Direito Comparado

Conselho francês rege casos de superendividamento

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

13 de fevereiro de 2013, 9h46

Otavio Luiz Rodrigues - 20/06/2012 [Spacca]Na grave crise econômica alemã do primeiro período pós-guerra, muitos devedores foram levados à condição de insolvência. Essa circunstância abriu as portas dos tribunais para a teoria da alteração da base do negócio jurídico e inaugurou-se um intenso contencioso no campo da revisão contratual. Essas pretensões eram fundadas em um problema macroeconômico. O Brasil desenvolveu, ao contrário da experiência alemã do primeiro quartel do século XX, um filtro jurisprudencial contra idênticas pretensões. Os tribunais brasileiros, como já se demonstrou após uma rigorosa pesquisa empírica, consideraram que são eventos previsíveis — e, portanto, não determinantes de revisão do contrato — a mudança de padrão monetário (RT634/83); a inflação (RT388/134; RT655/151; RT659/141; RT 654/157; RT 643/87); a recessão econômica (RT 707/102; RT 697/125); os planos econômicos (RT 788/271); o aumento do déficit público; a majoração ou a minoração de alíquotas; a variação de taxas cambiais; e as desvalorizações monetárias.[1]

A chamada “exceção da ruína econômica pessoal” também foi rejeitada pelos tribunais, no âmbito das relações jurídico-civilísticas, como causa autorizadora da revisão do contrato. Desse modo, um mutuário que venha a perder o emprego, não poderia invocar esse fato superveniente como exclusiva causa liberatória de suas obrigações. O devedor, na hipótese de execução, seria chamado a responder com seu patrimônio, até o limite da insolvência civil, com seus procedimentos específicos.

No quadro da sociedade de consumo, essas hipóteses ganharam um novo colorido e tornaram-se mais complexas. Consumir deixou de ser uma mera questão de necessidade de adquirir bens ou de fruição de serviços. O consumidor é alvo de ações publicitárias permanentes, que o acompanham nos meios de comunicação social, na máquina de autoatendimento bancário, nas ruas, a qualquer instante de sua vida — e mesmo para além dela. As solicitações ambientes e a preeminência dos meios contratuais (ou paracontratuais) eletrônicos aumentaram a exposição dos indivíduos ao consumo e diminuíram sua capacidade de reflexão sobre se, o que e quando consumir. Os serviços financeiros, muita vez denominados engenhosamente de “produtos bancários”, transmudaram-se em instrumento para outras ações de consumo, quando não se constituem em fins autônomos, o que seria impensável há algumas décadas. Essa alteração na hierarquia das relações jurídicas refletiu-se na dinâmica contratual de uma maneira singular. Tradicionalmente, a compra e venda sempre foi a mais importante de entre as espécies contratuais típicas, a ponto de inaugurar, na maioria dos códigos civis, os livros ou títulos dedicados aos contratos em espécie. Certa doutrina francesa tem defendido que os contratos de oferta de crédito, em suas mais variegadas modalidades, é que ocupam a posição originariamente detida pela compra e venda. A compra do automóvel, da casa própria, de bens de produção e mesmo bens de consumo vulgares, como eletrônicos e mobília, são adquiridos por meio de financiamentos. Com isso, a operação de venda é um mero instrumento para a obtenção de lucros com o negócio direta ou indiretamente celebrado com uma instituição financeira. O produto ou o serviço é o chamariz para interessar alguém a se manter, por toda a vida, obrigado a pagar prestações em um contrato cuja natureza, em última análise, é feneratícia.

A permanente “necessidade” de comprar e renovar o automóvel, o computador ou os móveis que guarnecem o lar impõem a contração contínua de mútuos e negócios afins. Há pessoas que, por toda sua existência, serão mutuários. E é por essa estranha subversão da hierarquia dos contratos típicos — e das necessidades humanas — que se tem afirmado que o consumidor, para o ser, depende de sua prévia condição de mutuário.

Sem reflexão prévia e com oferta abundante de crédito, com baixos controles de crédito pelos mutuantes, surge a contemporânea figura do devedor superendividado. Os esquemas tradicionais do binômio solvência-insolvência, ao menos das relações de consumo, não mais resolvem os problemas advindos dessa hipercomplexidade. A crise norte-americana dos créditos subprime é um sintoma desse novo quadro, cujo âmbito não se limita aos negócios financeiros do mercado imobiliário. No Reino Unido, é alarmante o número de donas de casa superendividadas. A permanência no lar por longo tempo e os canais de venda — de joias, eletrodomésticos e outros artigos, alguns deles supérfluos — geraram uma combinação explosiva para determinar o superendividamento dessas pessoas. Como resultado, há a contratação de mútuos para honrar esses compromissos. A impossibilidade de pagar esses empréstimos rapidamente se revela e novos negócios feneratícios são celebrados, em geral com a novação de cláusulas para alongar o perfil das dívidas e aumentar o valor dos juros. Ao cabo de algum tempo, o pagamento será inviável e os meios executivos conduzirão à insolvência civil do devedor.

