Justiça Tributária

Reflexões de Natal sobre nosso sistema "dooh nibor"

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

23 de dezembro de 2013, 10h26

Spacca
Nesta época do ano os cristãos fazem suas festas e os que não são podem dedicar-se aos inevitáveis balanços de fim de ano. De repente muitos ficam bonzinhos, dedicando-se a atos de caridade. O comércio promove seus eventos e alguns até ainda imaginam que as crianças acreditam nessa figura estranha, o Papai Noel, no qual quase tudo é falso, desde as barbas até o sorriso. Respeitando-se as crenças ou mesmo a ignorância de cada um, permitimo-nos fazer algumas reflexões sobre o que se poderia desejar em matéria de tributação.

Neste país onde já se apresentou ao legislativo proposta para incluir nos direitos constitucionais o direito à felicidade, talvez não seja muito insistir na necessidade de continuarmos lutando nesta trincheira. Afinal, numa daquelas passeatas de meses atrás registramos uma pessoa — pelo menos uma! — portando uma placa muito bem feita, a refletir nosso desejo: Justiça Tributária!

A Proposta de Emenda à Constituição 19/10, de autoria do Senador Cristovam Buarque (PDT-DF) propõe que se altere o artigo 6º da Constituição Federal para que os direitos sociais sejam considerados essenciais à busca da felicidade. É a chamada PEC da Felicidade.

Em toda a história da humanidade são inúmeros os registros de revoluções, guerras e movimentos separatistas decorrentes de cobrança excessiva de tributos. No Brasil o exemplo mais emblemático foi a Inconfidência Mineira, quando se questionou um imposto de 20%, o quinto. Nossa carga de tributos hoje é praticamente o dobro, mas naquela passeata de milhares de manifestantes, só vi uma pessoa explicitando nossa necessidade de pagar menos impostos.

Definidos no CTN, os impostos incidem sobre três fenômenos econômicos e humanos: consumo, renda e patrimônio. Mas, no Brasil, não há qualquer respeito aos princípios constitucionais que regulam a matéria: capacidade contributiva, não confisco, legalidade, moralidade, eficiência etc.

Estamos todos muito otimistas quanto as nossas possibilidades de progresso. Afinal, há quase tudo por fazer, desde usinas de energia, ferrovias, estradas, aeroportos, escolas, hospitais, enfim, não nos faltam instrumentos de desenvolvimento.

Os investimentos podem vir de qualquer lugar, pois não existe mais a fantasia caudilhesca de que isso ou aquilo seja nosso, principalmente quando pouco ou nada temos. Não existem mais fronteiras ideológicas a preservar, pela simples razão de que a ideologia hoje é apenas uma: a felicidade do povo. O resto não importa.

Depois de mais de cinco séculos de pilhagem colonial, parece que estamos esgotando as possibilidades de saques dos piratas contemporâneos, sejam eles os enormes grupos econômicos cartelizados, os bancos que cobram os maiores juros do planeta ou mesmo os meliantes que eventualmente ocupam cargos na nossa estrutura do poder, tristemente eleitos por nós mesmos.

A liberdade, em todas as suas formas, já abriu as asas sobre nós. A igualdade já se impõe pela lei ou pela força e aos poucos caminhamos para a fraternidade, como única possibilidade de vivermos em paz neste século e daqui para a frente.

Quanto ao que ainda chamamos de sistema tributário, já não temos mais. Não vivemos sob um sistema de tributação, mas sob ondas infindáveis de pesadelos arrecadatórios, criados por tecnocratas que se comportam como alienígenas, aqui trazidos por algum óvni que pousou no planalto central, aliás região conhecida por fenômenos inexplicáveis, inclusive visões estranhas e visionários mais estranhos ainda.

Diante disso, é indispensável que, além daquela singela placa na passeata, a sociedade brasileira exerça pressão onde for possível, mas de forma objetiva e racional (não vale queimar ônibus) para que se convoque uma nova Constituinte, pois a de 1988 já uma velha com 25 anos de idade.

Nossa CF não ficou velha pelo tempo, mas pelos maltratos que vem sofrendo desde que surgiu erguida no Congresso, pelas mãos de Ulisses Guimarães.

Com quase 80 emendas, tornou-se um documento que já não se respeita muito. Parece-se uma jovem senhora de 25 anos que, depois de se vestir de forma elegante, vai vendo seu traje rasgar-se pelo mau uso e nele serem colocados novos pedaços de pano, transformando-se o que foi bela vestimenta num horroroso andrajo.

