Aasp 70 anos

Cotidiano do advogado é razão de ser da Aasp

Autor

  • Manuel Alceu Affonso Ferreira

    é advogado juiz aposentado do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo ex-conselheiro da Associação dos Advogados de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil e da seccional paulista da OAB e ex-secretário de Justiça do estado de São Paulo.

18 de fevereiro de 2013, 14h53

"Advogado pela feição combativa do seu temperamento, advogado pela paixão veemente da liberdade, advogado pela fé nas garantias judiciárias, advogado pelo civismo e destemor das atitudes." Era desse modo que o ministro Castro Nunes aludia a Rui Barbosa, lançando no elogio as ideias e os conceitos que, sem medo de incorrer em exageros, me permito transferir à Associação dos Advogados de São Paulo no momento em que comemoramos, todos nós — inclusive e especialmente o caridoso leitor —, o seu septuagésimo aniversário.

Temos ambos, a Aasp e eu, a mesma exata idade. Nascemos juntos. Ela, todavia, com o mérito da proficuidade e a vantagem da perenidade. É imortal, não só pelo que já fez, mas sobretudo pelo que atualmente faz e ainda fará ad omnia. Sem a Associação, a advocacia brasileira não teria alcançado o atual estágio. Mas, sadiamente ambiciosa e progressista, essencialmente revisora e renovadora, não se satisfaz com aquilo que alcançou, a cada momento passando-se a limpo.

Dizia o professor José Frederico Marques que as maiores contribuições prestadas à prática processual no século XX foram "o Código do Theotonio" e o "Boletim da AASP". Que Chiovenda, que Carnelutti, que nada! Importante, mas importante mesmo para o aperfeiçoamento procedimental, eram as notas de Negrão e a jurisprudência que a Associação quinzenalmente divulgava. Não obstante respeitável e útil, o resto era o resto, das obras científicas às conferências e aos simpósios.

Livre do paquidérmico oficialismo que dificulta os trabalhos da Ordem, e sem almejar a sofisticação intelectualizante do benemérito Instituto, a Aasp encontrou a causa existencial e o ânimo inspirador no quotidiano do advogado. Aquilo que a interessava — e continua preocupando-a — não era a diferença conceitual entre notificação e intimação; tampouco as distinções que extremam as coisas julgadas formal e material; menos ainda as especificidades que apartam a culpa consciente do dolo eventual. Tudo isso, e muito mais, há de ser submetido à Doutrina e aos Pretórios. A função da Associação é outra, nem mais nem menos importante, simplesmente outra, porquanto consciente de que dos elevadores do "João Mendes" a Academia jamais deverá tratar.

"Chegaram as publicações?", era a pergunta que, em todos os meios-dias, de segunda a sexta, os escritórios de advocacia lançavam a si mesmos, buscando localizar os famosos "recortes" que marcavam a prolação de sentenças e decisões, o início dos prazos, a designação de audiências e sessões de julgamento, a solução de pedidos interlocutórios e a ordem para a complementação das custas. Caso o bendito "recorte" não chegasse, era porque nenhuma comunicação de ato processual acontecera. Afinal, embora não ocupando o trono de Pedro, a Aasp detinha o dogma da infalibilidade. Entre o "Diário Oficial" e o "Serviço de Recortes", este é que usufruiria da presunção absoluta, juris et de jure, de existência e legitimidade…

Ao Conselho Diretor da Associação, no qual permaneci por curtíssimos (para mim) oito anos, fui levado em 1971 pelo braço amigo e carinhoso de Waldemar Mariz de Oliveira Júnior. Desde o primeiro dos meus sucessivos mandatos, e no melhor aprendizado ético-técnico que poderia obter, lá me relacionei com inesquecíveis companheiros de viagem: Alcyr de Toledo Leite — um "gentleman" de borda e capelo —; Antonio Cláudio Mariz de Oliveira; Briand Collin Ferreira — onde andas, Briand querido? —; Diwaldo Azevedo Sampaio; Flávio Flores da Cunha Bierrenbach; Garibaldi de Mello Carvalho — aristocrata no conteúdo e no estilo —; Henri Aidar; Hermenegildo Valente; Homero Alves de Sá — a quem tenho o prazer de reencontrar nas eleições do Iasp —; Jayme José Martos Cueva — dono de uma rara inteligência ampliada pela mais fina das ironias —; Joaquim Pacheco Cyrillo — que sem desanimar tentava levar-me às missas de Santo Ivo por ele organizadas —; José Carlos Arouca; José Carlos Dias; José de Castro Bigi — velho Bigi! —; José Edmur Vianna Coutinho — muita saudade, amigo! —; José Paulo de Toledo Nacarato; Luiz Geraldo Conceição Ferrari; Manoel Esteves Galinski — até hoje ouço o seu vozeirão candente e cativante —; Mário Sérgio Duarte Garcia; Miguel Reale Júnior — os dois últimos, ao lado do Antonio Cláudio, até hoje os meus mais próximos conviventes —; Raif Kurban; Roger de Carvalho Mange — pai do Renato e herói de guerra —; Rubens Ignácio de Souza Rodrigues; Ruy Homem de Melo Lacerda; Salim Arida — sempre elegante "a bordo" de um linho 120 impecavelmente branco —; Sérgio Marques da Cruz — que ensaiou, sem sucesso, ensinar-me a arte do crasear —; Wadih Aidar Tuma; mestre Walter Ceneviva; e o não menos mestre Walter Maria Laudísio.

