Retrospectiva 2013

Os 11 julgamentos que marcaram o ano do Supremo

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26 de dezembro de 2013, 10h43

Spacca
A presente retrospectiva não tem a pretensão de constituir um registro abrangente da jurisdição constitucional em 2013, menos ainda de fazer um estudo analítico sobre o processo decisório do Supremo Tribunal Federal. As decisões aqui comentadas — com a máxima objetividade que se conseguiu — são um retrato da importância institucional que a Corte tem assumido nos últimos anos, dando a palavra final ou participando ativamente na definição de questões centrais do Estado Federal, da organização dos Poderes e do sistema de direitos fundamentais no Brasil. Para não falar de questões menos nobres que também acabam na pauta do STF, em decorrência da própria natureza analítica da Constituição de 1988. Embora a proposta do trabalho seja precipuamente descritiva, considero relevante formular uma reflexão teórica — menos a título conclusivo do que com o intuito de sugerir uma linha de reflexão em torno da jurisprudência.

Esse foi um ano em que se discutiu, com maior abertura, a tensão entre os Poderes Legislativo e Judiciário, notadamente o Supremo Tribunal Federal. Isso se deu, em grande medida, por iniciativa do próprio Congresso Nacional, que se manifestou, por diversos de seus membros, acerca de possíveis "excessos de judicialização". O tema é complexo demais para ser tratado de forma ligeira, mas talvez seja possível enunciar duas observações pontuais. Em primeiro lugar, é auspicioso que o Poder Legislativo esteja preocupado em recuperar a sua centralidade no debate público dos grandes temas nacionais. Não apenas pelo valor intrínseco na deliberação plural, por agentes eleitos, mas também pelas limitações naturais da jurisdição. Embora os tribunais exerçam um papel inestimável como instâncias de reflexão ordenada sobre as exigências da ordem jurídica e garantia dos seus termos, seria ingênuo — e autoritário — supor que as decisões judiciais possam substituir o Legislador e a Administração na moldagem de políticas públicas abrangentes. Seja a gestão de hospitais ou o combate sistemático às múltiplas formas de discriminação.

Em segundo lugar — e entra aqui um contraponto —, não parece adequado que, na discussão quanto à legitimidade da interferência jurisdicional na política, o Supremo Tribunal Federal seja inteiramente equiparado aos demais órgãos judiciais. Esse é um aspecto do debate que talvez venha merecendo menos atenção do que seria devida. Diversas razões justificam a distinção e aqui não será possível fazer mais do enunciar algumas ideias:

(i) O STF está na linha de frente da interpretação constitucional e esta, por circunstâncias diversas, envolve molduras normativas especialmente amplas. Ou seja: a Constituição permite múltiplas interpretações e é inevitável que as visões de mundo dos julgadores desempenhem um papel determinante no resultado final.

(ii) Nesse processo de construção do sentido constitucional, os ministros do STF não funcionam como ilhas em relação ao debate político e social. Ao contrário, estão permanentemente expostos à opinião pública, muito mais do que os magistrados em geral. Isso potencializa o papel da corte como instância de reflexão principiológica sobre as exigências que a ordem jurídica impõem ao processo político majoritário.

(iii) Sem prejuízo da inequívoca legitimidade de o Congresso Nacional reclamar sua primazia na deliberação política, não parece que haja uma insatisfação genérica da sociedade com a atuação do STF. Esse é um ponto que mereceria maior estudo — inclusive empírico — e que agrega algumas sutilezas ao debate clássico sobre a chamada função contramajoritária da jurisdição constitucional.

(iv) De forma coerente com os fatores acima enunciados, o processo de indicação dos ministros envolve não apenas o mérito técnico, mas também um juízo de legitimação política por parte dos órgãos majoritários (Presidência da República e Senado Federal).

Como referido inicialmente, essa enunciação não tem qualquer pretensão de ser conclusiva, sendo antes um convite à reflexão conjunta sobre a jurisprudência do STF e seu papel na dinâmica dos Poderes. Esse um campo em que a importância do legislador não pode ser minimizada, mas que também não comporta o reducionismo de se observar o STF como se fosse um tribunal como qualquer outro. Feitas essas breves observações, passa-se à retrospectiva propriamente dita.

