Controle da gestão

Contabilidade criativa pode ser prejudicial

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  • Matheus Carneiro Assunção

    é Procurador da Fazenda Nacional Especialista em Administração Pública pela Fundação Getulio Vargas (FGV) Mestre e Doutorando em Direito Econômico e Financeiro pela Universidade de São Paulo (USP).

16 de fevereiro de 2013, 6h34

No apagar das luzes do exercício financeiro de 2012, um pacote de medidas contábeis “criativas” buscou permitir o cumprimento da meta anual de superávit primário traçada pela Lei de Diretrizes Orçamentárias (Lei 12.465/2011). Entretanto, no mesmo passo em que procurou bater formalmente a meta, a contabilidade “criativa” instaurou uma crise de relacionamento com o direito financeiro. Uma crise que, aliás, vem dando o que falar na mídia, inclusive internacionalmente.

Reportagem recente da revista britânica The Economist[1], de 17 de janeiro de 2013, chamou a atenção para os riscos dos artifícios utilizados para se chegar aos números traçados como alvo pelo governo, opinando que mudar as metas seria uma maneira melhor do que recorrer à contabilidade “criativa” (creative accounting), que ameaça a reputação de sobriedade fiscal arduamente conquistada pelo Brasil. Essa reputação, sem dúvida alguma, se deve em boa parte à Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/2000), a qual estabeleceu regras e princípios para a gestão financeira responsável e a transparência das contas públicas. Algumas regras, aliás, não muito bem vistas no meio político, em virtude das limitações que criam para as despesas públicas e o endividamento dos entes federados.

A própria Lei de Responsabilidade Fiscal, porém, também acabou sendo alvo de projeto de reforma (PLP 238/2013), encaminhado pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional na mesma época em que o pacote de criatividade contábil “saiu da cartola”. Sinal aparente de que alguns das regras de direito financeiro que limitam o grau de criatividade possível no balanço das contas públicas são indesejáveis politicamente.

O caminho adequado, porém, não é mudar as regras do jogo, trazidas pela Lei de Responsabilidade Fiscal, mas sim evitar o alastramento de saídas criativas contábeis, que não mudam a realidade dos fatos, nem são capazes de converter resultados econômicos ruins (refletidos no “pibinho” próximo de 1% no ano de 2012) em indicativos de crescimento sustentável. Pelo contrário: a abertura de brechas na Lei de Responsabilidade Fiscal para o exercício da “criatividade” pode ser extremamente prejudicial ao controle da gestão da coisa pública.

Ora, uma das funções do direito financeiro é justamente evitar o comprometimento da coisa pública (res publica). Daí os mecanismos de controle estabelecidos na Lei de Responsabilidade Fiscal. Como já dizia Geraldo Ataliba, “o espírito que preside todo o tipo de atividade controladora é rigorosamente o mesmo e não se modifica essencialmente pela substituição de seu objeto: o espírito republicano”[2].

Dentre os instrumentos de controle republicano estabelecidos no direito financeiro brasileiro, vem ganhando cada vez mais destaque a transparência, que possibilita o controle social pela população em geral e pela mídia. A eficácia da transparência no combate à corrupção e ao mau uso dos recursos públicos tem sido comprovada diuturnamente no contexto do amadurecimento democrático vivenciado no País ao longo dos últimos anos.

Sucede que a contabilidade “criativa”, ao abusar da “maquiagem”, dificulta esse controle, caindo em rota de colisão com o princípio da transparência financeira, corolário do princípio republicano. A nebulosidade de determinados caminhos criativos para cumprir metas de política econômica, ao contrastar com princípios fundamentais do direito financeiro, pode dar ensejo a outras formas de controle: o controle jurisdicional, exercido pelo Poder Judiciário, ou o controle externo, exercido pelo Tribunal de Contas da União.

Vale lembrar que a contabilidade deve representar realidades patrimoniais, e não ficções criativas que transbordem os limites definidos pelo ordenamento jurídico. O relacionamento da contabilidade pública com o direito financeiro deve sempre primar pelo diálogo. Eventuais crises, ao contrário do que por vezes acontece em relacionamentos amorosos, jamais poderão terminar em separação. O caminho para superá-las é evitar extravagâncias e buscar a sincronia: a contabilidade deve espelhar a realidade das contas públicas às claras, sem artifícios, em harmonia com os princípios do direito financeiro.

Havendo desvios, as portas do Poder Judiciário estão abertas, tal como as do Tribunal de Contas da União. Mas é recomendável procurar resolver as crises dentro de casa, isto é, no âmbito do próprio Poder Executivo, incumbido de elaborar e divulgar seus balanços contábeis em conformidade com o direito financeiro, no seio do qual o princípio republicano e o princípio da transparência reclamam máxima eficácia.


[1] Brazil´s economy: wrong numbers – more inflation, less growth. The Economist. Disponível em: <http://www.economist.com/news/americas/21569706-more-inflation-less-growth-wrong-numbers>. Acesso em: 18 jan. 2013.

[2] ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2. ed. atualizada por Rosolea Miranda Folsgosi. 4ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 79.

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