Esse quadro foi determinante para o exame dogmático — e o posterior tratamento normativo — do superendividamento.

A questão do superendividamento — ou sobreendividamento, como se prefere dizer em Portugal — tem sido analisada na doutrina brasileira desde o pioneiro estudo de José Reinaldo Lima Lopes, publicado em 1996.[2] Nos últimos vinte anos, publicaram-se importantes contribuições teóricas sobre esse tema, a despeito de não existir previsão normativa no direito positivo nacional.[3] O projeto de reforma do Código de Defesa do Consumidor, em tramitação no Senado Federal, objetiva introduzir o superendividamento no ordenamento jurídico. Logo, é muito relevante examinar a experiência do Direito Comparado nesse campo.

O Code de la Consommation, na República Francesa, cuida da oferta de crédito e dos contratos imobiliários, com normas protetivas aos consumidores na fase pré-negocial — coibindo a propaganda abusiva e estabelecendo a plena eficácia do dever lateral de informação — e sancionando violentamente os abusos, como a perda do direito à percepção de juros. Há um controle rígido sobre as formas de cobrança das dívidas, conservando a imagem e a honra do devedor em face de métodos agressivos utilizados pelos credores. E, na hipótese de endividamento excessivo ou da superveniência de ruína econômica, é estabelecido um complexo sistema de renegociações e de tutela patrimonial do devedor.

Os artigos L.331-1 e L.331-2 do Código de Consumo francês preveem a instituição de um conselho de superendividamento dos devedores, formado por representante do Estado, de órgão fazendário, do Banco Central, da Associação Francesa de Estabelecimentos de Crédito e das associações de defesa da família ou dos consumidores. A esse comitê cabe examinar os casos de superendividamento das pessoas naturais.

No Direito francês, o superendividamento é caracterizado por dois elementos característicos: a) impossibilidade manifesta de cumprimento de obrigações não profissionais pelo devedor; b) a conduta subjetiva de boa-fé do devedor, o que pré-exclui a contratação maliciosa de dívidas com o intuito de não pagamento. É exemplo ordinário de má-fé do devedor a situação em que um indivíduo faz compras sequenciais em lojas de alto luxo, até o limite do cartão de crédito, sabendo que não as pode pagar e que depois invoca a proteção das regras do Código de Consumo.

Na hipótese de execução instaurada, pode-se invocar a exceção de superendividamento. Com isso, a pedido da comissão de superendividamento, o processo poderá ser suspenso (artigo L.331-5). Os comissários elaborarão, juntamente com as partes, um plano de recuperação econômico-financeira do devedor. Com isso o perfil da dívida será alongado e novas disposições serão pactuadas ao fim de adequar o negócio às reais condições econômico-financeiras do devedor.

A jurisprudência francesa deu alguns contornos a esses dispositivos do Código de Consumo, ao estilo dos seguintes: (a) considera-se ter agido de boa-fé o devedor cujo superendividamento deu-se por sua imprudência ou imprevidência[4]; (b) a boa-fé do devedor é presumida, competindo aos credores provar o contrário[5]; (c) a comissão de superendividamento tem competência para analisar os débitos vencidos e os vincendos[6].


[1] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Op. cit. item 5.7.4.2

[2] LOPES, José Reinaldo de Lima. Crédito ao consumidor e superendividamento : uma problemática geral. Revista de Informação Legislativa, v. 33, n. 129, p. 109-115 jan./mar. 1996.

[3] São exemplos de estudos monográficos que abordam o tema do superendividamento: RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Revisão judicial dos contratos: Autonomia da vontade e teoria da imprevisão. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2006; LIMA, Clarissa Costa de; BERTONCELLO, Karen Rick Danilevick. Superendividamento aplicado: aspectos doutrinários e experiência jurídica. Rio de Janeiro : GZ, 2010; SCHMIDT NETO, André Perin. Revisão dos contratos com base no superendividamento : do Código de defesa do consumidor ao Código Civil. Curitiba: Juruá, 2012. Há também interessantes artigos sobre a questão: MARQUES, Cláudia Lima. Sugestões para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito ao consumo : proposições com base em pesquisa empírica de 100 casos no Rio Grande do Sul. Revista de Direito do Consumidor, n. 55, p. 11-52, jul./set. 2005; TIMM, Luciano Benetti. O superendividamento e o direito do consumidor. Revista Magister de direito empresarial, concorrencial e do consumidor, v. 2, n. 8, p. 40-55, abr./maio 2006; CARPENA, Heloisa. Uma lei para os consumidores superendividados. Revista de Direito do Consumidor, v. 16, n. 61, p. 76-89, jan./mar. 2007.

[4] C. A. Pau, 17 décembre 1990, D. 1991, J., p. 270.

[5] Cass., Civ., 1re, 4 avril 1991, Bull. civ. n. 661.

[6] Cass. Civ., 13 janvier 1993, Bull. civ. n. 18.

Autores

  • Brave

    é advogado da União, pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris, França) e da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).

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