Um passeio pela jurisprudência do STF em 2013

Cabimento dos embargos infringentes e execução imediata das condenações que se tornaram definitivas (26° AgRg e QO na AP 470, julgamento em 18 de setembro de 2013, relator ministro Joaquim Barbosa)

Concluído o julgamento de mérito da AP 470 e após haver rejeitado a quase integralidade dos embargos de declaração opostos pelos réus, o STF dividiu-se entre duas posições quanto à subsistência do artigo 333, I, do seu Regimento Interno, que prevê a possibilidade de interposição de embargos infringentes, por parte da defesa, nos casos em que tenha havido pelo menos quatro votos pela improcedência da ação penal. Por apertada maioria de seis votos contra cinco, prevaleceu o entendimento de que o dispositivo não foi revogado tacitamente pela Lei 8.038/90. Dentre os fundamentos que deram suporte a essa posição, merecem destaque: (i) a previsão consta do Regimento há mais de trinta anos e foi mantida a despeito da edição de emendas regimentais que cuidaram da ação penal; (ii) em 1998, já na vigência da Lei 8.038/90, o Poder Executivo encaminhou projeto de lei ao Congresso Nacional para o fim de revogar os embargos infringentes no âmbito do STF. Após discussão específica, a proposta foi explicitamente rejeitada; (iii) em mais de 30 manifestações — entre decisões monocráticas, de Turmas e do Plenário —, o dispositivo regimental foi referido como razão de decidir, sem que se cogitasse de revogação.

Assentado o cabimento dos embargos infringentes quanto à parte das condenações, colocou-se a discussão sobre a possibilidade de execução imediata das demais. Após a segunda rodada de embargos de declaração, o tema foi suscitado em questão de ordem trazida pelo relator e presidente, ministro Joaquim Barbosa, que se manifestou pela declaração do trânsito em julgado parcial, com o consequente início da fase de execução. Embora a ideia básica tenha contado com a adesão de todos os ministros, houve divergência pontual a respeito de quais condenações já teriam se tornado definitivas. Por maioria, decidiu-se que seriam passíveis de execução os itens que não tivessem sido objeto de embargos infringentes, sem que se pudesse, desde logo, adiantar qualquer juízo de admissibilidade desse recurso. Ficaram vencidos, no ponto, os ministros Joaquim Barbosa, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux e Gilmar Mendes, que já inadmitiam os infringentes nas situações em que estivesse ausente o requisito objetivo de pelo menos quatro votos pela improcedência da ação penal.

A controvérsia quanto à perda de mandato parlamentar em razão de condenação criminal transitada em julgado (AP 565, julgamento em 8 de agosto de  2013, relatora ministra Cármen Lúcia; MS 32.326, decisão cautelar monocrática em 2 de setembro de 2013, relator ministro Luís Roberto Barroso)

A Ação Penal 565 resultou na condenação de um Senador da República por um conjunto de fraudes a licitações que teriam sido praticadas, entre 1998 e 2002, na condição de prefeito. Para além de confirmar o começo do fim da tradição nacional de persecução penal seletiva, o precedente é relevante pela discussão que nele se travou quanto à perda do mandato parlamentar em razão de condenações criminais definitivas. Modificando o entendimento que havia sido firmado na AP 470, a nova composição da Corte decidiu que a hipótese atrai a incidência do artigo 55, VI c/c parágrafo 2°, da Constituição Federal. A combinação de tais dispositivos, como se sabe, estabelecia textualmente que a perda do mandato, nessa situação, deve ser “decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta”[1]. Embora identificando os inconvenientes intuitivos desse sistema, os ministros que compuseram a maioria manifestaram a compreensão de não ser possível contornar a literalidade do dispositivo constitucional que, de forma específica, trata da hipótese de condenação criminal transitada em julgado. Ficaram vencidos os ministros Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e Joaquim Barbosa[2].

Sem prejuízo da maioria que se formou quanto à regra geral, uma situação peculiar logo se apresentou, envolvendo Deputado Federal condenado à treze anos de reclusão em regime inicial fechado. Por não exercer mandato na data da condenação, a corte deixou de se pronunciar de forma conclusiva quanto à perda do mandato. Nesse contexto, e já após o precedente comentado no parágrafo anterior, a Câmara dos Deputados entendeu que seria sua a competência para resolver sobre a perda do mandato, que acabou mantido por não se haver alcançado a maioria absoluta exigida para a cassação. O impasse levou à impetração de mandado de segurança por outro parlamentar da Casa, sob a alegação de que a deliberação realizada seria inconstitucional. Em decisão cautelar monocrática, o ministro Luís Roberto Barroso suspendeu os efeitos da decisão tomada pela Câmara, tendo em vista que o período de prisão a ser cumprido em regime fechado seria objetivamente incompatível com o exercício do mandato parlamentar. Nesse cenário específico, portanto, não haveria discricionariedade política possível, cabendo à Mesa a mera declaração da perda. Contra a decisão fo interposto agravo regimental, liberado para julgamento.

