Diário de Classe

Aula inaugural de Direito reúne profusão de expectativas

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23 de fevereiro de 2013, 8h17

Spacca
O mês de fevereiro marca o início do calendário escolar. As milhares de faculdades de Direito de todo o Brasil recebem um enorme número de estudantes – calouros, como se diz – com diferentes expectativas sobre o curso que começam a frequentar. Nesse contexto, flagrei-me refletindo sobre a tarefa dos professores que recebem os primeiranistas no primeiro dia de aula. Aquilo que aparenta ser uma atividade simples, de mera recepção dos calouros, acaba por se tornar uma missão complexa, se a olharmos com maior acuidade. O que dizer a eles? Atualmente, é mais do que sabido que o curso de direito é composto, na grade maioria das faculdades, por um corpo bastante heterogêneo de discentes. E os fatores idiossincráticos são de várias ordens: etária, econômica, social, de formação básica, de motivação para o ingresso no curso etc. etc. etc. Como atingir um interesse comum dentro desse universo multifacetado de identidades, algumas ainda em formação, de modo que o seu discurso possa ser ouvido e aproveitado pela maior parte possível dos acadêmicos iniciantes?

Vejam que a colocação dessa simples pergunta já nos leva, necessariamente, a uma série de outras tantas, tais quais: que tipo de abordagem escolher? A construção aleatória – por improviso – de argumentos ou uma seleção prévia de tópicos preparados e que sejam importantes para esse primeiro contato? E a postura? A do sábio conselheiro ou a do amigo bonachão que pode ser encontrado em endereços eletrônicos nem sempre existentes ou disponíveis?

Já fui convidado para proferir as famosas aulas inaugurais. Algumas vezes o convite me foi feito pelas coordenações dos cursos, noutras pelos próprios acadêmicos através de seus órgãos de representação (DAs, CAs etc.). Devo reconhecer que, mesmo já tendo enfrentado essa experiência outras vezes, nunca me sinto totalmente à vontade para falar em situações como essas. Eu particularmente tenho um certo pavor da postura predominante em tais casos: a do “sábio conselheiro”. Detesto, com todas as forças de meu eu, quando o conselho vem na forma de invocação dos exemplos de autoridade: do fulano, do beltrano ou do cicrano que conseguiram superar uns sem números de dificuldades e atingir os seus objetivos. Um passou em um concurso para a magistratura, estudava 12, 14 horas por dia e ainda trabalhava, viajava e sustentava a família (geralmente a “façanha” é aumentada de forma exagerada nessas ocasiões, justamente para que o efeito dramático seja mais enfatizado). Outro acreditava na carreira da advocacia privada. Esforçou-se para formar uma carteira própria e agora é um exemplo de prosperidade e de destreza profissional. Um terceiro seguiu brilhante carreira acadêmica e ingressou imediatamente em um mestrado, também com uma disciplina invejável de estudos e escrituração de textos.

Fico imaginando se tudo isso fosse apresentado em animações feitas em Power Point e que ecoasse ao fundo aquela música do Raul Seixas, Tente outra vez…  Seria praticamente um comercial de TV. E tão patético quanto. Evidentemente, as pessoas devem se orgulhar de suas conquistas. Mas o exemplo, assim, imposto logo no primeiro dia de curso, tem algo de perverso: a indicação de que aqueles que iniciam o curso, se quiserem ter sucesso na vida profissional que escolheram, devem seguir os passos e as escolhas de outras pessoas. Não escolhem no exercício de sua autonomia moral, mas com base no exemplo externo do sucesso alheio. Ainda que esse sucesso seja parcial. Eu mesmo já fui, com a melhor das intenções, elevado à condição de exemplo. E, em todas as vezes que isso ocorreu, eu me enrubescia. Por melhor que fosse a intenção de meu colega interlocutor, figurar naquela condição era algo incômodo e deveras pesado para mim que, como praticamente todo mundo da minha faixa etária, continuo diuturnamente buscando um significado e um valor para construir a minha vida. E, para isso, continuo fazendo escolhas e me responsabilizando por elas. Nada está terminado para que possamos fazer, sobre o todo da obra, uma avaliação positiva ou negativa.

