquérito policial[14]; (e) investigações prévias, a partir de trabalho realizado pela ouvidoria de autarquia, referente a denúncias anônimas, que depois ensejaram a deflagração de inquérito policial[15].

Essa orientação não exerce papel menos importante na investigação e penalização das ilicitudes administrativas. É que, consoante assinala a literatura especializada, não obstante a existência de delação anônima, também aqui deverá a Administração Pública efetuar averiguações destinadas a apurar a real concreção daqueles comportamentos: "ocorrendo de a Administração vislumbrar razoável possibilidade da existência efetiva dos fatos denunciados anonimamente, deverá promover diligências e, a partir dos indícios coligidos nesse trabalho, instaurar a tomada de contas especial, desvinculando-a totalmente da informação anônima."[16]

Há, portanto, fronteiras claras à admissibilidade de um processo de investigação instaurado com base nas declarações de um terceiro anônimo, devendo o órgão responsável pela persecução penal cumprir as seguintes condições: (a) realizar diligências preliminares para apurar se as informações narradas na delatio criminis anônima são materialmente verdadeiras, antes de decidir pela instauração de um processo administrativo de investigação[17]; (b) servir-se de expedientes informais para a realização dessas diligências[18]; (c) respeitar, na execução das averiguações, os limites impostos pelos direitos fundamentais do cidadão[19]; (d) velar para que os direitos de defesa não sejam comprometidos no âmbito de processos de instrução prévia que possam ter caráter decisivo para a produção de provas de comportamentos suscetíveis de implicar responsabilidade penal.

* Este artigo contou com a colaboração de Pierpaolo Cruz Bottini.


[1] Cf. STJ, RHC 29.156/PR, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 19/06/2012, DJe 29/06/2012.

[2] Cf. PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal. 10ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 44.

[3] Cf. a seguinte assertiva, considerada errada pelo gabarito definitivo da prova objetiva do concurso público para provimento de cargos de analista de controle externo do TCU (2008): “A denúncia anônima, por violar a garantia constitucional de vedação ao anonimato, não pode ser aceita nem mesmo para iniciar um procedimento investigativo sigiloso, voltado a apurar a existência dos fatos apontados pelo denunciante”.

[4] Cf. TJSP, ACR 0069315-58.2006.8.26.0050, Comarca de São Paulo, Rel. Souza Nucci, 16ª Câmara de Direito Criminal, julgado em 14/08/2012, DJ 24/08/2012.

[5] Cf. TJSP, ACR 0000550-85.2009.8.26.0161, Comarca de Diadema, Rel. Souza Nucci, 16ª Câmara de Direito Criminal, julgado em 14/08/2012, DJ 24/08/2012.

[6] Cf. TJSP, ACR 0007797-96.2008.8.26.0050, Comarca de São Paulo, Rel. Souza Nucci, 16ª Câmara de Direito Criminal, julgado em 14/08/2012, DJ 24/08/2012.

[7] Cf. a seguinte assertiva, considerada correta pelo gabarito definitivo da prova objetiva do concurso público de provas e títulos para preenchimento de vagas e formação de cadastro de reserva para o cargo de Juiz de Direito Substituto do Tribunal de Justiça do Estado do Acre (2011): “Márcio, conselheiro tutelar, recebeu denúncia anônima, por telefone, a respeito do funcionamento de uma boate, instalada em uma casa no centro da cidade, onde meninas adolescentes eram supostamente mantidas para a prática de prostituição. Confirmada a existência de adolescentes desacompanhadas de pais ou representantes legais na referida residência, Márcio deverá providenciar o encaminhamento das menores aos seus responsáveis legais ou, na falta destes, o acolhimento institucional, comunicando o MP, via relatório minucioso, dos fatos e providências”.

[8] Cf. Constituição da República, art. 129, incisos VI, VIII e IX; Lei Complementar 75⁄93, art. 8º, incisos I, II, IV, V e VII e § 2º.

[9] Cf. STJ, HC 130.789/SC, Rel. Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 09/08/2011, DJe 26/08/2011.

[10] Cf. a seguinte assertiva, considerada correta pelo gabarito definitivo da prova objetiva do concurso público para provimento de cargos vagos de Advogado da União de 2ª Categoria (2012): “A jurisprudência do STJ admite a possibilidade de instauração de procedimento investigativo com base em denúncia anônima, desde que acompanhada de outros elementos”.

[11] Cf. STJ, HC 38.093/AM, Rel. Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, julgado em 26/10/2004, DJ 17/12/2004, p. 589.

[12] Cf. STF, HC 84.827/TO, Rel. Ministro Marco Aurélio, Primeira Turma, julgado em 07/08/2007, DJ 23/11/2007, p. 79.

[13] Cf. STJ, AgRg no Ag 1.346.501/MS, Rel. Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 02/08/2011, DJe 10/08/2011.

[14] Cf. STJ, HC 135.024/MT, Rel. Ministro Celso Limongi (Desembargador Convocado do TJ/SP), Rel. p/ Acórdão Ministro Haroldo Rodrigues (Desembargador Convocado do TJ/CE), Sexta Turma, julgado em 04/08/2011, DJe 17/10/2011.

[15] Cf. STJ, HC 146.021/SP, Rel. Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 23/08/2011, DJe 01/09/2011.

[16] Cf. FERNANDES, Jorge Jacoby. Tomada de Contas Especial. 2ª ed. Brasília: Brasília Jurídica, 1998, p. 51. Cf., ainda, a seguinte assertiva, considerada correta pelo gabarito definitivo da prova objetiva do concurso público destinado a selecionar candidatos para o provimento de vagas nos cargos de Oficial Técnico de Inteligência e de Agente Técnico de Inteligência, integrantes do Plano de Carreiras e Cargos da ABIN (2010):Claudius, servidor público federal, foi acusado de ter praticado ato considerado infração administrativa cuja sanção prevista é a demissão do serviço público. Além disso, esse ato é também capitulado como crime, cuja pena é de 6 meses a 2 anos de detenção. A administração pública teve ciência da prática desse ato por meio de denúncia anônima. Imediatamente após essa denúncia, foi aberta sindicância investigativa sigilosa, em 12/4/2004, a qual acabou por demonstrar a materialidade do fato e os indícios de participação de Claudius no evento. Em 4/3/2005, publicou-se a portaria instaurando-se o processo administrativo disciplinar, com prazo de conclusão de 60 dias, prorrogáveis por mais 60 dias, o que acabou acontecendo. Claudius se negou a participar da instrução, sendo nomeado defensor dativo. Somente em 30/7/2007, foi publicada a portaria de demissão de Claudius, fundada nas provas produzidas no processo administrativo disciplinar. Paralelamente, Claudius respondeu a ação penal, tendo sido condenado à pena de reclusão de 6 meses, que foi substituída por uma pena restritiva de direito. A denúncia anônima, na espécie, poderia justificar a instauração da sindicância investigativa sigilosa, com vistas a identificar a sua procedência, mas não poderia, por si só, justificar a imediata abertura de processo administrativo disciplinar, dado o princípio constitucional que veda o anonimato”.

[17] Cf. STF, HC 95.244/PE, Rel. Ministro Dias Toffoli, Primeira Turma, julgado em 23/03/2010, DJe 30/04/2010.

[18] Cf. STJ, HC 130.789/SC, Rel. Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 09/08/2011, DJe 26/08/2011.

[19] Cf. STJ, HC 137.349⁄SP, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 5⁄4⁄2011, DJe 30⁄05⁄2011.

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