Controle jurisdicional do devido processo legislativo: ordem cronológica dos vetos, criação de novos partidos e regime de demarcação das terras indígenas (AgRg no MS 31.816, julgamento em 27 de fevereiro de 2013, relator ministro Luiz Fux; AgRg no MS 32.033, julgamento em 20 de junho de 2013, relator originário ministro Gilmar Mendes, relator para o acórdão ministro Teori Zavascki; MS 32.262, decisão monocrática de 23 de setembro 2013, relator ministro Luís Roberto Barroso)

Um dos temas que mereceu destaque na agenda de 2013 foi a discussão quanto aos limites do controle jurisdicional sobre o devido processo legislativo. Nesse tópico são destacadas três decisões que, apesar de envolverem situações distintas, chegaram ao mesmo resultado básico: confirmar a absoluta excepcionalidade dessa forma de interferência. O primeiro caso envolveu decisão cautelar, proferida pelo ministro Luiz Fux, que impediu a deliberação acerca do veto presidencial às novas regras sobre distribuição de royalties e participações de petróleo. O fundamento central foi a existência de cerca de três mil vetos anteriores, também pendentes de apreciação. A consequência lógica disso, nos termos do artigo 66, parágrafos 4° e 6° da Constituição, seria o trancamento da pauta para deliberações subsequentes, impondo-se a observância da ordem de precedência. A despeito de a quase generalidade dos Ministros haver reconhecido a inconstitucionalidade da praxe de o Congresso não deliberar sobre os vetos, uma apertada maioria de seis votos a quatro considerou inadequada a reversão do status quo por decisão liminar, com grave restrição da agenda legislativa.

O segundo precedente escolhido para comentário originou-se de decisão cautelar do ministro Gilmar Mendes, na qual se determinou o trancamento da deliberação acerca do Projeto de Lei Complementar 14/2013. Tal projeto destinava-se a criar limitações à criação de novos partidos políticos no curso da legislatura, estabelecendo “que a migração partidária que ocorrer durante a legislatura, não importará na transferência dos recursos do fundo partidário e do horário de propaganda eleitoral no rádio e na televisão”. Além de destacar que a medida iria ao encontro da diretriz estabelecida pelo STF em precedente anterior e recente —a ADI 4.430 —, a decisão buscou fundamento no contexto atípico que se desenhava, a saber: (i) a rapidez incomum que passou a caracterizar a tramitação — com a consequente restrição do debate efetivo —; e (ii) “a aparente tentativa casuística de alterar as regras para criação de partidos na corrente legislatura, em prejuízo de minorias políticas e, por conseguinte, da própria democracia”. Também aqui, porém, apertada maioria dos ministros negou referendo à liminar e negou seguimento ao mandado de segurança, destacando a gravidade de se efetuar controle preventivo sobre o conteúdo e a dinâmica da deliberação parlamentar.

Por fim, a terceira decisão foi proferida pelo ministro Luís Roberto Barroso no MS 32.262, com o qual se pretendia suspender a deliberação da Proposta de Emenda à Constituição 215, que transferia ao Congresso Nacional a palavra final sobre a demarcação de terras indígenas. Nesse caso, ao contrário do que se verificava nos anteriores, o foco das impugnações não incluía a alegação de atropelo procedimental, concentrando-se na tese de que o ato demarcatório estaria inserido na reserva de Administração, por sua própria natureza técnica. Embora tenha destacado a plausibilidade jurídica da impetração — uma vez que o deslocamento dessa decisão para o Congresso Nacional converteria a proteção dos direitos indígenas em questão de política majoritária, com evidente prejuízo para as comunidades tradicionais — o ministro negou a liminar postulada. Para tanto, destacou a importância de se privilegiar a ampla deliberação parlamentar, inclusive para que eventuais vícios substanciais do projeto possam ser objeto de debate amplo e plural, do que pode resultar eventual correção de rumos.