Diante dos conselheiros e/ou exemplificadores, o único sentimento que eu posso ter é, como dizia o meu amigo Maurício Ramires, acídia. Termo que, segundo o dicionário Aurélio, significa: “abatimento do corpo e do espírito”. Ou seja, diante desse tipo de postura tenho dificuldades de esboçar qualquer reação, sinto apenas vontade de permanecer introspectivo. Mas, cá estou eu, externando minhas opiniões e tentando exercitar uma possibilidade alternativa para situações tão importantes como essas.

Recentemente, caíram em minhas mãos alguns livros do escritor estadunidense David Foster Wallace, morto – prematuramente – em 2008. Foster Wallace é aclamado no mundo literário norte-americano como o melhor autor de sua geração. E, lendo um de seus textos, fica fácil descobrir o porquê: trata-se de um tipo de escritor que consegue tornar fascinante a descrição de uma feira agropecuária interiorana.

Um de seus textos mais famosos – que circulou fortemente por toda a internet – chama-se: “Isto é água”, um discurso de paraninfo proferido no Kenyon College em maio de 2005. Certamente, essa é uma situação diferente daquela vivenciada no primeiro dia de aula. Na verdade, encontra-se situada no extremo oposto, no ato que formaliza a saída do acadêmico do curso universitário. Todavia, há uma grande semelhança entre essas duas situações: ambos os discursos sempre se apresentam recheados de conselhos, exemplos ou de “historinhas didáticas com ar de parábola” para conquistar retoricamente a audiência do auditório.

Ironicamente, Wallace começa o seu discurso com uma dessas historinhas. Diz ele: “dois peixinhos estão nadando e cruzam com um peixe mais velho que vem nadando em sentido contrário, que os cumprimenta dizendo: ‘Bom dia, meninos. Como está a água?’. Os dois peixinhos continuam nadando por mais algum tempo, até que um deles pergunta: ‘Água? Que diabo é isso?”.

De plano, o autor rejeita a interpretação mais convencional a respeito da estória. Não quer ele se colocar na condição do sábio peixe mais velho que ensina alguns truques da vida adulta ou profissional para os mais novos. O que ele pretende atingir com a sua proto-parábola é a demonstração de que “as realidades mais óbvias, onipresentes e fundamentais, são com frequência as mais difíceis de ver e conversar a respeito”.

No caso do nosso problema qual seria essa realidade óbvia e fundante? Penso que seria a necessidade de se ter uma conversa franca e aberta sobre o tipo de expectativa e experiência que se deve ter na vida acadêmica do direito. Há coisas importantes para serem ditas nessa seara e que, quase sempre, são deixadas de lado, eclipsadas por questões mais “agradáveis” ou simplesmente burocráticas.

O primeiro elemento que deveríamos colocar às claras no interior dessa conversa franca é algo que Wallace considera ser um clichê: que um curso universitário no âmbito das ciências humanas e sociais tem como meta não exatamente (ou tão somente) preencher os discentes de conteúdos, mas, antes, quer “ensiná-los a pensar”. Isso pode soar arrogante ou, até mesmo, extravagante. Como alguém pode pretender ensinar o outro a pensar? Todavia, alerta Wallace, ninguém deve ficar ofendido com esse clichê. Ao contrário, se olhá-lo mais de perto e procurar encontrar nele a profundidade que o reveste, irá reconhecer ali alguma verdade. Um curso de humanidades ou, principalmente, um curso de ciências sociais nos preparam para enfrentar as milhares de escolhas que teremos que realizar durante as nossas vidas. É aí que a minha implicância com os exemplos canta a sua nota mais alta: a escolha é um fardo pessoal. Insubstituível. Com o perdão do trocadilho infame, aquilo que nós faremos, as decisões que tomaremos em nossa vida pessoal ou profissional não é passível de substabelecimento. Precisamos estar preparados para enfrentá-las a partir de nós mesmos.

