Consultor Tributário

Uma chance de corrigir nossa tributação internacional

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20 de fevereiro de 2013, 17h10

No sábado dia 2 de fevereiro, enquanto os blocos já agitavam as ruas cariocas na semana que antecedia o Carnaval, e a Bahia celebrava o dia de Iemanjá, lá estávamos nós — quatro brasileiros — em Haia, tendo a honra de participar do evento de comemoração dos 75 anos de fundação da International Fiscal Association (IFA)[1].

A IFA foi fundada em janeiro de 1938 no Palácio da Paz[2] em Haia, às vésperas da anexação da Áustria pela Alemanha nazista (o Anschluss foi em março) e das demais hostilidades que detonariam a Segunda Guerra Mundial. Daí a escolha do local para a celebração de seu septuagésimo quinto aniversário.

Dedicada ao estudo e aperfeiçoamento do direito tributário internacional e das finanças públicas, a IFA hoje conta com aproximadamente 12.500 membros distribuídos por 108 países, contando com “filiais” (IFA Branches) em 63 deles.

De início, um tanto “eurocêntrica”, a IFA tem cada vez mais se preocupando em integrar os países em desenvolvimento, o que se revela e confirma pelo fato de ser atualmente presidida pelo mexicano Manuel Tron, que deixará o cargo em 2013, ao fim do Congresso Anual, a ser realizado na última semana de agosto em Copenhague, assumindo em seu lugar o indiano Porus Kaka.

A importância do Brasil na IFA tem sido cada vez maior, tanto que o Rio de Janeiro foi escolhido como sede do Congresso Anual de 2017. O evento, que é a “olimpíada” do Direito Tributário, conta com cinco mil participantes de inúmeros países e a Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF)[3] — a IFA Branch no Brasil — já está trabalhando intensamente na sua preparação.

Para aqueles que ainda não a conhecem, a ABDF é uma tradicionalíssima associação de tributaristas, representante da IFA e do Instituto Lationoamericano de Derecho Tributario – ILADT no Brasil, e tem atualmente como presidente o professor Sacha Calmon e como diretor secretário geral nosso colega colunista Gustavo Brigagão a quem publicamente agradecemos por nos ter aberto a oportunidade de participar do evento em representação da ABDF, juntamente com os colegas de profissão André Carvalho e João Dácio Rolim, membros da diretoria da associação. O quarto brasileiro em Haia era uma brasileira, Ana Cláudia Utumi, diretora da ABDF em São Paulo, que vem exercendo há três anos, com maestria e dedicação, as funções de membro do Comitê Científico Permanente (Permanent Scientific Committee – PSC) da IFA[4].

O evento contou com palestras e mesas de debate integradas pelos maiores especialistas em tributação internacional[5]. Lá estava Kees van Raad —o celebrado professor da Universidade de Leiden — que nos brindou com uma palestra a respeito da evolução dos tratados contra a dupla tributação e o papel desempenhado pelas organizações internacionais (Liga das Nações, OCDE, ONU) na concepção dos respectivos modelos. O professor van Raad também identificou as questões que mais têm despertado polêmica atualmente no domínio dos tratados e quais os mecanismos que considerava apropriados para suas resoluções: algumas se solucionariam com mudanças pontuais ao texto do tratado; já outras dependeriam de acordos multilaterais e, a grande maioria, exigiria mudanças nas leis internas.

As reflexões de van Raad reforçaram nossa convicção que no mundo atual, integrado e globalizado, é imperativo que a produção de leis nacionais seja coordenada e condizente com os padrões internacionais.

Lamentavelmente esse não tem sido o caso do Brasil. Falta humildade ao nosso “Fisco-legislador” para reconhecer os inúmeros desacertos da nossa legislação em matéria de tributação internacional e procurar corrigi-la para compatibilizá-la com as regras uniformemente adotadas pela comunidade internacional.

Mas se falta humildade, não falta criatividade. Nunca se produziram tantas instruções normativas e atos declaratórios unicamente com o propósito de tentar dar fundamento às peculiares regras e interpretações made in Brazil, as “jabuticabas” fiscais, que apenas existem no Brasil.

Em nossa coluna mensal temos sistematicamente criticado tal conduta: atos declaratórios que afirmam a existência de tributação na fonte em pagamentos de serviços sem transferência de tecnologia; decisões administrativas que insistem em não reconhecer a aplicação dos tratados à contribuição social sobre o lucro; regras de preços de transferência engessadas, muitas vezes de impossível aplicação; e, fundamentalmente, não reconhecer, com transparência, as inúmeras vicissitudes das normas que regem a tributação automática no Brasil dos lucros obtidos (e não distribuídos) por sociedades estrangeiras controladas ou coligadas de empresas brasileiras.