Controle jurisdicional sobre políticas públicas complexas (RE 440.028, julgamento em 29 de outubro de 2013, relator ministro Marco Aurélio; AI 759.543, julgamento em 18 de dezembro de 2013, relator ministro Celso de Mello)

Ao lado do monitoramento sobre as exigências do devido processo legislativo, outro tema de especial interesse no domínio da separação dos Poderes envolveu o controle jurisdicional sobre a elaboração e a execução de políticas públicas complexas, que envolvem escolhas políticas variadas e a decisão sobre a alocação dos recursos públicos escassos. Nesse campo, duas decisões merecem especial destaque. A primeira foi tomada pela 1ª Turma do Tribunal, em ação civil pública movida pelo Ministério Público de São Paulo que visava à remoção de barreiras arquitetônicas em escola pública estadual, de forma a permitir o acesso de alunos com deficiência. Acompanhando o voto do relator, ministro Marco Aurélio, a Turma deu provimento a recurso extraordinário para reformar acórdão do TJ-SP e determinar a efetiva realização das adaptações necessárias. Além de destacar a inexistência de discricionariedade política para deixar de assegurar o acesso igualitários dos alunos, o voto condutor destacou o fato de a medida ser exigida pela Convenção Internacional Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, a primeira incorporada à ordem jurídica nacional com o status de emenda constitucional, nos termos do artigo 5º, parágrafo 3°, da Constituição.

O segundo caso a ser citado foi decidido pela 2ª Turma, em agravo regimental que, por unanimidade, confirmou decisão monocrática do ministro Celso de Mello. Nesse caso, a corte manteve acórdão do TJ-RJ que, também em ação civil pública movida pelo parquet, determinou ao Município do Rio de Janeiro que realizasse melhorias básicas no Hospital Souza Aguiar. Também aqui, prevaleceu o argumento de que não há discricionariedade política para deixar de atender, em patamar mínimo, às exigências da Constituição em matéria de direitos prestacionais básicos. De forma ainda mais pontual e objetiva, parece possível afirmar que a discricionariedade existente — que envolve decisões como a instalação de um novo hospital ou a ampliação de um já existente — não legitima uma suposta escolha de prestar serviços manifestamente incompatíveis com a dignidade humana. Nessas condições, mais do que se falar em omissões administrativas, o que se tem é uma atividade positiva prestada de forma incompatível com a exigência de qualidade mínima que se pode extrair da ordem constitucional.

A discussão sobre a criação de quatro novos tribunais regionais federais (ADI 5.017, decisão monocrática do presidente, proferida em 18 de julho de 2013, relator ministro Luiz Fux)

Em decisão monocrática proferida durante o recesso forense, o presidente da Corte, ministro Joaquim Barbosa, suspendeu a eficácia da Emenda Constitucional 73/2013, que determinava a criação de quatro novos tribunais regionais federais. A medida buscou fundamento em dois argumentos complementares. Em primeiro lugar, do ponto de vista estritamente técnico, a decisão considerou consistente a tese de violação ao artigo 96, II, c, da Constituição, que atribui ao próprio Poder Judiciário — no caso, ao STJ — a competência para propor a criação de novos tribunais inferiores. Nessa linha, a via da emenda constitucional não poderia ser utilizada como forma de se contornar a referida iniciativa legislativa, sob pena de violação à independência orgânica do Judiciário e, por conseguinte, ao princípio da separação dos Poderes.

Em segundo lugar, ingressando em considerações de ordem pragmática, a decisão utilizou dados do Conselho Nacional de Justiça e do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) para manifestar o entendimento de que a criação dos novos tribunais produziria um significativo impacto no orçamento do Poder Judiciário, sem que isso se traduza em aumento de eficiência na prestação jurisdicional. Esse objetivo seria melhor alcançado por meio da valorização da figura do magistrado e pelo investimento na melhoria da estrutura judicial já existente. Vale dizer: além de aparentemente haver se imiscuído em matéria que dependeria de iniciativa do próprio Judiciário, o legislador teria desconsiderado a realidade específica daquele Poder e suas necessidades.

Suspensão cautelar das novas regras de repartição dos royalties e participações sobre a exploração de petróleo (ADI 4.917, decisão monocrática de 18 mar. 2013, Rel.a Min.a Cármen Lúcia)

Em decisão liminar na ADI 4.917, ajuizada pelo Estado do Rio de Janeiro, a ministra Cármen Lúcia suspendeu a aplicação de um conjunto de dispositivos da Lei Federal 12.734/2012, que alteravam o sistema de repartição dos royalties e participações pela exploração do pétroleo. O novo regime pretende reduzir drasticamente o quinhão destinado aos estados e municípios produtores — isto é: situados nos locais de produção ou com eles confrontantes —, realocando os recursos em favor dos demais entes locais. Além de afetar novos campos de exploração, a medida tem a pretensão de alterar o cálculo das participações sobre aqueles que já se encontram em atividade, o que levou a presidente Dilma Roussef a vetar parcialmente o projeto. Com a derrubada do veto pelo Congresso Nacional, os Estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Espírito Santo foram ao STF questionar não apenas a incidência que consideram indevidamente retroativa, mas também a própria constitucionalidade da redistribuição.

