Responsabilidade ilimitada

Habeas mídia previne o jornalismo que denigre a honra

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5 de fevereiro de 2013, 9h30

Em certa passagem do meu discurso de posse como Presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região defendi de forma irrestrita a criação do habeas mídia, e, como já era de se esperar, os setores reacionários do País reagiram de forma imediata e contundente a tal declaração, atribuindo-me o desejo de instituir a censura prévia, a mordaça e outras estultices de igual jaez.

O meio acadêmico, porém, parece ter recebido muito bem a ideia e foram vários os convites que recebi para discorrer acerca do sentido e alcance desse instituto, que não guarda nenhuma similitude com censura prévia, mordaça à liberdade de imprensa e de expressão e quejandos…

Em singelo resumo, passo a expor suas linhas mestras.

Constitui erro grosseiro, em primeiro lugar, só cabível na cabeça daqueles que gostam de criticar tudo aquilo que possa representar ameaça aos próprios interesses, acoimar a ideia de inconstitucional. Poderia sê-lo, é verdade, se se imaginasse que a matéria seria regulada exclusivamente mediante a edição de uma lei ordinária ou mesmo complementar… Mas eu não afirmei isso em nenhum momento de minhas falas. Pelo contrário, tenho dito e repetido que a instituição do habeas mídia no Brasil deveria dar-se mediante a aprovação de Emenda Constitucional — se, por um arroubo de ingenuidade, se supusesse que as oligarquias econômicas e políticas pudessem permitir tal avanço —, formando-se o tripé da defesa contra as ilegalidades: habeas corpus, habeas data e habeas mídia…

A ideia que defendo é, na verdade, muito simples. Trata-se, fundamentalmente, de uma previsão normativa de maior eficácia, no que se refere à proteção individual, coletiva ou difusa, tanto de pessoas físicas quanto de pessoas jurídicas, que sofrerem ameaça ou lesão ao seu patrimônio jurídico indisponível, em razão de eventuais abusos cometidos pela mídia. Teria o cidadão brasileiro, desta forma, um “remédio” para proteger o seu patrimônio de honra, o que não ocorre nos dias de hoje. Exemplificando tais abusos, poderíamos citar uma notícia precipitada, inverídica, que ponha em risco a honorabilidade da pessoa, sem que sua culpa esteja efetivamente comprovada.

A criação do habeas mídia já vem sendo estudada há bastante tempo, sendo as primeiras iniciativas, datadas de 1988, feitas pelo Professor Sérgio Borja, do Rio Grande do Sul. A ideia se disseminou no País, entre outros professores, como, por exemplo, o Professor Paulo Lopo Saraiva, do Rio Grande do Norte. É de sua autoria o livro intitulado “Constituição e Mídia”, no qual ele discute e defende, com vigor deveras invulgar, o instituto de que se trata.

Os dois professores citados demonstram o que se deve enfatizar: não se trata, nem mesmo remotamente, de se querer instituir algo nos moldes da censura prévia. Não é um limite à liberdade de imprensa. O que se deseja é que esta seja sempre ilimitada, desde que a responsabilidade de quem escreve matéria eventualmente danosa também seja ilimitada.

Em vez de se falar em controle da mídia, o que se quer é o reconhecimento da sua plena responsabilidade pelos abusos que venha, eventualmente, a cometer. Seria, assim, um limite ao uso abusivo da liberdade de informar. Tem-se o direito de fazer uso da informação, mas não o abuso dela. A diferença entre o uso e o abuso nem sempre é muito clara, infelizmente, na tela da ciência jurídica.

A liberdade de pensamento, consagrada na Constituição Federal, em seu artigo 220, tem de existir para todos e não somente para a imprensa. É o que se denomina “controle social da mídia”. Nenhum dos poderes pode se sobrepor ao poder da sociedade civil. É o que está previsto na Carta Magna, a qual determina que todo poder, em princípio, emana do povo. Os controles sociais de todo e qualquer poder devem existir. Da mesma forma, devem existir também sobre a mídia, que é chamada de o 4° poder, e que, a meu ver, tem muito mais poder do que qualquer um dos outros poderes, isoladamente considerados.

