Análise Constitucional

Inconstitucionalidade sem parâmetro no Supremo

Autor

  • José Levi Mello do Amaral Júnior

    é professor associado de Direito Constitucional da USP professor do mestrado e do doutorado em Direito do Ceub livre-docente doutor e mestre em Direito do Estado procurador da Fazenda Nacional cedido ao TSE e secretário-geral da Presidência do TSE.

29 de dezembro de 2013, 7h03

Spacca
Jeremy Waldron, em importante artigo doutrinário, afirma que o apoio ao controle judicial de constitucionalidade por vezes vem intensamente vinculado ao apoio dado a certas decisões. A partir daí, busca identificar o núcleo do argumento contra o controle de constitucionalidade abstraindo se as decisões tomadas foram boas ou más (WALDRON, Jeremy. The core of the case against judicial review in The Yale Law Journal, 2006, n. 115, p. 1351).

Em síntese, para Waldron, o controle judicial de constitucionalidade não se justifica em uma sociedade que exiba quatro características: (1) existência de instituições democráticas em razoável bom funcionamento (note-se: Waldron não exige perfeição), incluindo uma legislatura representativa eleita em bases de sufrágio adulto universal; (2) existência de instituições judiciais, também em razoável bom funcionamento (mais uma vez: não exige perfeição), configuradas em bases não representativas para conhecer de processos individuais, definir disputas e preservar o Estado de Direito; (3) existência de compromisso da parte de muitos dos membros da sociedade e dos agentes públicos com a ideia de direitos individuais e de minorias; o que não impede a ocorrência de (4) desacordos — de boa-fé — entre os membros da sociedade comprometidos com a ideia de direitos acerca do sentido desses direitos. Presentes essas características, para Waldron, os desacordos acerca do sentido dos direitos hão de ser resolvidos no âmbito parlamentar, não no âmbito judicial, pois a solução por intermédio das Cortes carece de legitimidade política (WALDRON, The core of the case against judicial review…, p. 1360).

Essas colocações servem como bom pano de fundo para discutir o início do julgamento, em dezembro de 2013, da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.650/DF, pelo Supremo Tribunal Federal, relativamente ao financiamento de campanhas eleitorais.

Já foram proferidos quatro Votos na Ação Direta 4.650/DF. Ressalvadas pequenas variações, afirmam a inconstitucionalidade com ou sem redução de texto de dispositivos legais vigentes, a maioria deles, há mais de quinze anos (por exemplo, os artigos 31 e 39 da Lei 9.096, de 1995, e os artigos 24 e 81 da Lei 9.504, de 1997). São dispositivos relativos ao financiamento de campanhas por pessoas naturais e por pessoas jurídicas.

Segundo relato constante do Informativo 732 do STF, o Relator “julgou inconstitucional o modelo brasileiro de financiamento de campanhas eleitorais por pessoas naturais baseado na renda, porque dificilmente haveria concorrência equilibrada entre os participantes nesse processo político” (Informativo 732 do STF, ADI e financiamento de campanha eleitoral — 3).

No que se refere às pessoas jurídicas, o relator argumentou que o modelo atual “não se mostraria adequado ao regime democrático em geral e à cidadania, em particular”. Para ele, “a participação de pessoas jurídicas apenas encareceria o processo eleitoral sem oferecer, como contrapartida, a melhora e o aperfeiçoamento do debate”. Acrescentou que “a excessiva participação do poder econômico no processo político desequilibraria a competição eleitoral, a igualdade política entre candidatos, de modo a repercutir na formação do quadro representativo” (Informativo 732 do STF, ADI e financiamento de campanha eleitoral — 4 e 5).

Por fim, o relator “recomendou ao Congresso Nacional a edição de um novo marco normativo de financiamento de campanhas, dentro do prazo razoável de 24 meses, observados os seguintes parâmetros: a) o limite a ser fixado para doações a campanha eleitoral ou a partidos políticos por pessoa natural, deverá ser uniforme e em patamares que não comprometam a igualdade de oportunidades entre os candidatos nas eleições; b) idêntica orientação deverá nortear a atividade legiferante na regulamentação para o uso de recursos próprios pelos candidatos; e c) em caso de não elaboração da norma pelo Congresso Nacional, no prazo de 18 meses, será outorgado ao TSE a competência para regular, em bases excepcionais, a matéria” (Informativo 732 do STF, ADI e financiamento de campanha eleitoral — 7).

O julgamento foi suspenso em atenção ao pedido de vista formulado pelo ministro Teori Zavascki.

Com efeito, o financiamento de campanhas eleitorais não encontra na Constituição de 1988 parâmetro de controle de constitucionalidade minucioso. Por exemplo, parâmetro claro no assunto encontra-se no artigo 17, inciso II, que proíbe aos partidos políticos o “recebimento de recursos financeiros de entidade ou governo estrangeiros ou de subordinação a estes”. Não é preciso maior esforço de interpretação para aplicar esse dispositivos às campanhas eleitorais. Vale observar que o próprio Relator anotou que não consta da Constituição “tratamento específico e exaustivo no que concerne ao financiamento de campanhas eleitorais” (Informativo 732 do STF, ADI e financiamento de campanha eleitoral — 3).

