Paradoxo da Corte

Desistência do recurso não se subordina ao crivo dos tribunais

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24 de dezembro de 2013, 7h00

É interessante observar como em muitas ocasiões a jurisprudência cria teses tomando como paradigma precedente pretoriano originado de situação completamente discrepante.

Dispõe o art. 501 do CPC que: “O recorrente poderá, a qualquer tempo, sem a anuência do recorrido ou dos litisconsortes, desistir do recurso”.

Diferentemente da renúncia, a desistência do recurso pode ser conceituada como a abdicação expressa da posição processual, alcançada pelo recorrente, após a interposição do recurso. Trata-se, à evidência, de ato voluntário abdicativo dependente da exclusiva vontade de quem se valeu de qualquer meio de impugnação.

Sob a égide do CPC em vigor, a desistência da ação não se confunde com a do recurso, porque aquela, para ser eficaz, após ter decorrido o prazo de resposta, exige o consentimento do réu (art. 267, parágrafo 4º), uma vez que este pode ter interesse no julgamento de mérito. A desistência do recurso, pelo contrário, não é condicionada a qualquer atitude do outro litigante, visto que, diante de uma decisão adversa, quem desiste do recurso que interpôs, a rigor, beneficia o vencedor, ainda que tenha ele manejado recurso adesivo.

Importa esclarecer que esta tem sido a orientação que sempre prevaleceu na jurisprudência, mesmo no âmbito das denominadas ações constitutivas necessárias, ou seja, que têm como objeto direito indisponível (v. g.: anulação de casamento, investigação de paternidade etc). Como o processo civil de conotação liberal é governado pelo princípio da demanda, em especial, nos países democráticos, a autonomia da vontade das partes deve se sobrepor a qualquer espécie de interpretação judicial autoritária, que contrarie a letra da lei. O CPC não traça qualquer distinção entre os meios recursais, para que se possa interpretar incabível a desistência de recursos extraordinário e especial. Invoco aqui o oportuno aforismo: ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus.

Ademais, quanto ao momento da desistência do recurso, a tendência da doutrina e dos tribunais é a de admiti-la até antes de seu julgamento, por petição, ou, ainda, mesmo quando já iniciado, em eventual sustentação oral ou, por exemplo, após a leitura do voto do relator, havendo pedido de vista dos demais integrantes da turma julgadora.

Importante precedente da 1ª Turma do STF, no julgamento do Agravo Regimental nos Embargos de Declaração no Agravo de Instrumento n. 773.754-SP, de relatoria do ministro Dias Toffoli, deixou assentado, a propósito, que: “Enquanto não ultimado o julgamento do apelo aqui em trâmite, pode a parte desistir do recurso…”.

Ocorre que o STJ teve de enfrentar esta questão no âmbito de recurso especial repetitivo. A ministra Nancy Andrighi, relatora do Recurso Especial n. 1.063.343-RS, na 3ª Turma, suscitou questão de ordem e levou o caso para a apreciação da Corte Especial. Verifica-se que a homologação da desistência foi afastada. Em síntese, restou asseverado no voto condutor que, pela função unificadora atribuída ao STJ pela Constituição Federal: “A exegese do art. 501 do CPC deve ser feita à luz da realidade surgida após a criação do STJ, levando-se em consideração o seu papel, que transcende o de ser simplesmente a última palavra em âmbito infraconstitucional, sobressaindo o dever de fixar teses de direito que servirão de referência para as instâncias ordinárias de todo o país. A partir daí, infere-se que o julgamento dos recursos submetidos ao STJ ultrapassa o interesse individual das partes nele envolvidas, alcançando toda a coletividade para a qual suas decisões irradiam efeitos”. E isso sobretudo no bojo do recurso especial repetitivo, no qual deve prevalecer o interesse coletivo!

Não obstante, mais recentemente, no julgamento do Recurso Especial n. 1.308.830-RS, pela 3ª Turma do STJ, a mesma ministra Nancy Andrighi, entusiasmada com a tese que defendera, ao proferir voto na condição de relatora, sustentou — por paradoxal que possa parecer — ser ela cabível no âmbito do Recurso Especial, mesmo que não repetitivo, ao argumento de que: “Agora, numa reflexão mais detida sobre o tema, vejo que essa premissa na realidade é válida de forma indistinta para o julgamento de todos os recursos especiais, cujo resultado sempre abrigará intrinsecamente um interesse coletivo, ainda que aqueles sujeitos ao procedimento do art. 543-C do CPC possam tê-lo em maior proporção. Sendo assim, o pedido de desistência não deve servir de empecilho a que o STJ prossiga na apreciação de mérito recursal, consolidando orientação que possa vir a ser aplicada em outros processos versando sobre idêntica questão de direito. Do contrário, estar-se-ia chancelando uma prática extremamente perigosa e perniciosa, conferindo à parte o poder de determinar ou influenciar, arbitrariamente, a atividade jurisdicional que cumpre o dever constitucional do STJ, podendo ser caracterizado como verdadeiro atentado à dignidade da Justiça…”.

