Embargos Culturais

Não há recurso que ameace a Comissão da Verdade

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

29 de dezembro de 2013, 11h13

Spacca
A Comissão Nacional da Verdade é iniciativa que se insere num amplo contexto de democratização da vida brasileira. Impacta no fortalecimento das instituições mediante a releitura de nossa trajetória historiográfica, à luz da mais absoluta dimensão de prestígio aos direitos humanos. Mediará o reencontro da sociedade civil com seus fundamentos históricos; isto é, no sentido de que a história seja a mais legível das ciências do homem, a mais aberta ao grande público[1].

A Comissão Nacional da Verdade tem como finalidade examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988[2]. E porque uma montanha apareça sobre diferenças maneiras em relação a diferentes ângulos de visão, isso não significa que não tenha um desenho definido ou uma infinidade de desenhos[3]; isto é, elevada carga de objetividade plasma a comissão que se criou, por determinação legal.

À referida comissão a lei imputa o fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica, na promoção da reconciliação nacional[4]. Como é conhecimento geral — o que não demanda provas — ao longo dos anos de 1946 a 1988 houve interregnos de exceção, marcados por repressão sistemática a segmentos da população civil.

Nesse sentido, é imperativa uma revisita à nossa história, medida indispensável, entre outras, para uma adequada compreensão de nosso presente[5]. E se não há respostas objetivas e positivas para problemas conceituais colocados pela história, a exemplo da finalidade da narrativa do passado[6], o que é uma questão historiográfica recorrente e insolúvel, há possibilidades objetivas e não menos positivas para o esclarecimento de situações concretas, pretéritas, que geram a angústia, a insegurança, e ainda patologias de difícil enfrentamento, que transitam do luto para a melancolia, da depressão para a ansiedade.

A premissa hermenêutica que deve orientar o intérprete em todos os problemas de exegese que decorram da aplicação da Lei 12.528, de 2011, é justamente aquela que aponte para a inafastabilidade de soluções que prestigiem a Comissão, em decorrência de percepção que nos informa que aquele que impõe fins deve fornecer os meios. Elementar: a hermenêutica é antes de tudo uma explicação[7]. O que se precisa, na ciência da interpretação, é a compreensão do que seja factível, do que seja possível, e do que seja correto, aqui e agora[8].

Por isso, as decisões tomadas, no contexto dos problemas historiográficos colocados, atendem aos reclames da plena realização da agenda dos direitos humanos, que substancializam direitos fundamentais, concretizando liberdades públicas e direitos sociais[9]. Não há peculiaridade nacional que justifique a negação da universalidade da realização dos direitos fundamentais[10]. Isto é, não há recurso hermenêutico de sentido literal que possa diminuir ou ameaçar o pleno funcionamento da Comissão Nacional da Verdade.

 


[1] Braudel, Fernand, Escritos sobre a História, São Paulo: Perspectiva, 1992, p.85. Tradução de J. Guinsburg e de Tereza Cristina Silveira da Mota.

[2] Art. 1º da Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011 c/c com o caput do art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

[3] A advertência é de E. H. Carr,  no original: That because a mountain appears to take on a different shape from different angles of vision, it has objectively either no shape at all or an infinity of shapes. In, Evans, Richard J., In Defense of History, Norton: New York, 2000, p. 193.

[4] Art. 1º, in fine, da Lei 12.528, de 2011.

[5] Cf. Collingwood, R. G., The Principles of History, New York: Oxford University Press, 2001, pp. 140 e ss.

[6] Cf. Muller, Herbert  J., The Uses of the Past, New York: Galaxy Book, 1967, pp. 60  e ss.

[7] Cf. Palmer, Richard E., Hermeneutics, Evanston: Northwestern University Press, 1969, pp. 20 e ss.

[8] Cf. Gadamer, Hans-Georg, Truth and Method, New York: Continuum, 2004, p. XXXVIII. Tradução do alemão para o inglês por Joel Weinsheimer e Donald G. Marshall.

[9] Cf. Perez Luño, Los Derechos Fundamentales, Madrid: Tecnos, 2007,  pp. 203 e ss.

[10] Conferir, por todos, Carbonell, Miguel, Una Historia de los Derechos Fundamentales, Cidade do México: Porrua, 2005, pp. 10 e ss. 

 

Autores

  • Brave

    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!