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Justiça transicional busca construir democracia

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1 de fevereiro de 2013, 6h26

O filme “Katyń” narra o massacre de cerca de doze mil oficiais poloneses pelas forças soviéticas em 1940, na floresta que o intitula. Ele traça um bom exemplo dos problemas que envolvem um direito à verdade: ao término da guerra, os soviéticos atribuem a responsabilidade aos nazistas, distorcendo e reescrevendo a história. A luta das vítimas e sucessores dos oficiais mortos exemplifica de modo sensível o que significa ser privado de um passado.

O termo justiça de transição tem sido utilizado para se referir à série de medidas a serem tomadas nos períodos de transição de regimes autoritários para regimes democráticos. Ruti Teitel, professora da New York Law School, salienta que a grande pergunta que envolve a justiça transicional é: como devem as sociedades lidar com seus passados perversos? Desta questão central emerge outra: qual a relação entre responsabilidade do Estado ante seu passado de repressão e suas perspectivas de criação de uma ordem democrática e respeitadora de direitos humanos? Não se trata, portanto, de um conceito jurídico qualquer, mas que envolve uma complexa relação entre o passado e o futuro de uma democracia.

As medidas abrangidas pela justiça transicional são as mais variadas: medidas reparatórias de cunho patrimonial ou não, processos judiciais contra eventuais responsáveis, comissões que permitam um exercício do direito à verdade, a confrontação entre vítimas e opressores, o desligamento de agentes públicos envolvidos em violações de direitos humanos dos quadros do Estado, reformas institucionais, a preservação da memória como forma de aprendizado e, principalmente, um doloroso, e às vezes lento, processo de reconciliação. O jurista argentino Juan Méndez, presidente do International Center for Transitional Justice, observa, contudo, que na América Latina o termo reconciliação tem sido adotado de forma deturpada: ele implicaria na ausência de medidas. Isto transformaria a reconciliação em impunidade: o Estado não poderia se arrogar na posição de vítima e oferecer um perdão a quem só poderia fazê-lo por um ato personalíssimo. Como observa Jacques Derrida, para além do fato do perdão ser da competência da pura singularidade da vítima, uma anistia geral paralisa e confirma a vítima em seu destino de vítima.

Tais medidas são implementadas por cada comunidade política à sua maneira. Não são medidas isoladas: são complementares e serão aplicadas por cada país em seu adequado momento histórico. É o mesmo Derrida que também esclarece que a reconciliação, assim como a liberdade, percorre um caminho, é um processo no sentido de um amadurecimento, de uma saída da minoridade.

A África do Sul, por exemplo, enfrentou o problema logo no fim do regime do apartheid. Em 1993, a própria Constituição Provisória previu mecanismos de anistia para que pudessem os opositores políticos participar das discussões sobre o advento de um texto constitucional definitivo, mas, principalmente, para promover medidas de justiça transicional. A mais famosa delas foi a instalação da Comissão Verdade e Reconciliação em 1996. Ouvindo mais de 20.000 testemunhas, ela teve como resultado, por exemplo, a responsabilização criminal de quase quatro mil agentes públicos, anistiando-se apenas cerca de mil e cem destes.

Em relação às comissões sobre verdade, apenas na América Latina, elas foram instaladas na Argentina (1983-1984), no Chile (1990-1991), em El Salvador (1992-1993), no Haiti (1995-1996), na Guatemala (1994-1999) e no Peru (2001-2003). Paradoxalmente, o povo uruguaio, em 26 de outubro de 2009, ratificou uma vez mais a chamada “Ley de Caducidad”, que anistiou diversos agentes públicos que praticaram violações a direitos humanos no período de ditadura militar (1973-1985), não obstante a Suprema Corte de Justiça tenha declarado de forma incidental a inconstitucionalidade de tal lei.

O Brasil é um claro exemplo de como tais medidas podem ser concatenadas de forma diferenciada ao longo da história. A Lei 6.683/1979, Lei de Anistia, fez parte da longa e gradativa distensão idealizada por Geisel e Golbery. Entretanto, paira hoje a dúvida sobre quem seriam os reais destinatários da anistia: os opositores políticos ou estes e os agentes públicos que praticaram crimes durante a ditadura? Para além do fato de que dificilmente o regime militar reconheceria seus agentes como criminosos, a discussão chegou, uma vez mais, ao Supremo Tribunal Federal, que teve, por meio da ADPF 153, a chance de definir os rumos da democracia brasileira e acabou optando por uma via criticável sob diversos aspectos[1] e que, esperar-se, seja superada. Em sentido oposto, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado brasileiro pelas violações de direitos humanos ocorridas durante a Guerrilha do Araguaia, no caso Gomes Lund.

Atos de reparação pecuniária também integram a forma como a justiça transicional se processa no Brasil. Não ignorando que tal reparação é apenas um dentre outros elementos da justiça transicional, há que se mencionar o disposto nos artsigos 8º e 9º do ADCT e nas Leis 9.140/1995 e 10.559/2002, bem como o fecundo trabalho desenvolvido pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Por meio da chamada Caravana da Anistia, têm sido promovidos julgamentos públicos de anistiados políticos, como uma forma de integração da sociedade no processo. Além disto, será em Belo Horizonte a instalação da sede do Memorial da Anistia Política, que abrigará os 60 mil processos que já tramitaram na Comissão de Anistia.

O Ministério Público Federal tem promovido uma série de ações civis públicas visando responsabilizar judicialmente agentes públicos envolvidos em atos de violação a direitos humanos, bem como, a partir do caso Gomes Lund, ações de caráter penal.

Destaque-se, ainda, a criação pela Lei 12.528/2011 da Comissão Nacional da Verdade, com papel de investigar violações de direitos humanos ocorridas por iniciativa do Estado brasileiro no período de 1946-1988. Apesar de ter promovido sessões secretas, discutíveis justamente a partir de um direito difuso à memória e à verdade, a CNV tem procurado abrir seus trabalhos e dialogar com outras instituições e atores sociais vinculados a busca por sedimentação daquele direito.

Mais do que fragmentar a discussão em posições políticas, a justiça transicional busca procedimentalizar a construção de um regime democrático forte e consciente de seu passado; não só isto, mas uma democracia que aprenda com os erros do passado. Ainda que seja árdua a reconciliação e ainda que ela possa gerar confrontações.


[1] Para um detalhamento da crítica, cf. MEYER, Emilio Peluso Neder Meyer. Ditadura e responsabilização: elementos para uma justiça de transição no Brasil. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2012.

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    é doutor em Direito pela UFMG, mestre em Direito Constitucional pela UFMG, professor adjunto de Direito Constitucional da UFOP (Universidade Federal de Ouro Preto) e membro do IDEJUST — Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição.

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