Batalha sem fim

Falta de citação posterga ação por quase 40 anos

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2 de fevereiro de 2013, 6h15

Reprodução/Facebook
As confusões envolvendo o projeto de reassentamento rural de desenvolvimento sustentável Milton Santos, do Instituto Nacional da Colonização e Reforma Agrária (Incra), provavelmente entrarão para a história da Justiça Federal brasileira como exemplo clássico do que a demora de um juiz para julgar um caso pode causar. A batalha, promovida em grande parte pela Advocacia-Geral da União, já conta mais de 30 anos — e dezenas de ações judiciais.

Na Justiça, a discussão ficou ancorada em uma liminar durante sete anos. Até que, no ano passado, um imbróglio envolveu a União, o Incra, o INSS, a Usina Ester e o Grupo Abdalla, que já nem existe mais. E se uma das marcas do caso é a demora, agora há pressa.

Mas o último movimento registrado no andamento processual foi justamente uma determinação para esperar. Na última terça-feira (29/1), a juíza Louise Filgueiras, convocada na 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região para cobrir as férias do desembargador André Nekatschalow, relator da matéria, proferiu decisão cautelar afirmando que há “indícios” de que a terra disputada pelo governo federal, pela empresa e pelos assentados seja do INSS —que não consta do polo passivo da ação inicial.

A disputa gira em torno da propriedade de um terreno de 104 hectares, em Americana, no interior de São Paulo, onde estão assentadas cerca de 70 famílias. É o Projeto de Desenvolvimento Sustentável Milton Santos, conduzido pelo Incra. A área em que hoje estão as famílias já foi do extinto Grupo Abdalla, sendo depois confiscada pelo governo federal e repassada ao antigo INPS (hoje INSS) e transferida para o Incra em 2005. 

Com dono
O início do caso data de muito antes. Em 1976, o Sítio Boa Vista, então da Fábrica de Tecidos Carioba, integrante do Grupo Abdalla e onde hoje está o assentamento Milton Santos, foi confiscado pelo governo federal e entregue ao antigo INPS. Isso por meio do Decereto 77.666/1976. O registro do imóvel ficou sob o número 9.988. No ano seguinte, o sítio foi transferido ao Iapas, extinta autarquia federal responsável pelos pagamentos da Previdência.

Em 1990, o Iapas e o INPS foram unificados no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Em 2005, o Incra, já desenvolvendo o Projeto de Desenvolvimento Sustentável Milton Santos, pediu o terreno ao INSS para começar seu projeto de assentamento sustentável para 100 famílias. Cada uma teria pouco mais de um hectare.

Quando o órgão resolveu explorar o terreno, deparou com plantações de cana-de-açúcar. Ele já havia sido ocupado pela Usina Ester, que o arrendou do Grupo Abdalla, de quem a área fora confiscada em 1976.

De volta ao particular
Agora o caso volta para 1981. Naquele ano, o Grupo Abdalla, então um dos maiores grupos empresariais do Brasil, entrou com uma ação de prestação de contas na Justiça Federal contra a União. A empresa reclamava que, quando teve seu terreno desapropriado, não recebeu nada em troca. A ação pedia indenização com valores corrigidos.

O caso ficou nove anos parado. O julgamento, pela 21ª Vara Cível da Justiça Federal de São Paulo, só começou em outubro de 1990 — e a primeira sentença, em 1995. A Justiça deu razão ao Grupo Abdalla, representado nos autos por José João Abdalla, ou JJ Abdalla, como era conhecido.

A União foi condenada a pagar R$ 13,6 milhões, já com as devidas correções, como mostra certidão de julgamento expedida pela 21ª Vara Federal Cível de São Paulo.

Liminares
Adianta-se a história novamente, para 2005. Quando viu que o terreno em que pretendia fazer o assentamento estava ocupado pela Usina Ester, o Incra, por meio de sua Procuradoria Federal, entrou com ação de reintegração de posse. Alegou que o terreno era público e que, portanto, sua posse deveria ser devolvida ao ente público. 

A 2ª Vara Federal de Piracicaba, a quem compete a jurisdição do caso, proferiu liminar em favor da autarquia. A Usina Ester recorreu com Agravo de Instrumento, também com pedido de liminar, ao TRF-3. A relatoria coube ao desembargador André Nekatschalow, que negou a liminar no recurso. Não entrou no mérito do agrvavo. O terreno, então, permaneceu com o Incra por força da liminar de primeiro grau. O órgão prosseguiu com a instalação do assentamento.

Sete anos se passaram. Famílias foram assentadas, o projeto foi tocado. Até que, em 2012, o TRF-3, surpreso com a demora do primeiro grau em entrar no mérito da questão, decidiu acabar com a demora e julgou o agravo proposto pela usina em 2005. Fez o que não é comum: entrou no mérito do agravo. O mais comum seria que a primeira instância julgasse o mérito do pedido, fazendo com que o agravo perdesse o objeto, já que foi interposto contra uma liminar.

O recurso foi levado ao tribunal para julgamento colegiado em agosto do ano de 2012. Nekatschalow, relator, votou em favor do Incra. Disse que o terreno, público, é da autarquia, que inclusive já havia implantado seu projeto e assentado sem-terras. Mas foi voto vencido.