Tanto isso é verdade que os votos proferidos manejaram, como parâmetros de controle, princípios constitucionais bastante amplos, como o republicano, o democrático, o da separação dos poderes, o da liberdade de expressão e, em especial, o da igualdade.

Como decorre da exposição preambular, não importa, aqui, discutir as vantagens e as desvantagens de um determinado modelo de financiamento de campanha eleitoral. O que se deseja é refletir sobre a possibilidade de o Supremo levar a efeito as inconstitucionalidades pretendidas pelo relator.

Há, no julgamento que se encaminha, alguns problemas bastante delicados.

Como visto, as inconstitucionalidades apontadas pelos votos proferidos são fundadas em princípios constitucionais genéricos, abstratos, tomados segundo compreensões bastante subjetivas dos julgadores que se manifestaram.

Com isso, malferem-se duas recomendações tão sábias quanto antigas relativamente ao juízo de inconstitucionalidade.

Em obra clássica, Thomas Cooley já ensinava: “Se os tribunais não têm liberdade para declarar leis írritas por causa de sua aparente injustiça ou má política, também não podem fazê-lo porque parecem aos julgadores violar princípios fundamentais do governo republicano, a menos que se pense que esses princípios estão colocados pela Constituição fora da disposição legislativa” (COOLEY, Thomas M. Treatise on the constitutional limitations which rest upon the legislative power of the states of the American union, 6ª edição, Boston: Little, Brown, and Company, 1890, p. 169). Logo adiante completa: “Nem sequer as cortes são livres para declarar uma lei írrita porque em sua opinião opõe-se ela ao espírito que se supõe permear a Constituição, mas não expresso em palavras” (COOLEY, Treatise on the constitutional limitations…, p. 171).

Ora, não há dúvida: o princípio republicano é essencial à Constituição de 1988 e, por isso mesmo, é indisponível ao legislador. Porém, dele não deriva um determinado modelo de financiamento de campanhas eleitorais. Tanto isso é verdade que o constituinte não se ocupou do assunto de modo explícito e detido.

Na literatura brasileira, Lúcio Bittencourt refere-se a uma série de “regras de bom aviso” ou “preceitos sábios” (BITTENCOURT, Carlos Alberto Lúcio. O controle jurisdicional de constitucionalidade das leis, 2ª edição, Brasília: Ministério da Justiça, 1997, p. 111). A sexta regra que menciona — “Vigência não impugnada” — firma: “A tradicional aplicação dos princípios constantes de uma lei, sem que se ponha em dúvida a sua constitucionalidade, é elemento importante no reconhecimento desta.” (BITTENCOURT, O controle jurisdicional…, p. 120). No caso, importa repetir, a discussão se dá relativamente a Leis vigentes há mais de quinze anos e aplicadas em diversas eleições, inclusive no que se refere aos dispositivos impugnados. Claro, não se tem, nisso, atestado de constitucionalidade, mas é um indício a ser tomado em consideração. Tanto isso é verdade que o Relator salvaguarda as situações concretas consolidadas até o momento.

Nos últimos anos, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal foi de encontro a si própria. Assim aconteceu, por exemplo, nas seguintes matérias: (1) cumprimento de penas por crimes hediondos em regime integralmente fechado; (2) fidelidade partidária; (3) criação de municípios.

Agora, também vai de encontro à oportunidade e à conveniência de opções legislativas, invocando, para tanto, princípios constitucionais genéricos tomados segundo compreensões subjetivas dos julgadores. Assim aconteceu nos julgamentos mais recentes sobre precatórios e, agora, ensaia-se em matéria de financiamento de campanhas eleitorais.

Com isso, reforça-se a politização da Justiça, perigo bem apontado por Manoel Gonçalves Ferreira Filho (O Poder Judiciário na Constituição de 1988: judicialização da política e politização da justiça in Revista de Direito Administrativo, n. 198, p. 1-17).

Dessa realidade resulta, no mínimo, insegurança jurídica, em razão da inversão de compreensões jurisprudenciais de há muito assentadas e praticadas. Nesses casos, para evitar a insegurança jurídica, modula-se (ou considera-se modular) no tempo os efeitos das inconstitucionalidade proferidas.

O problema mais grave é de legitimidade, e não pode ser descurado. Por isso mesmo, inconstitucionalidades não podem ser fruto de geração espontânea, mas, sim, devem encontrar parâmetro claro e explícito na Constituição. Do contrário, o que se tem é decisionismo e voluntarismo sem limite ou parâmetro que não seja, simplesmente, a opinião individual, subjetiva, do julgador.

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