Voto duplo

Voto de qualidade no Carf ofende princípio do juiz natural

Autor

  • Fábio Martins de Andrade

    é advogado doutor em Direito Público pela UERJ e autor da obra “Modulação em Matéria Tributária: O argumento pragmático ou consequencialista de cunho econômico e as decisões do STF”.

7 de fevereiro de 2013, 13h43

A crítica feita nesse breve estudo se dirige apenas e tão somente a aplicação do chamado “voto de qualidade” (que, na realidade, é mero voto duplo) no âmbito de solução dos processos administrativos que tramitam no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), especialmente levando-se em consideração como atualmente se encontra configurado tal instituto no referido colegiado. Não se dirige ao órgão específico, que tem desempenhado relevante papel no julgamento de tais casos quando não ocorre empate no julgamento, e tampouco ao instituto do voto de qualidade que, adequadamente formatado, pode ser um critério legítimo para desempate de questões controvertidas.

O princípio do juiz natural consiste na necessária preservação da imparcialidade e na independência do julgador que irá examinar e definir determinada situação jurídica no exercício da sua função jurisdicional.

Na Constituição Federal vigente o aludido princípio advém da regra do inciso XXXVII, do artigo 5º, ao estabelecer que “Não haverá juízo ou tribunal de exceção” e também na interpretação do inciso LIII, ao dispor que “Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”.

Com efeito, o princípio do juiz natural também é aplicado no processo administrativo, como aquele que tramita perante o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais.[1]

Destarte, o princípio do juiz natural aplica-se em qualquer análise em que se pressuponha um procedimento legitimamente organizado, objetivando garantir a coerência lógica, como fundamento de validade da própria decisão.

Pelo princípio em comento, garante-se um exame consubstanciado na interpretação jurisdicional não submetida às impressões externas, ideológicas ou até mesmo politicamente dirigida. Por óbvio, nascido e vinculado ao hermeneuta jurisdicional qualquer ato tendente a substituí-lo em virtude das suas convicções técnico-científicas padecerá defronte à lógica fundante do primado do juiz natural, ao impedir que a atividade judicante se transforme num procedimento de escolha e interesses políticos.[2]

É, em suma, a própria ideia de legitimidade da jurisdição, a ser feita, por um sujeito equidistante das partes, o que não ocorre quando do cômputo do voto de qualidade em processo administrativo em trâmite no Carf.

Com efeito, em tais situações tem-se exatamente o contrário do que se extrai das ilações acima, ao se permitir a adoção do voto de qualidade, com indiscutível violação ao princípio do juiz natural, na medida em que o voto duplo da(o) Conselheira(o) Presidente, necessariamente representante da Fazenda Nacional,[3] passa a servir, por escolha de um único segmento (o do fisco), aos interesses de apenas uma das partes.

Em razão disso, resta evidente a violação perpetrada contra o princípio do juiz natural no que diz respeito à adoção da regra do artigo 14, § 2º, c/c o artigo 54, ambos do Anexo II do Regimento Interno do CARF, aprovado pela Portaria MF 256/09, na medida em que o voto de qualidade, indubitavelmente (como tende a ocorrer em qualquer caso do gênero), é a mera duplicação do voto anteriormente proferido pelo Conselheiro detentor da espúria prerrogativa em exame.

Diante de tal circunstância, o contribuinte vê a sua discussão legitimamente posta ceder defronte à inobservância do devido processo legal na esfera administrativa, corolário da liberdade, como enfaticamente sempre destacou o Poder Judiciário, bem como a doutrina pátria.[4]

Diante disso, resta evidentemente questionável a legitimidade do artigo 54 do Anexo II do Regimento Interno do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, aprovado pela Portaria MF 256/09, que permite aplicar o voto de qualidade para improver recursos voluntários nos autos de processos administrativos que tramitam na referida Corte Administrativa, vez que flagrante a violação ao princípio do juiz natural, insculpido no art. 5º, tanto no inciso XXXVII como também no inciso LIII e no inciso LV, da Constituição da República.

Desse modo, quando se verificar tal distorção no curso do julgamento de um recurso tempestivamente interposto nos autos de processos administrativos perante o Carf, os dispositivos citados (artigo 14, § 2º, c/c o artigo 54, ambos do Anexo II do Regimento Interno do Carf, aprovado pela Portaria MF 256/09), devem ter a sua aplicação afastada na espécie, sobretudo se a parte litigante prejudicada buscar socorro do Poder Judiciário.

Afinal, em órgão que se pretende paritário, como é assumidamente o caso do Carf, soa contraditório, incoerente e até paradoxal, que a aplicação do voto de qualidade seja amesquinhada apenas e tão somente para duplicar o voto do Presidente da turma, que necessariamente figura dentre os representantes da Fazenda Nacional.


[1] Nesse sentido, confira: “Assim, seja qual for a matéria submetida a julgamento, faz-se mister que o julgador administrativo já tenha sido pré-constituído na forma da lei, para o caso abstratamente previsto. Vale o preceito não só para o processo administrativo disciplinar, mas para todos os demais processos administrativos, como, exemplificadamente, o processo sancionador para imposição de sanções administrativas aos administrados e o processo licitatório” (PEÑA, Eduardo Chemale Selistre. Princípio do Juiz Natural. Disponível na Internet em: http://tex.pro.br/tex/listagem-de-artigos/224-artigos-nov-2005/5198-o-principio-do-juiz-natural. Acesso em: 09.05.12 – grifamos).

[2] Em síntese, o juiz natural deve ser imparcial. Nesse sentido: “Os chamados predicamentos da magistratura – isto é, as garantias que cercam os titulares dos órgãos judiciários – são essenciais à plena configuração do princípio, porque sem eles o juízo natural só formalmente existiria. O juiz natural há de ser um juiz independente. A lei processual deve estabelecer, de outra parte, proibições para que o juiz atue em determinados processos com relação aos quais existam, para o magistrado, razões de impedimento ou suspeição. Com isso, o juiz natural será também um juiz imparcial” (MEDINA, Paulo Roberto de Gouveia. Direito Processual Constitucional. 3ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 33-34).

[3] Cf. os artigos 11, 12, 14, § 2º, e 54, todos do Anexo II do Regimento Interno do CARF, aprovado pela Portaria MF nº 256-09.

[4] Muito já se escreveu e se discutiu sobre o princípio em foco, razão pela qual não cabe nesse limitado espaço aprofundar o debate. A título meramente exemplificativo, em sede doutrinária, cabe registrar que: “O devido processo legal configura dupla proteção ao indivíduo, atuando tanto no âmbito material de proteção ao direito de liberdade, quanto no âmbito formal, ao assegurar-lhe paridade total de condições com o Estado-persecutor e plenitude de defesa (direito à defesa técnica, à publicidade do processo, à citação, de produção ampla de provas, de ser processado e julgado pelo juiz competente, aos recursos, à decisão imutável, à revisão criminal)”. “O devido processo legal tem como corolários a ampla defesa e o contraditório, que deverão ser assegurados aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados e, geral, conforme o texto constitucional expresso (art. 5º, LV). Assim, embora no campo administrativo, não exista necessidade de tipificação estrita que subsuma rigorosamente a conduta à norma, a capitulação do ilícito administrativo não poder ser tão aberta a ponto de impossibilitar o direito de defesa, pois nenhuma penalidade poderá ser imposta, tanto no campo judicial, quanto nos campos administrativos ou disciplinares, sem a necessária amplitude de defesa” (MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 6º edição. São Paulo: Atlas, p. 112-113).

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