A Toda Prova

Um princípio que não está muito claro

Autor

  • Aldo de Campos Costa

    é procurador da República. Foi advogado professor substituto da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça assessor especial do Ministro da Justiça e assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal.

13 de fevereiro de 2013, 15h12

A Fazenda Nacional ajuizou execução fiscal em face da Sociedade XPTO Ltda., e dos sócios Xisto e Mévio, objetivando receber valores de multas decorrentes da prática de monopsônio. Citados, os executados ofereceram embargos, arguindo que as multas eram indevidas, pois as condutas ensejadoras das mesmas inobservaram, em sua aplicação, requisito indeclinável, consubstanciado na doutrina do princípio claro (Primeira prova escrita do XIII Concurso para provimento de cargos de Juiz Federal Substituto de Primeira Instância na 2ª Região) .

Nos Estados Unidos, país cujo texto constitucional não permite, como regra, a delegação do poder legislativo[1], o controle judicial da transferência da função normativa primária para o Poder Executivo é realizado por meio de um exame da inteligibilidade do conteúdo e dos limites do ato autorizador. A declaração de sua validade, portanto, está condicionada à existência, no próprio instrumento de delegação, de um princípio claro (intelligible principle), capaz de direcionar, de forma inteligível, a atuação legiferante do ente delegatário[2].

Essa diretriz baseia-se na ideia de que a ação administrativa deve ocorrer dentro do contexto das leis formuladas pelos representantes do povo[3], e, em tese, visa atender a dois objetivos vitais à preservação do princípio da separação dos poderes: (a) assegurar que as decisões políticas fundamentais da sociedade não sejam tomadas por agentes políticos nomeados, mas sim por um corpo legislativo dotado de representatividade popular; e (b) evitar que o controle judicial se torne um mero exercício de retórica, fornecendo aos Tribunais meios que tornem possível a apreciação do ato oficial questionado[4].

Na prática, contudo, o princípio claro apenas impede autorizações em branco, na medida em que a jurisprudência estadunidense afirma que o requisito em questão estará presente sempre que a autoridade delegante “delimitar o campo dentro do qual o administrador pode agir, de modo que se possa saber se a sua atuação resultou ou não conforme à vontade legislativa”[5]. Em vista disso, já se logrou encontrar parâmetros para a ação administrativa em autorizações um tanto quanto genéricas, voltadas para a promoção do “interesse público”[6]; para a estipulação de tarifas “justas e razoáveis”[7]; ou até mesmo para a especificação de “lucros excessivos”[8].

Não é de se estranhar, outrossim, que em toda a sua história, a Suprema Corte dos Estados Unidos só tenha afirmado a nulidade de duas delegações: a primeira, constante de uma lei que deixou de especificar quando e em que circunstâncias o presidente poderia determinar a proibição de operações interestatuais que envolvessem excedentes de petróleo[9]; a segunda, autorizando o chefe do Poder Executivo local a codificar "padrões de concorrência leal” destinados a estimular a reabilitação da indústria e a recuperação da economia[10].

Entre nós, o princípio claro ainda é merecedor de pouco destaque, mas não se pode afirmá-lo desconhecido[11]. Tem pouca aplicação prática, é certo, no que se refere às delegações receptícias, pois, malgrado sejam autorizadas pelo caput do artigo 68 da Constituição de 1988, as leis delegadas caíram em desuso[12]. O mesmo não acontece, porém, com as delegações remissivas, ou, ainda, com as operações comumente conhecidas como deslegalizações[13], que, a rigor, não implicam qualquer delegação legislativa no sentido de o Legislativo transferir a função legiferante a órgão de natureza diversa[14].

Nesse âmbito, o Supremo Tribunal Federal valeu-se da ideia subjacente àquela diretriz em pelo menos duas oportunidades: ao reconhecer a possibilidade de poderem as agências reguladoras editar atos normativos secundários em observância aos parâmetros substanciais da lei de regência[15]; e ao declarar a constitucionalidade da sistemática que autorizou a presidente da República a divulgar o valor do salário mínimo por meio de decreto, com base em índices fixados por lei[16].

