Embargos Culturais

A análise de Montesquieu sobre a tributação

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

17 de fevereiro de 2013, 11h47

Em L’Espirit des Loix (O Espírito das Leis) Montesquieu dedicou o livro décimo terceiro para comparar modelos tributários. O referido excerto denomina-se Das relações que a arrecadação dos tributos e a grandeza das rendas públicas têm com a liberdade. Montesquieu comparou modelos de tributação para questionar imposições fiscais e exercício de liberdades. O ponto de partida identifica teorização referente às finanças públicas:

As rendas do Estado são uma parcela que cada cidadão dá de seu bem para ter a segurança da outra ou para fruí-la agradavelmente. Para fixar corretamente essas rendas, cumpre considerar as necessidades do Estado e as necessidades dos cidadãos. Não se deve tirar das necessidades reais do povo para suprir as necessidades imaginárias do Estado. Necessidades imaginárias são as exigidas pelas paixões e fraquezas dos que governam, a atração de um projeto extraordinário, o desejo doentio de uma glória inútil e uma certa impotência do espírito contra os caprichos. Amiúde, os que, com um espírito inquieto, estavam na direção dos negócios sob o governo do príncipe julgaram que as necessidades do Estado eram as necessidades de suas almas insignificantes. A sabedoria e a prudência devem regulamentar tão bem como a porção do que se retira e a porção que se deixa aos súditos (MONTESQUIEU, 1982, p. 241).

O filósofo francês investigou vários modelos tributários de modo a evidenciar alguns equívocos que se praticavam em solo francês. Montesquieu identificou circunstâncias que assinalou como casos semelhantes. O autor de O Espírito das Leis procurou tirar conclusões, a partir de juízos de comparação e assim, por exemplo:

Quando uma república reduziu uma nação a cultivar as terras para ela, não se deve permitir que o cidadão possa aumentar o tributo do escravo. Isso não era permitido na Lacedemônia [Esparta]; imaginava-se que os helotas cultivariam melhor as terras se soubessem que sua servidão não seria aumentada ainda mais; acreditava-se que os senhores seriam melhores cidadãos quando só aspirassem ao que estavam acostumados a possuir (MONTESQUIEU, 1982, p. 243). 

Observando as várias práticas exacionais que então se conhecia, Montesquieu desenhou quadro elegante da tributação em seu tempo, aparentemente buscando o que seria melhor para a França. Por exemplo:

Pedro I, pretendendo imitar a prática da Alemanha e arrecadar seus tributos em dinheiro, estabeleceu um regulamento muito sábio que ainda hoje é observado na Rússia. O gentil-homem cobra a taxa de seus camponeses e a paga ao czar. Se o número de camponeses diminui, ele pagará do mesmo modo; se o número aumentar, ele não pagará mais; está portanto interessado em não vexar seus camponeses (MONTESQUIEU, 1982, p. 243).

Ainda teoricamente, Montesquieu questionava as melhores fórmulas de tributação, adiantando-se em discussão contemporânea, relativa à tributação dos salários ou do consumo. Afirmou que em um Estado, quando todos os indivíduos são cidadãos, e quando cada um possui por seu domínio o que o príncipe possui por seu império, pode-se taxar as pessoas, as terras ou as mercadorias; duas delas ou todas as três (MONTESQUIEU, 1982, p. 243). O pensador francês também problematizou questões que lembram temas de tributação indireta. De tal modo,

Os direitos sobre as mercadorias são os que os povos menos sentem, porque não se lhe faz uma arrecadação formal. Podem eles ser tão sabiamente manipulados que o povo quase ignorará que os paga. Por isso, é muito importante que quem vende a mercadoria seja quem pague o direito. Ele saberá muito bem que não é ele quem paga e o comprador, que é quem efetivamente paga, o confunde com o preço. Alguns autores disseram que Nero suprimira o direito do vigésimo quinto escravo vendido; entretanto, não fizera ele outra coisa senão ordenar que seria o vendedor que o pagaria e não o comprador; este regulamento que conservara todo o imposto pareceu suprimi-lo (MONTESQUIEU, 1982, p. 244).

As observações de Montesquieu indicavam a necessidade de se implementarem modelos simplificados de arrecadação. Para o filósofo do iluminismo francês:

Os tributos devem ser facilmente compreendidos e tão claramente estabelecidos que não possam ser aumentados nem diminuídos pelos que os arrecadam. Uma porção sobre os frutos da terra, uma taxa por cabeça, um tributo por tanto por cento sobre as mercadorias, são os únicos convenientes (MONTESQUIEU, 1982, p. 246).

O método comparativo de Montesquieu avaliava também a prestabilidade das penas fiscais. É disso que trata o seguinte excerto:

É uma particularidade das penas fiscais serem, contra a prática geral, mais severas na Europa do que na Ásia. Na Europa, confiscam-se as mercadorias e, algumas vezes, inclusive os navios e os meios de transporte; na Ásia, não se faz nem uma coisa nem outra. É que na Europa os comerciantes têm juízes que podem garanti-los contra a opressão; na Ásia, os juízes despóticos são os próprios opressores. Que faria um comerciante contra um paxá que resolvesse confiscar-lhe as mercadorias? É a vexação que supera a si própria e vê-se constrangida a uma certa brandura. Arrecada-se, na Turquia, apenas um único direito de entrada; e depois disso, todo o país está aberto aos mercadores. Não implicam falsas declarações nem confisco, nem aumento dos direitos. Na China, não se abrem os fardos das pessoas que não são comerciantes. A fraude, entre os mongóis, não é punida com o confisco, mas com a duplicação dos direitos. Os príncipes tártaros, que na Ásia habitam as cidades, quase nada arrecadam sobre as mercadorias em trânsito. No Japão, o crime de fraude no comércio é considerado crime capital, é porque há motivos para proibir toda comunicação com os estrangeiros e porque a fraude é, aí, antes uma contravenção às leis de segurança do Estado do que às leis da segurança do Estado e às leis do comércio (MONTESQUIEU, 1982, p. 246).