E é nesse sentido que o “ensinar a pensar” se coloca. Ensina-se e aprende-se a pensar a partir das circunstâncias mais triviais, como na determinação daquilo que é ou não relevante para ser pesquisado. Que tipo de abordagem atinge de forma mais segura o centro do problema que estou enfrentando? Se estou indo bem nas escolhas didáticas que faço etc. No fundo, esse “ensinar a pensar” está bem longe de ser uma atitude arrogante, mas, antes, demonstra um tipo muito específico de humildade perante o desconhecido: ter consciência de que, talvez, aquilo que se tenha por relevante não seja assim tão significativo quanto se pensava; ou ainda, que o modo como organizo minhas pesquisas, sejam elas acadêmicas ou profissionais, pode não ser tão bom como eu pensei. Enfim, ensinar a pensar quer dizer abalar a arrogância que se manifesta quando achamos – num rompante narcísico incontrolável – que já nascemos com esse tipo de sabedoria. Como diz Wallace: “ensinar a pensar nas ciências humanas tem a ver com isso: ser um pouco menos arrogante, ter um pouco mais de ‘consciência crítica’ a respeito de mim mesmo e das minhas certezas…”

Aprendemos a pensar para ter o controle sobre nós mesmos e nossas próprias vidas. Para construir, enfim, o sentido que nos sustenta. Esse dado simples, quase elementar, deveria possibilitar um redimensionamento das posições que hoje estão postas em um curso de direito. A relação professor-acadêmico, por exemplo. O acadêmico pode ser amigo do professor. Participar de festas e confraternizações e vários outros tipos de eventos. Mas, no momento em que entrarem na sala de aula, há uma rígida determinação de papéis. O professor fala e o aluno toma nota. E, perceba-se, isso não significa, necessariamente, respeito. A sala de aula pode estar em situação de “Estado de Natureza”, mas continuará a existir, de forma pré-definida, o papel do professor e o papel do aluno. Algumas faculdades de Direito mantêm ainda o vetusto recurso do tablado, um ponto elevado no interior do qual o professor se situa para proferir a sua aula, enquanto que os alunos ficam um nível abaixo. Essa configuração da sala de aula parece repristinar, simbolicamente, as origens da palavra “a-luno”, aquele que não tem luz, e que o professor deveria iluminar com a sua sabedoria.

Ora, essa é uma lógica que oprime tanto o professor quanto o “aluno”. O professor porque, diante de uma circunstância como essa, deve se portar como alguém onisciente. Qualquer deslize, qualquer lapso de memória, acaba sendo visto como um defeito ou um aspecto depreciativo da aula ministrada. Por outro lado, a opressão do “aluno” é auto evidente: ele não contribui para a composição do conteúdo – não aprende a pensar, poderíamos dizer –, mas apenas o recebe e, no mais das vezes, de forma acrítica.

É comum observarmos hoje o aparecimento de um tipo curioso de expert que pretende discorrer sobre as características da atual geração (a grande maioria que compõe o corpo discente do curso de direito). Chamam de geração “Y”. A característica principal tem a ver com uma certa capacidade de oposição ou de indignação… Algo do gênero. Mas, se olharmos para boa parte das “reivindicações” acadêmicas, das suas indignações, veremos que elas se enquadram mais na lógica do “acadêmico-consumidor” do que, propriamente, na lógica do “acadêmico-participativo”. Ou seja, a universidade acaba sendo a extensão de qualquer outro dispositivo de consumo e o “produto” pode ser devolvido quando ele não corresponder às nossas expectativas. A universidade, nesse sentido, é colocada no mesmo patamar de uma loja de conveniências ou de uma rede de hipermercados.