Em sua decisão cautelar, a ministra Cármen Lúcia considerou plausíveis os argumentos de impugnação, com destaque para as alegações de que: (i) o art. 20, parágrafo 1°, da Constituição Federal confere aos estados e municípios produtores um direito originário à compensação ou participação financeira no produto da exploração, de modo que não seria possível equiparar a situação desses entes com a dos demais. Não apenas por conta da literalidade do dispositivo constitucional, mas também pela sua teleologia, que seria a de compensar os ônus e riscos advindos do especial envolvimento na atividade exploratória; e (ii) em matéria de petróleo, o sistema constitucional atribui os royalties e participações aos entes produtores, mas inverte a regra geral do ICMS em favor dos consumidores, determinando a incidência em favor dos Estados de destino (CF/88, art. 155, X, b). Nesse contexto, a modificação de apenas um dos elementos do sistema produziria um desequilíbrio grave e objetivo, assim caracterizado pela eminente relatora: “A alteração das regras relativas ao regime de participação no resultado da exploração de petróleo ou gás natural ou da compensação pela exploração, sem mudança constitucional do sistema tributário, importa em desequilibrar o tão frágil equilíbrio federativo nacional e em desajustar, mais ainda, o regime financeiro das pessoas federadas sem atenção aos princípios e às regras que delineiam a forma de Estado adotada constitucionalmente”.

A inconstitucionalidade sistemática dos precatórios, ou: a luz no fim do túnel, que iluminava a entrada de outro túnel… O STF em busca de uma saída em direção à normalidade institucional (ADI 4.357 e ADI 4.455, julgamento em 14 de março de 2013, relator originário ministro Carlos Britto, relator para o acórdão ministro Luiz Fuz)

Em um dos julgamentos mais importantes dos últimos anos, o STF declarou a inconstitucionalidade parcial da Emenda Constitucional 62/2009, que introduzia inúmeras alterações no regime constitucional dos precatórios, disciplinado no artigo 100, da Constituição. Dentre outras alterações, foi permitida a instituição, por lei complementar federal, de um regime especial para o pagamento do estoque de precatórios pendentes, acumulado ao longo dos muitos anos de inadimplemento por Estados e Municípios. A fim de não adiar ainda mais um começo de solução, a própria Emenda criava um artigo 97 no ADCT e instituía um regime especial transitório. No entanto, embora destacando a necessidade premente de um choque de moralidade pública no tema dos precatórios, o maioria dos ministros entendeu que a solução aventada seria flagrantemente incompatível com a Constituição. Não apenas por representar uma nova moratória do Poder Público em favor de si mesmo — notadamente pela previsão do longo prazo de quinze anos para a quitação do estoque —, mas também por um conjunto de medidas consideradas abusivas[3].

É difícil encontrar observadores isentos — ou mesmo parciais — capazes de defender a prática de o Estado se valer de suas prerrogativas institucionais para deixar de pagar os seus credores. Essa tradição marcadamente antirrepublicana incorporou-se ao modo de ser das Fazendas estaduais e municipais, atravessando governos de diferentes ideologias e gerando um passivo intimidador, mesmo para os entes federativos que estejam atualmente empenhados na solução do problema. Nesse ambiente, levantou-se o risco de que o cumprimento imediato e convencional da decisão tomada pelo STF possa levar a duas situações ainda piores do que a própria Emenda Constitucional: (i) o retorno ao anterior estado de inconstitucionalidade sistemática, em que todas as dívidas eram imediatamente exigíveis e quase nenhuma era efetivamente quitada; ou (ii) a virtual falência da maioria dos entes locais, que teriam de alocar em seus orçamentos o valor corresponde ao estoque da dívida, paralisando o cumprimento de outras obrigações constitucionais de igual ou maior relevância, no que se inclui a prestação dos serviços públicos essenciais.