No que concerne especificamente à legislação brasileira em matéria de tributação dos lucros de controladas e coligadas no exterior as vicissitudes manifestam-se em quatro principais vertentes:

(i) incompatibilidade com o art. 43 do CTN, que repudia ficções e presunções, exigindo a efetiva aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica da renda como condição sine qua non para a configuração do fato gerador do imposto de renda;

(ii) total e absoluta falta de suporte legal para a tributação do “resultado positivo da equivalência patrimonial”, pretensão inovadora, baseada em instrução normativa (a IN SRF n.º 213/02);

(iii) irracionalidade econômica, eis que cria um sistema de tributação punitivo, que desmotiva o investimento brasileiro no exterior, principalmente nos países de menor desenvolvimento que conferem incentivos fiscais que são eliminados pelo sistemática de tributação automática brasileira; e

(iv) incompatibilidade com os tratados contra a dupla tributação, que exigem que cada um dos Estados não tributem lucros de empresas situados no outro Estado.

Infelizmente o “Fisco-legislador” tem preferido usar de sua criatividade não para corrigir os desacertos e, de forma concertada com a iniciativa privada, gestar uma legislação condizente com as práticas internacionais e equilibrada para alinhar os interesses em presença. Não, a criatividade, como se viu, serve para editar atos administrativos desprovidos de fundamentação e que acabam por ser uma das principais causas do “entupimento das artérias” do Poder Judiciário.

Exemplo paradigmático, insistimos, é o caso do artigo 25 da Lei 9.249/95 e do artigo 74 da MP 2.158-35/01 cuja constitucionalidade segue em discussão perante o Supremo Tribunal Federal.

E, como noticiou na segunda-feira a ConJur, nesta quarta-feira (20/2) está na pauta do Plenário do STF para julgamento o RE 611.586/PR, ao qual foi reconhecida repercussão geral (Caso Coamo).

Com o resultado indefinido da ADI 2.588 e a substituição de um relevante número de ministros que havia participado do seu julgamento, iniciado há mais de 10 anos, espera-se que a matéria volte a ser discutida pela nova composição plenária no RE 611.588/PR, desta feita inclusive sob o enfoque da competitividade das empresas brasileiras investidoras em terceiros países através de controladas e coligadas, como se depreende das palavras do Ministro Joaquim Barbosa na decisão que reconheceu a repercussão geral no processo em questão:

“(…) Ademais, é imprescindível contextualizar a tributação quanto aos seus efeitos sobre a competitividade das empresas nacionais no cenário internacional, à luz do princípio do fomento às atividades econômicas lucrativas geradoras de empregos e de divisas (art. 3º, II, 4ª, IX e par. ún. e 170, I, III, IV, VII e VIII da Constituição)”.

Esse julgamento será um caso de “repercussão geral” em todos os sentidos. Para além da proteção do patrimônio das empresas brasileiras que investem no exterior e dos seus sócios ou acionistas contra uma tributação iníqua, exsurge o imperativo de corrigir os rumos e posicionar o Brasil modernamente no cenário mundial, induzindo a produção de uma legislação tributária à altura dos padrões e usos internacionais. O Brasil não pode ficar mais isolado, insistindo em manter uma legislação esdrúxula, que só existe aqui.

Espera-se que o STF — mais uma vez tendo que dar a palavra final ante a incapacidade de se produzir uma legislação em conformidade com a Constituição[6] — retire a fórceps todos os resquícios e entraves dessa legislação, assegurando a diretriz constitucional de uma tributação justa, digna, racional e equilibrada nesse domínio, como, aliás, sucede em todos os países do mundo: a tributação de investimentos no exterior incide apenas quando os lucros deles decorrentes forem distribuídos para os sócios ou acionistas[7].

Os profissionais do direito tributário que representam o Brasil em congressos e fóruns internacionais sobre a matéria agradecerão penhorados, pois não terão mais que, como tem sucedido há anos, tentar explicar as inexplicáveis idiossincrasias de nossa atual legislação tributária internacional.


[1] Para obter mais informações sobre a organização recomendo uma visita ao site www.ifa.nl

[2] O Vredespaleis – Palácio da Paz – é onde estão sediados a Corte Internacional de Justiça e o Tribunal Permanente de Arbitragem.

[3] Para obter mais informações sobre a organização recomendo uma visita ao site www.abdf.com.br

[4] O nosso colega colunista Professor Heleno Torres é membro do Comitê Executivo da IFA, mas, por compromissos profissionais, não pode comparecer ao evento de Haia.

[5] Seguindo a ordem do programa: Kees van Raad, Hugh Ault, Jacques Malherbe, Augusto Fantozzi, Philip Baker, Richard Vann, David Rosenbloom, Porus Kaka, Liselott Kana, Krister Andresson e Manuel Tron. Também apresentaram trabalhos os doutorandos do IBFD Bob Michel, Emily Fett e Sandra Fernandes.

[6] Nesse sentido, vejam-se as ponderações do Ministro Joaquim Barbosa no voto que reconheceu repercussão geral do RE 611.586/PR: “ (…) nessa controvérsia lida com dois valores constitucionais relevantíssimos. De um lado, há a adoção mundialmente difundida da tributação em bases universais, aliada à necessidade de se conferir meios efetivos de apuração e cobrança à administração tributária. Em contraponto, a Constituição impõe o respeito ao fato jurídico tributário do Imposto de Renda, em garantia que não pode ser simplesmente mitigada por presunções ou ficções legais inconsistentes.”

[7] Excetuadas, obviamente, as normas do tipo CFC, aplicáveis aos chamados “paraísos fiscais”.

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