Uma história interessante: meu amigo Francisco Motta – que escreveu gentilmente e de forma brilhante a coluna da semana passada – me conta ecos de sua experiência na Universidade de Columbia, em Nova York. Diz ele que, assistindo a uma de suas aulas, ouviu o professor embaralhar o conceito com o autor: atribuiu o conceito a um autor quando, na verdade, era de outro. Ao final da sessão, de forma tímida e educada, Francisco se dirigiu ao professor e lhe perguntou se, ao se referir à ideia de “posição original” não teria querido dizer Rawls ao invés de Dworkin (esse foi o deslize cometido no caso). O professor riu e perguntou para ele o por quê de não tê-lo interrompido durante a aula para corrigi-lo. De sua parte, Francisco disse apenas que não sabia se lhe era permitido falar. E esse é o ponto importante: na aula seguinte, o professor fez um pronunciamento público antes do início da sessão. Comunicou o equívoco a todos e, na sequência, fez uma admoestação. Conclamou que, sempre que ocorresse algo parecido como a situação descrita, ele gostaria de ser interrompido e corrigido diante de todos. Todos eram iguais e poderiam, de forma ordenada, se pronunciar. Em arremate, disse o mestre: “a aula não trata de mim, mas das ideias que a gente discute. Não há coisa melhor, para um professor, do que ter seu argumento derrotado pelo de seus alunos”.

A história fez lembrar-me de Jacques Rancière e de seu fascinante O mestre Ignorante. Um livro sobre pedagogia que pretende demonstrar cinco passos para a emancipação intelectual. A premissa do texto é exatamente a igualdade na relação professor-aluno. Afinal, em algum sentido, todo mundo ignora alguma coisa. Mesmo o mais sábio dos mestres não escapa desse rigoroso efeito de nossa finitude.

De todo modo, não consigo evitar a tentação de imaginar o que ocorreria se esse pronunciamento ocorresse em uma das incontáveis salas de aula dos cursos de direito que temos por aqui. Será que haveria algum acadêmico – ofendido em seu direito de consumo de um serviço prestado adequadamente – que faria um protesto formal na coordenação do curso contra o professor que “gosta de ter seus argumentos derrotados pelos dos alunos”? Não quero responder à questão. Admito que pode haver exceções que compreendam de forma adequada o significado da vida acadêmica. No mais, se a resposta for negativa, ótimo! Eu adorarei estar errado. Mas, se a resposta for positiva, teremos a comprovação de que vige entre nós a medieval estrutura de dominação e hierarquia no processo de aprendizagem, apimentada, hodiernamente, pelos percalços de nossa sociedade de consumidores.

Para encerrar, um último esclarecimento. Não estou pregando aqui uma espécie de “crepúsculo dos mestres”, algo como uma paródia de Nietzsche. A minha implicância com os “exemplos” nada tem a ver com o importante papel que o mestre desempenha na formação de nossa individualidade. O grande mestre não subtrai do aluno a sua escolha moral. Ao contrário, coloca-o em condições de realizá-la. Durante a minha formação acadêmica, tive muitos mestres. Alguns vivos, outros mortos. Alguns efetivamente presentes em minha vida, outros presentes na forma de livro. De qualquer modo, a relação que temos com os nossos mestres não é uma relação hierárquica. A autoridade que eles desempenham sobre nós não se instala em face de uma relação de subordinação, mas, sim, de respeito e de reconhecimento. A autoridade legítima, diria Gadamer, é aquela que se reconhece espontaneamente. Autoridade imposta é um ato de violência. Os mestres, nós também os escolhemos a partir das configurações culturais que partilhamos com eles. E eles, por sua vez, ajudam-nos  a entender as escolhas que teremos que fazer. Eu fiz as minhas. Se boas ou más, ainda é cedo para saber. Mas o importante é que foram minhas.

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