O revisor, desembargador Luiz Stefanini, abriu divergência e afirmou que o terreno fora devolvido pela União ao Grupo Abdalla em 1981, na ação de prestação de contas. Logo, se já não estava mais nas mãos do Incra, a autarquia não poderia usá-lo para fazer o assentamento.

Foi determinada, então, a reintegração de posse do Sítio Boa Vista à Usina Ester. Com isso, as cerca de 200 pessoas que lá estavam tiveram de sair.

Estratégia processual
No segundo semestre de 2012, o Incra entrou com duas ações e um recurso contra a decisão do tribunal. O Recurso Especial foi dirigido ao Superior Tribunal de Justiça. O órgão também pediu Suspensão de Segurança, mas o STJ a negou. O Recurso Especial ainda não foi julgado.

Já as novas ações ajuizadas discutem, cada uma, uma hipótese. A primeira aborda Embargos de Retenção de Benfeitoria. Considerando que o terreno de fato seria da Usina Ester, o Incra alegou que não o devolveu do mesmo jeito que o encontrou, mas plantou e tratou da terra. Segundo a autarquia, havia hortas e pessoas tomando conta delas. E pediu que a empresa compensasse financeiramente as benfeitorias feitas.

Na outra ação, o Incra rejeitou a hipótese de o terreno ser da usina. Em Ação Declaratória de Utilidade Pública, afirmou que o sítio já havia sido “afetado para utilidade pública”, ou seja, a terra já estava sendo usada para o bem público — a reforma agrária. Na prática, o argumento é que um particular não pode tomar para si a propriedade de um terreno já afetado para utilidade pública, mesmo que essa posse esteja sendo discutida na Justiça. O máximo que a empresa poderia fazer seria pleitear indenização pela desapropriação.

Personalidade própria
Depois das duas ações e do recurso do Incra ao STJ, já em dezembro de 2012, o INSS volta à história. Entrou com uma Oposição no processo de reintegração de posse. Alegou que, como se estava discutindo a propriedade do terreno e não a sua ocupação, deveria ter entrado na discussão, no polo passivo, já que o terreno lhe fora confiscado nos anos 70. Mas não foi citado, e por isso não poderia sofrer os efeitos da sentença.

Segundo o INSS, o terreno não é nem da União, nem do Grupo Abdalla e nem da Usina Ester, mas dele. E, como foi passado pelo próprio INSS ao Incra para fins de reforma agrária, é esta autarquia quem deve ocupá-lo.

Ou seja, por mais que na ação de prestação de contas a Justiça Federal tenha dado ganho de causa a JJ Abdalla, não era a União que deveria figurar no polo passivo, mas o INSS, segundo a Procuradoria Federal da AGU. Isso porque as autarquias federais têm personalidade jurídica própria, independente da União. A AGU, inclusive, tem procuradores federais próprios para o INSS.

Fato novo
Mas a Oposição foi extinta liminarmente na primeira instância. O juízo entendeu que não caberia Oposição na reintegração de posse, pois a medida processual não cabe em ações possessórias.O INSS apelou, por meio de ação cautelar na oposição, ao TRF. De novo, o caso caiu no gabinete do desembargador André Nekatschalow, da 5ª Turma. O desembargador estava de férias, e a juíza federal Louise Filgueiras, convocada em seu lugar, julgou o caso. Foi essa a decisão, proferida na última terça (29/1), que suspendeu a reintegração de posse.

Em seu despacho, ela observou que a 5ª Turma já havia decidido sobre a matéria, mas de fato o INSS não constava no polo passivo — mesmo tendo a União, na primeira ação, ter dito expressamente, por duas vezes, que o INSS deveria ser citado. Como não foi, o caso continua em discussão 32 anos depois.

Louise ponderou que a ação de Oposição só cabe contra caso já julgado se há fato novo superveniente à decisão. Mas, para ela, o fato de o INSS ter aparecido somente agora no caso não é fato novo. Isso porque era sabido, dadas as menções no processo, que o título de domínio do Sítio Boa Vista era do INSS, apesar de a autarquia não ter sido citada.

Mas é fato novo, disse Louise, a existência de assentamento no terreno. “Esse fato é relevantíssimo para a reintegração que se processa, pois diz respeito ao exercício da posse propriamente dita, ao poder de fato sobre a coisa, a despeito das alegações de domínio que recaem, não sem razão, sobre esta possessória”, escreveu. Ela ressaltou que o assentamento começou a ser feito depois de liminar da Justiça Federal de São Paulo, em 2005, e não por meio de invasão. A conclusão foi determinar que a Justiça de primeiro grau julgue o caso sob a nova perspectiva. E, novamente, esperar.

Clique aqui para ler a certidão de julgamento da prestação de contas entre Grupo Abdalla e União, da 21ª Vara Cível Federal de SP.
Clique aqui para ler a sentença do pedido de apelação na reintegração de posse do assentamento à Usina Ester.
Clique aqui para ler a sentença nos Embargos de Retenção por Benfeitoria.
Clique aqui para ler a inicial do INSS na ação de prestação de contas do Grupo Abdalla contra União.
Clique aqui para ler a decisão do TRF-3 que suspendeu a reintegração de posse do assentamento.

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