Cumpre ressaltar, por fim, que o princípio claro não é aplicável a toda e qualquer hipótese de cessão — ou assemelhada à cessão — de poderes legislativos, podendo haver casos de incompatibilidade entre a natureza da função normativa e o ato de delegação, independentemente de sua inteligibilidade[17]. É o caso das categorias temáticas que se acham submetidas à reserva de lei em sentido formal[18].


[1] Loving v. United States, 517 U. S. 748, 771 (1996).

[2] J. W. Hampton, Jr., & Co. v. United States, 276 U. S. 394, 409 (1928).

[3] Cf. WRIGHT, J. Skelly. Beyond Discretionary Justice. In: Yale Law Journal, v. 81, n. 3, jan. 1972, p. 583.

[4] Arizona v. California, 373 U.S. 546, 626 (1963).

[5] Yakus v. United States, 321 U.S. 414, 425 (1944).

[6] National Broadcasting Co. v. United States, 319 U. S. 190, 225–226 (1943); New York Central Securities Corp. v. United States, 287 U. S. 12, 24–25 (1932).

[7] A. L. A. Schechter Poultry Corp. v. United States, 295 U. S. 495 (1935).

[8] Lichter v. United States, 334 U.S. 742 (1948).

[9] Panama Refining Co. v. Ryan, 293 U. S. 388 (1935); A. L. A. Schechter Poultry Corp. v. United States, 295 U. S. 495 (1935).

[11] Cf. MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 946; BARROSO, Luís Roberto. Regime jurídico da Petrobrás, delegação legislativa e poder regulamentar: validade constitucional do procedimento licitatório simplificado instituído pelo decreto nº 2.745/98. In: Temas de direito constitucional. Tomo IV. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 310; ARAGÃO, Alexandre Santos de. Direito dos serviços públicos. Rio de Janeiro: Forense, 2008, pp. 330-331.

[12] Cf. VELLOSO, Andrei Pitten. Delegações legislativas no direito tributário. In: Revista Fórum de Direito Tributário, n. 49, jan./fev. 2009, p. 58.

[13] Para os conceitos de delegação receptícia, delegação remissiva e deslegalização, cf. NETO, Diogo de Figueiredo Moreira. Mutações nos Serviços Públicos. In: Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, n. 1, fev./mar./abr. 2005, pp. 9-10.

 [14] Cf. CARVALHO FILHO. José dos Santos. A deslegalização no poder normativo das agências reguladoras. In: Interesse Público, n. 35, jan./fev. 2006, p. 57. Note-se que “não nos referimos aqui à delegação, no sentido técnico, porque esta pressupõe um ato expresso e intencional da autoridade competente, transferindo a outra certa parcela da sua competência. Referimo-nos ao aspecto prático, ao resultado concreto: se o Congresso pode regular um assunto nos seus mínimos detalhes e não o faz, deixando margem para o regulamento, temos, praticamente, uma situação que se assemelha à delegação, embora sem os requisitos técnicos que esta apresenta” (LEAL, Victor Nunes. Delegações legislativas. In: Problemas de direito público e outros problemas. Brasília: Imprensa Nacional, 1997, p. 100). 

[15] STF, ADI 1668 MC, Rel. Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 20.08.98, DJ 16.04.04, p. 52.

[16] STF, ADI 4568, Rel. Min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, julgado em 03.11.11, DJe 30.03.12. Muito embora o acórdão tenha apresentado o episódio como uma hipótese de deslegalização, entendemos que a questão seria melhor enquadrada como um caso de delegação remissiva, já que a primeira, diferentemente da última, tem como destinatário autoridade outra que não o Chefe do Poder Executivo, sendo esse o traço que distingue as duas modalidades.

[17] Whitman v. American Trucking Assns., Inc., 531 U.S. 457 (2001).

[18] STF, ADI 1296 MC, Rel. Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, julgado em 14.06.95, DJ 10.08.95 p. 23554. 

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