Tal impasse gerou uma ampla discussão quanto à necessidade de modulação temporal da declaração de inconstitucionalidade e à busca de soluções alternativas. Nessa linha, o atual relator, ministro Luiz Fux, formulou a proposta de se dar uma sobrevida de cinco anos à parte do regime especial, permitindo que estados e municípios reorganizem o seu planejamento orçamentário à luz dessa nova realidade. O julgamento foi interrompido por pedido de vista do ministro Luís Roberto Barroso, motivado pelo propósito de aprofundar a reflexão conjunta da corte acerca de possíveis medidas que tornem efetiva a decisão, permitindo o retorno dos entes locais à normalidade institucional.

Embargos de declaração no caso Raposa Serra do Sol: alcance da decisão e validade das chamadas condicionantes impostas pelo STF (ED na PET 3.388, julgamento em 23 de outubro de 2013, relator ministro Luís Roberto Barroso)

O STF julgou oito embargos de declaração opostos contra o acórdão que julgara válida a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, limitando-se a prestar esclarecimentos e explicitar algumas consequências inerentes à decisão de mérito. Nessa linha, ficou consignado, e.g., que os índios têm direito a manter práticas imemoriais de mineração artesanal, inseridas em sua cultura. Não têm a prerrogativa, porém, de explorar comercialmente esses mesmos recursos sem a autorização do Congresso Nacional, tal como os demais cidadãos. Da mesma forma, a corte esclareceu que missionários religiosos não podem impor a sua presença às comunidades indígenas, o que não significa que os índios sejam obrigados ao isolamento cultural. Ao contrário, a decisão por um ou outro caminho é exclusivamente sua, no exercício dos seus direitos fundamentais e da sua autonomia moral.

A questão mais relevante, porém, dizia respeito à validade das chamadas condicionantes, introduzidas em voto-vista do ministro Menezes Direito e posteriormente incorporadas, por decisão majoritária, na parte dispositiva do acórdão[4]. Nesse particular, por maioria, a corte rejeitou a alegação de que teria invadido o espaço de decisão do legislador, entendendo que as referidas condições integram o regime jurídico das terras indígenas, decorrente da própria Constituição. A explicitação desse regime teria sido feita justamente para acabar com o estado de insegurança quanto às regras incidentes sobre a área, fator que tem contribuído para o grave conflito social que se arrasta há décadas na região. Por outro lado, a decisão igualmente explicitou que as condicionantes não tem força vinculante em sentido formal, ou seja, não são de observância obrigatória pelos demais juízes e tribunais, em outros casos. Como é natural, a manifestação do STF tem a força persuasiva que lhe é própria e haverá de ser tomada em consideração pelos magistrados e demais autoridades que vierem a atuar em situações análogas.

Interpretação do artigo 25, parágrafo 3º, da Constituição: o regime jurídico dos aglomerados urbanos (ADI 1.841, Julgamento em 6 de março de 2013, relator ministro Luiz Fux)

Por decisão majoritária, o STF declarou a inconstitucionalidade parcial da Lei Complementar 87/89, do estado do Rio de Janeiro, que instituiu a Região Metropolitana do Rio de Janeiro e a Microrregião dos Lagos, transferindo ao estado competências municipais relacionadas ao saneamento básico. O tema em debate envolvia a interpretação adequada do artigo 25, parágrafo 3°, da Constituição, que prevê a competência estadual para a instituição de aglomerados urbanos com o objetivo de “integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum”. Acabou prevalecendo posição intermediária, inicialmente defendida pelo ministro Gilmar Mendes, no sentido de se considerar que os estados não podem simplesmente avocar competências municipais, mas tampouco devem se limitar a prestar assistência operacional à atuação destes últimos. Em vez disso, cabe à lei complementar estadual definir um modelo concreto de exercício compartilhado, entre o Estado e os respectivos municípios, das competências pertinentes, de modo a que se assegure a efetiva integração dos serviços de interesse comum, tal como determina o texto constitucional.

Também por maioria, a corte modulou os efeitos temporais da decisão, concedendo um prazo de vinte e quatro meses para que os entes locais editem nova legislação, compatível com a diretriz estabelecida. Ficou vencido, no particular, o ministro Marco Aurélio, coerente com o seu entendimento acerca da ilegitimidade da atenuação da nulidade dos atos inconstitucionais. Ainda quando ao prazo para adequação, merece destaque a menção, contida em diversos votos, quanto à possibilidade de que sejam concebidas diferentes fórmulas específicas de compartilhamento das competências. Em voto-vista, o ministro Ricardo Leandowski destacou a eventual criação de órgãos ou entidades de caráter intergovernamental, inovando na estrutura tradicional de organização dos entes federativos. A despeito dessa multiplicidade de cenários imagináveis, houve aparente consenso quanto à necessidade de que os centros decisórios que venham a ser constituídos sejam baseados na paridade entre o estado e o conjunto de municípios, evitando-se a imposição unilateral de soluções por um desses pólos.