Convenhamos, com o devido respeito, a transformação ope judicis da natureza do Recurso Especial, sob a regência de um processo civil de corte liberal, é que constitui um verdadeiro atentado à dignidade do litigante que, transigindo com o seu adversário, resolveu desistir do recurso interposto!

O ponto de vista da eminente ministra Nancy Andrighi não encontra amparo na legislação processual civil em vigor, mas, sim, de lege ferenda, no projeto do CPC, cujo parágrafo único do art. 1.011 preceitua que: “A desistência do recurso não impede a análise da questão cuja repercussão geral já tenha sido reconhecida e daquela objeto de julgamento de recursos extraordinários ou especiais repetitivos”.

Como já tive oportunidade de afirmar, a previsibilidade da jurisprudência e a segurança jurídica partem do pressuposto de que todo magistrado, em sua nobre função judicante, subordina-se exclusivamente à lei (“e não ao seu próprio código!”). A incerteza gerada pelo advento de um novo precedente contra legem acarreta um custo social e econômico elevadíssimo, ainda que aquele não ostente eficácia vinculante.

Com efeito, a tese que havia então vingado nos domínios do STJ norteou infelizmente alguns outros julgados, como, e. g., na esfera da recuperação judicial, a 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ-SP, no julgamento do Agravo de Instrumento n. 0114685-06.2012.8.26.0000, relatado pelo desembargador Pereira Calças, indeferiu pleito de desistência do recurso, colacionando, como primordial fundamento, a ratio decidendi explicitada no supra invocado acórdão lançado no Recurso Especial n. 1.308.830-RS. A meu ver, tal fundamentação não se coaduna com os princípios que norteiam o direito processual civil pátrio. É bem verdade — justiça seja feita — que o apontado desembargador relator presumiu a existência de fraude entre as partes e, assim, ressalvou que “excepcionalmente” afastava a incidência do art. 501 do CPC.

Anoto ainda, nesse sentido, o voto vencido subscrito pela desembargadora Lígia Araújo Bisogni, no Agravo de Instrumento n. 0124712-14.2013.8.26.0000, da 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ-SP, ao averbar, de forma inusitada, para afastar requerimento de desistência do recurso de agravo de instrumento, que a matéria referente à recuperação judicial ostenta interesse público que sobrepuja o interesse das partes!…

No entanto, como tudo que extrapola o razoável acaba de um modo ou de outro encontrando o seu rumo certo, recentíssimo julgado da 3ª Turma do STJ, no Recurso Especial n. 1.370.698-SP, que passou a ser relatado pelo ministro João Otávio de Noronha, afastou aquela orientação, antes agasalhada, para homologar, por maioria, a desistência de Recurso Especial já pautado.

Tratava-se do reclamo de uma consumidora, que afirmava ter encontrado uma fita plástica dentro de uma garrafa de cerveja, havendo notícia superveniente de que as partes acordaram o pagamento de indenização por dano moral no valor de R$ 15 mil.

Contra os votos dos ministros Nancy Andrighi, relatora sorteada, e Paulo de Tarso Sanseverino, prevaleceram os argumentos expendidos pelo ministro João Otávio de Noronha, reproduzidos no portal do STJ (18 de dezembro de 2013), no sentido de que: “Apesar de sua natureza excepcional, o recurso especial existe para satisfazer as partes. O STJ não pode se opor à desistência apresentada pelas partes, sob a justificativa de poder manifestar-se sobre uma tese, em detrimento do interesse privado contido na demanda… É compreensível a cautela do STJ quanto à homologação da desistência em julgamentos de recursos repetitivos. Nesses casos, como há outros processos parados em diversos tribunais aguardando a decisão do paradigma, ante o pedido de desistência, o STJ julga a tese e depois homologa a desistência do caso específico…”. Contudo, pondera: “A parte não deve permanecer em juízo porque o tribunal tem de julgar a sua tese…”.

Em conclusão, consoante, ainda, o voto do ministro João Otávio de Noronha, sobrevindo pedido de desistência do recurso: “Não há mais conflito de interesse qualificado por uma pretensão resistida. Consequentemente, não há interesse jurídico no prosseguimento da atuação da jurisdição. É lógico. Não há desrespeito a esta corte. As partes litigam e, depois, tentam negociar. Às vezes, passam-se meses, anos, tentando negociar, mas só na véspera do julgamento, não querendo correr risco, a parte cede ao acordo. É direito que lhe cabe… A jurisdição só se justifica como instrumento da justiça para solucionar conflito. A partir do momento em que se retirou das partes o poder de fazer justiça com as próprias mãos, o Estado passou a ter o dever de solucionar as causas que lhe são submetidas. Contudo, o poder funciona apenas como algo auxiliar, instrumental, ancilar… Acredito ser direito da parte não querer submeter-se ao Judiciário por não querer que se firme tese contrária aos seus interesses ou à sua imagem…”.

Assim, diante desta irrepreensível argumentação, embasada pelos vetores que emergem da ciência processual moderna, reafirmou-se o princípio de que a desistência do recurso é prerrogativa do recorrente e jamais se subordina ao crivo do tribunal!

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