Quadra sublinhar que nenhum direito é ilimitado na Constituição Federal. Nem o direito à vida é absoluto no Brasil. No período de guerra, por exemplo, existe a pena de morte. Impor um limite não significa censurar. No artigo 220 da Constituição Federal encontramos o princípio da absoluta liberdade de imprensa, mas com a ressalva, no seu parágrafo primeiro, de quando estiver em causa um bem maior. É o que se verifica da sua leitura:

Artigo220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

Parágrafo 1° Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no artigo5°, IV (manifestação do pensamento), V(direito de resposta), X(intimidade, vida privada, honra, imagem das pessoas), XIII(livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão), XIV(sigilo profissional).

Deve-se, portanto, analisar caso a caso. Veja-se que, no confronto de dois valores fundamentais, temos de verificar qual deles deverá prevalecer. O Superior Tribunal de Justiça, chamado a julgar casos nos quais se discutia o direito à liberdade de informação, decidiu de forma diversa em seus acórdãos. Em dois casos decidiu que o mais importante é preservar o direito à liberdade de informação. Em outros dois acórdãos, ao revés, considerou que o mais importante é preservar o direito à intimidade do cidadão. E, a meu ver, julgou bem todos eles… Se fôssemos deixar que os casos fossem julgados por jornalistas, e não por ministros, escusava dizer que o resultado seria outro…

Vale ressaltar que, em caso julgado do STJ, a ministra Nancy Andrighi, então relatora, bem analisou a questão, afirmando: “A solução deste conflito não se dá pela negação de quaisquer desses direitos. Ao contrário, cabe ao legislador e ao aplicador da lei buscar o ponto de equilíbrio onde os dois princípios mencionados possam conviver, exercendo uma função harmonizadora.”

Indaga-se, com frequência, se já não existiria um mecanismo para entrar com uma ação de danos morais causados por um jornalista trêfego que acusasse indevidamente uma pessoa qualquer do povo ou um julgador, e a resposta é afirmativa. A Constituição Federal, em seu artigo 5°, V, determina:

“É assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além de indenização por dano material, moral ou à imagem;”

Entretanto, dadas as condições de nosso sistema recursal — algo que não é culpa da Justiça, diga-se, uma vez que não é ela quem faz as leis —, a demanda pode levar 10 anos ou mais. Após esse período, a própria decisão que determina, por exemplo, a indenização, torna-se ineficaz. Aquele que foi prejudicado não se sentirá devidamente reparado pelo mal que foi causado, ressaltando-se, ainda, que a reparação por determinada pecúnia não recoloca as coisas no seu estado original.

Essencialmente, no caso do habeas mídia, o bem jurídico relevante que se quer proteger é a honra. Há valores que precisam ser preservados de forma eficaz, não adiantando querer protegê-lo depois. Como naquela velha história, “não podemos tentar recolher as penas do travesseiro que foi lançado ao vento”.

Vale esclarecer, também, que até mesmo os institutos jurídicos precisam ser repensados na época da internet. Temos de buscar mecanismos preventivos para impedir que ocorra o dano, pois quando se trata de difamação da honra de uma pessoa, pela internet, é praticamente impossível sua devida reparação.

Por outro lado, vale ressaltar que a Lei 5.250, de 1967, alcunhada como Lei da Imprensa, foi considerada, pela mais alta corte de Justiça do País, não recepcionada pela nossa Constituição Federal. Só que o direito de resposta nela estava contemplado, em seus artigos 29 a 36. Criou-se, assim, como bem afirmou o Ministro Gilmar Mendes, um vazio jurídico.

Enfim, é claro que todos nós almejamos e preconizamos uma imprensa livre, como não poderia deixar de ser. Enquanto investigativa e criteriosa, há de merecer todo nosso respeito e loas, pois constitui a própria vista da Nação, de que nos falava o grande Rui Barbosa. Por outro lado, há de ser solenemente repudiado aquele jornalismo trapeiro, tão bem identificado pelo nosso Professor Paulo Bonavides, já em 2001, que afirmava ser a mídia “a caixa preta da democracia”…

Contra esse tipo de jornalismo — e de blogueiros que, à míngua de talento próprio, vivem de denegrir criminosamente a honra alheia — é que defendo irrestritamente a criação do habeas mídia, aqui apenas palidamente entrevisto.

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