Inconstitucionalidade da reintrodução do voto impresso (ADI 4.543, julgamento em 6 de novembro de 2013, relatora ministra Cármen Lúcia)

Por unanimidade, a corte declarou a inconstitucionalidade do artigo 5°, da Lei 12.034/09, pelo qual se reintroduzia o voto impresso a partir das eleições de 2014. A medida seria implementada por meio de impressoras acopladas às urnas eletrônicas, efetuando-se a impressão de cédula e o seu depósito automático no recipiente apropriado, sem contato físico do eleitor ou de terceiros. Em cuidadoso voto, a relatora, ministra Cármen Lúcia, analisou o direito fundamental ao sigilo do voto e a consequente invalidade de qualquer providência que possa importar esvaziamento dessa garantia básica. O risco, na hipótese, decorreria das limitações inerentes à votação escrita — amplamente conhecidos na tradição brasileira —, bem como pela dificuldade operacional de se assegurar o adequado funcionamento das impressoras.

Em suporte a essa conclusão essencial, a relatora discorreu sobre o inequívoco sucesso institucional do sistema brasileiro de votação eletrônica, já copiado em diversos países do mundo e fonte de inspiração para projetos similares em outros tantos. Destacou, igualmente, a existência de inúmeros mecanismos para o controle da confiabilidade do processo informatizado, aperfeiçoados ao longo do tempo e atualmente aplicados de forma muito satisfatória. Nesse contexto, a reintrodução do voto impresso representaria um retrocesso na concretização do direito político ao voto sigiloso e independente. Ainda que não tenha subscrito essa tese de forma analítica, o conjunto de votos parece ter aderido à premissa de que, em linha de princípio, o retorno ao voto escrito seria um passo atrás. Disso decorre a imposição de um pesado ônus argumentativo ao legislador, caso pretenda revisitar a matéria.

Validade da instituição e incidência imediata de prazo decadencial razoável para a revisão de benefício previdenciário (RE 626.489-RG, julgamento em 16 de outubro de 2013, relator ministro Luís Roberto Barroso)

Em decisão unânime, o STF julgou recurso extraordinário com repercussão geral e assentou a validade da Medida Provisória 1.523-9/97 — posteriormente convertida na Lei 9.528/97 —, que estabeleceu o prazo decadencial de dez anos para o pedido de revisão de benefícios previdenciários por parte do indivíduo, igualmente aplicável para a pretensão estatal de modificação. O referido prazo aplica-se de forma indistinta a todos os benefícios, inclusive os que tenham sido concedidos em data anterior. Nesse caso, naturalmente, o termo inicial da contagem foi a própria data de introdução do novo prazo, preservando-se a isonomia e evitando-se a quebra da segurança jurídica. Nesse ponto, a Corte rejeitou a alegação de que haveria ofensa ao direito adquirido, reconhecendo que a hipótese seria de incidência imediata do novo regime jurídico.

No tocante aos fundamentos teóricos, merece destaque uma importante distinção que se estabeleceu entre a inexistência de prazo para o requerimento inicial de benefício — decorrente da natureza fundamental do direito à previdência social —, e a possibilidade de se condicionar eventual revisão a um prazo razoável. Tal como destacado no voto condutor, essa limitação temporal “destina-se a resguardar a segurança jurídica, facilitando a previsão do custo global das prestações sociais. Em rigor, esta é uma exigência relacionada à manutenção do equilíbrio atuarial do sistema previdenciário, propósito que tem motivado sucessivas emendas constitucionais e medidas legislativas. Em última análise, é desse equilíbrio que depende a própria continuidade da Previdência, para esta geração e as seguintes”.


[1] Posteriormente, o voto secreto para essa deliberação foi abolido pela Emenda Constitucional 76, de 28 de novembro de 2013. Foram mantidas, porém, a competência das Casas Legislativas para a decisão e o quórum de maioria absoluta.

[2] Embora tivesse aderido a essa corrente na AP 470, o ministro Luiz Fux não participou desse novo julgamento em razão de impedimento. Assim, embora a votação tenha ficado 6 a 4, parece seguro afirmar que a posição minoritária é endossada por cinco dos ministros que compõem a Corte.