Nas sessões quinzenais mantidas pelo Conselho no prédio do Largo de São Francisco, os debates esquentavam. Os projetos legislativos eram esmiuçados, dividindo-se o plenário. A unanimidade era incomum, até mesmo quanto às propostas aparentemente simpáticas à classe. Éramos intimistas, confidentes, solidários e generosos. A Associação não reunia os noventa e dois mil associados de hoje, as violações de prerrogativas eram rarefeitas e contadas nos dedos, os adversários, mais conhecidos e cordiais, a falta do "data venia" constituia ofensa de lesa-majestade… Jamais imaginaríamos que, no futuro por vários de nós hoje vivenciado, o papel de petição viesse a ser substituído pelos mistérios de uma coisa chamada "Internet", ou que se tornaria possível, sem visitas aos cartórios, saber sobre o andamento dos feitos que patrocinávamos, ou que a veracidade das nossas assinaturas pudesse reclamar uma tal "autenticação eletrônica", algo com que o século XXI deu nova roupagem ao reacionário e por nós vituperado "reconhecimento de firma".

É, o Brasil e o mundo mudaram, a sociedade mudou e, consequentemente, nós mudamos e a Aasp também mudou. Novidades chegaram, os tipos humanos e os comportamentos se modificaram, a economia exigiu o surgimento dos "escritórios ônibus" que, com a mesma imperturbabilidade e igual eficiência, lidam com as multas de trânsito, as gigantescas fusões, os passes dos Neymares e os quiçá projetados investimentos da Goodyear em Marte.

A advocacia romântica bateu asas e voou. Os patronos e os tribunos das gerações passadas são nomes radicalmente ignorados pela esmagadora maioria dos bacharéis do presente. Sobral Pinto, Noé Azevedo, San Tiago Dantas e Raimundo Pascoal Barbosa surgem como figuras nebulosas que, quando não equiparadas a precursores da bossa-nova, são erigidos, como certa feita ouvi, à condição de exploradores da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Nesse abismo de desdéns e negligências educacionais, a historiografia e as tradições forenses tornaram-se bens culturais de terceira classe. As demandas judiciais, sabe Deus a razão, passaram a ser intentadas "em face" de alguém. Sustentações orais e petições veem-se lavradas sem qualquer reverência vernacular. A nossa recepção nos gabinetes judiciais acabou sendo uma aventura sujeita aos humores do anfitrião ou, mas ainda assim nem sempre, à nomeada do visitante.

Contudo, nisso tudo não se enxergue um saudosismo ranzinza, derrotista e derrotado, do septuagenário escriba. Para a Associação, desafios dessa ordem não carregam ineditismo. Ela já enfrentou batalhas assemelhadas e, a todas, venceu folgadamente. Sempre que compareço à portentosa sede da Álvares Pentedo, nela cruzando com os jovens e notáveis talentos que dirigem a Aasp, e com aqueles que ministram ou frequentam os seus cursos, sinto reforçada a certeza de que não nos deixaremos dominar pela massificação demagógica, pelo agnosticismo jurídico ou pela agressividade botequineira.

A associação da qual tanto me orgulho é o sinal concreto e vibrante de que a profissão reclama atenções e cuidados, incentivos e advertências, palmas e palmadas, e por isso não cederá aos modismos, nem abdicará do que lhe pareça adequado aos procedentes anseios da categoria. Envelhecidos e entristecidos ao ter que fazê-lo, passamos o bastão, é verdade. Mas isso não significou, nem significa, desesperança alguma, apenas a convicção de que outros, mais entusiasmados e menos desencantados, mais preparados e menos desatualizados, saberão melhor carregá-lo.

Parabéns, Aasp!

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    é advogado, ex-conselheiro da Associação dos Advogados de São Paulo, da Ordem dos Advogados do Brasil e da seccional paulista da OAB, ex-secretário de Justiça do estado de São Paulo e ex-juiz do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo. É membro do Conselho Deliberativo do Instituto dos Advogados de São Paulo, do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos e Legislativos da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo e do Centro de Estudos Estratégicos e Avançados do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo.

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