Montesquieu interessava-se por todos os sistemas tributários que tinha notícias e em relação a eles montava interessante painel que lhe possibilitava pensar o sistema fiscal francês. Assim,

Regra geral: pode-se arrecadar tributos mais elevados, na proporção da liberdade dos súditos, e é-se forçado a moderá-los na medida em que a servidão aumenta. Isso sempre aconteceu e acontecerá sempre. É uma regra extraída da natureza que nunca varia; encontramo-la em todos os países, na Inglaterra e na Holanda e em todos os Estados em que a liberdade vai se degradando, até na Turquia. A Suíça parece ser uma exceção porque lá não pagam tributos. Não sabemos o motivo específico disso, mas esse país confirma também o que afirmo. Nas suas montanhas estéreis, os víveres são tão caros e o país tão povoado que um suíço paga quatro vezes mais à Natureza do que um turco paga a um sultão (MONTESQUIEU, 1982, p. 247).

Montesquieu abriu capítulo próprio para tratar da isenção de tributos e também para prever questões orçamentárias, conjeturando que:

A máxima dos grandes impérios do Oriente de dispensar do pagamento de tributos as províncias arruinadas, deveria ser muito imitada nos Estados monárquicos. Em alguns, de fato, ela já existe, porém oprime mais do que se não existisse porque, não arrecadando o príncipe nem mais nem menos, todo o Estado torna-se solidário. Para aliviar uma aldeia que paga com dificuldade, sobrecarrega-se outra que paga melhor; não se restabelece a primeira, destrói-se a segunda. O povo fica desesperado entre a necessidade de pagar, o medo das exações, o perigo de pagar e o temor das sobrecargas. Um Estado bem governado deve colocar, como primeiro artigo de sua despesa, uma soma regulamentada para os casos inesperados. Ocorre com o público a mesma coisa que ocorre com os indivíduos: arruínam-se quando despendem exatamente a renda de suas terras (MONTESQUIEU, 1982, p. 250).

Insistindo na formalidade e na boa organização do modelo de arrecadação, Montesquieu imaginava modelo fiscal marcado pela transparência e pela racionalidade:

A arrecadação oficial é a administração de um pai de família que obtém, ele próprio, com economia e ordem, as suas rendas. Pela arrecadação oficial, o príncipe está em condições de apressar ou retardar a arrecadação dos tributos, de acordo com suas necessidades, ou de acordo com a necessidade de seus povos. Pela arrecadação oficial ele poupa ao Estado os imensos lucros dos contratadores que o empobrecem de mil maneiras. Pela arrecadação oficial, poupa ao povo o espetáculo das fortunas súbitas que afligem. Pela arrecadação oficial, o dinheiro arrecadado passa por poucas mãos, indo diretamente ao príncipe e, consequentemente, retorna mais rapidamente ao povo. Pela arrecadação oficial, o príncipe poupa ao povo uma infinidade de leis nefastas que a avareza importuna dos contratadores sempre lhe exige, e que mostram uma vantagem presente nos regulamentos funestos do futuro (MONTESQUIEU, 1982, p. 251).

O contratador criticado por Montesquieu era quem comprava adiantadamente os direitos de cobrar impostos, enviando aos príncipes parcelas calculadas sobre os valores que seriam arrecadados. Contratadores eram figuras odiadas. O Brasil conheceu a figura do contratador das minas, que muita fúria promovia nas populações que pagavam tributos à coroa portuguesa, por meio do referido cobrador de impostos. Montesquieu não perdoava os contratadores e os atacava de forma veemente:

Tudo está perdido quando a profissão lucrativa dos contratadores consegue, por suas riquezas, ser uma profissão honrada. Isto pode ser conveniente nos Estados despóticos em que, amiúde, seu emprego é uma parte das funções dos próprios governantes. Mas não é conveniente na república; e algo semelhante destruía a república romana. Isso também não é melhor na monarquia; nada é mais contrário do que isso ao espírito desses governos. A mágoa apodera-se de todos os outros Estados; a honra perde toda sua consideração, os meios lentos e naturais de ascensão perdem seu prestígio e o governo é afetado em seu princípio (MONTESQUIEU, 1982, p. 252).

Montesquieu vinculou a cobrança dos tributos à atuação do homem público em relação ao bem comum. E assim encerrou o referido capítulo sobre tributação:

Há um prêmio para cada profissão. O prêmio dos que arrecadam os tributos são as riquezas, e as recompensas dessas riquezas são as próprias riquezas. A glória e a honra cabem a esta nobreza que só conhece, que só vê, que só sente como verdadeiro bem a honra e a glória. O respeito e a consideração cabem a esses ministros e magistrados que, só encontrando trabalho sobre trabalho, velam pela noite e dia pela felicidade do império (MONTESQUIEU, 1982, p. 252).

Montesquieu compreendeu a importância da tributação e, de certa forma, insinuou que o bom gasto público é, certamente, o antídoto mais potente e o termômetro mais fiel para todos os regimes tributários que há. E porque não há direitos sem recursos que os garantam, e nem serviços públicos sem fontes de financiamento, não se tem, até hoje, outra fórmula de obtenção de recursos, que não a tributação, ou a inflação. Nesta última, vinga o descontrole e a baixa-estima; naquela primeira, tem-se oportunidade para o controle e para a discussão pública. 

Bibliografia

MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat, Barão de. O Espírito das Leis. Brasília: UnB, 1982.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!