[3] Nesse particular, foram objeto de especial reprovação: (i) a sistemática de leilões ao contrário, nos quais credores desalentados disputariam para ver quem abriria mão de maiores valores; e (ii) a correção dos precatórios pelo índice da caderneta de poupança, cuja sistemática defasagem em relação aos índices inflacionários representaria um novo ato de força em detrimento dos particulares.

[4] Para maior clareza, confira-se o texto das referidas condicionantes e a forma como foram introduzidas na parte dispositiva do acórdão: “Declarada, então, a constitucionalidade da demarcação contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e afirmada a constitucionalidade do procedimento administrativo-demarcatório, sob as seguintes salvaguardas institucionais majoritariamente aprovadas: a) o usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas (§ 2º do art. 231 da Constituição Federal) não se sobrepõe ao relevante interesse público da União, tal como ressaído da Constituição e na forma de lei complementar (§ 6º do art. 231 da CF); b) o usufruto dos índios não abrange a exploração mercantil dos recursos hídricos e dos potenciais energéticos, que sempre dependerá (tal exploração) de autorização do Congresso Nacional; c) o usufruto dos índios não alcança a pesquisa e a lavra das riquezas minerais, que sempre dependerão de autorização do Congresso Nacional, assegurando-se-lhes a participação nos resultados da lavra, tudo de acordo com a Constituição e a lei; d) o usufruto dos índios não compreende a garimpagem nem a faiscação, devendo-se obter, se for o caso, a permissão de lavra garimpeira; e) o usufruto dos índios não se sobrepõe aos interesses da política de defesa nacional; a instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho igualmente estratégico, a critério dos órgãos competentes (Ministério da Defesa, ouvido o Conselho de Defesa Nacional), serão implementados independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas, assim como à Fundação Nacional do Índio (FUNAI); f) a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal na área indígena, no âmbito das respectivas atribuições, fica assegurada e se dará independentemente de consulta às respectivas comunidades indígenas, ou à FUNAI; g) o usufruto dos índios não impede a instalação, pela União Federal, de equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além das construções necessárias à prestação de serviços públicos pela União, especialmente os de saúde e educação; h) o usufruto dos índios na área afetada por unidades de conservação fica sob a responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, respeitada a legislação ambiental; i) o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade responderá pela administração da área da unidade de conservação também afetada pela terra indígena, com a participação das comunidades aborígines, que deverão ser ouvidas, levando-se em conta os usos, tradições e costumes deles, indígenas, que poderão contar com a consultoria da FUNAI, observada a legislação ambiental; j) o trânsito de visitantes e pesquisadores não-índios é de ser admitido na área afetada à unidade de conservação, nos horários e condições estipulados pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade; l) admitem-se o ingresso, o trânsito e a permanência de não-índios em terras indígenas não ecologicamente afetadas, observados, porém, as condições estabelecidas pela FUNAI e os fundamentos desta decisão; m) o ingresso, o trânsito e a permanência de não-índios, respeitado o disposto na letra l , não podem ser objeto de cobrança de nenhuma tarifa ou quantia de qualquer natureza por parte das comunidades indígenas; n) a cobrança de qualquer tarifa ou quantia também não é exigível pela utilização das estradas, equipamentos públicos, linhas de transmissão de energia ou outros equipamentos e instalações públicas, ainda que não expressamente excluídos da homologação; o) as terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico que atente contra o pleno exercício do usufruto e da posse direta por comunidade indígena ou pelos índios (art. 231, § 2º, Constituição Federal, c/c art. 18, caput, Lei nº 6.001/1973); p) é vedada, nas terras indígenas, a qualquer pessoa estranha às etnias nativas a prática de caça, pesca ou coleta de frutos, assim como de atividade agropecuária ou extrativista (art. 231, § 2º, Constituição Federal, c/c art. 18, § 1º, Lei nº 6.001/1973); q) as terras sob ocupação e posse das comunidades indígenas, o usufruto exclusivo das riquezas naturais e das utilidades existentes nas terras ocupadas, observado o disposto nos arts. 49, XVI, e 231, § 3º, da CR/88, bem como a renda indígena (art. 43 da Lei nº 6.001/1973), gozam de imunidade tributária, não cabendo a cobrança de quaisquer impostos, taxas ou contribuições sobre uns ou outros; r) é vedada a ampliação da terra indígena já demarcada; s) os direitos dos índios sobre as suas terras são imprescritíveis, reputando-se todas elas como inalienáveis e indisponíveis (art. 231, § 4º, CR/88); t) é assegurada a participação dos entes federados no procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas, situadas em seus territórios, observada a fase em que se encontrar o procedimento”.

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