Todo o capítulo e todas as normas de natureza tributária estão superadas pelo tempo. Neste quarto de século houve uma mudança extraordinária na economia mundial e ao que parece os nossos tecnocratas e legisladores ainda vivem no século 19, pois imaginam um país dividido entre castas, senhores e vassalos, nobres e plebeus.

Imposto sobre consumo
Em nossos impostos há aberrações absurdas. Uma das mais evidentes é a cobrança simultânea de 2 impostos indiretos sobre o consumo de produtos industrializados. Cobra-se IPI e ICMS, permitindo-se, ainda, que o primeiro incida sobre o segundo, embutido no preço!

A reforma de 67 (EC 18/65) anunciou a cobrança desses impostos de forma não cumulativa, incidindo apenas sobre o valor agregado, baseando-se nos princípios do IVA, adotados pelos países europeus. Mas os nossos legisladores, aceitando sem discutir — por ignorância, cumplicidade ou comodismo — permitiram uma distorção total do princípio, admitindo que créditos fossem vedados, criando-se uma fantasia vampiresca denominada diferimento, com o que se viabiliza cobrança de imposto de quem não promoveu o fato gerador ou não agregou qualquer valor.

O mais grave nisso é que os impostos sobre consumo oneram de forma mais pesada o que menos possui, pois este normalmente consome tudo o que ganha na luta pela sobrevivência.

Quando são criados mecanismos para amenizar esse inferno, ora com o título de incentivos, ora como desonerações, normalmente os beneficiários nem sempre são os mais necessitados. É, sem dúvida, um sistema “dooh nibor”, ou seja, Robbin Hood às avessas.

Imposto sobre renda
Qualquer cidadão, por minimamente informado que seja, sabe-se vítima de injustiça nesse tributo. O assalariado, que é a grande massa de contribuintes, sofre a mais confiscatória e criminosa forma de tributo, que é a retenção na fonte mediante a utilização de uma tabela que lhe retira não o que resta após o atendimento de suas necessidades, mas o que lhe falta na mesa, na roupa, no estudo, na saúde, no lazer, enfim, naqueles componentes que completam o conceito de direitos sociais, necessários à felicidade.

Não há absolutamente qualquer razão para que se mantenha desatualizada essa tabela. É injusto, criminoso mesmo, que um cidadão com salário inferior a pelo menos R$ 5 mil tenha que entregar parte de seu rendimento ao governo.

A CF, no artigo 6º ,inciso IV, ordena que o salário mínimo deve garantir moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social.

Não são necessários cálculos complexos para se perceber que tais itens não são cobertos pelo valor atual do mínimo. E também não se pode permitir que, através do imposto confiscado do trabalhador, o governo fique na condição de nosso “grande provedor”, colocando-nos todos como seus dependentes.

O mecanismo legal que cria dependentes do governo viola o princípio da liberdade, permitindo que a grotesca política de protecionismo estatal possa comprar votos em troca de direitos que foram roubados do povo pela tributação injusta.

Imposto sobre patrimônio
Talvez seja esse o menos injusto, certamente pela insignificância do patrimônio individual num país como o nosso. Mas pelo menos um desses impostos “sobre a propriedade” é resultado de uma interpretação estúpida de tecnocratas despreparados, sancionada pelo executivo, depois da aprovação do grande curral em que se transformaram as nossas casas legislativas, onde boa parte de seus integrantes lembram o comportamento das vaquinhas de presépio, cujas cabeças fazem apenas movimento de cima para baixo, significando o “sim” a qualquer coisa apresentada.

Referimo-nos ao Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (IPVA). Trata-se de imposto sobre consumo de bem durável, incidindo sobre bem que já sofreu dois impostos sobre consumo: IPI e ICMS. A cobrança desse imposto anualmente não se justifica, pois o seu uso já implica em diversos outros tributos, incidentes sobre os combustíveis, peças, acessórios, serviços de manutenção etc.

Já o IPTU pode ser justo, se cobrado sobre o valor venal, desde que a alíquota que não implique em confisco. Os estudiosos registram que a alíquota máxima pode atingir 2%, caso o valor venal não esteja inflado.

A discussão que hoje se faz sobre isso, especialmente em São Paulo, deve levar em conta tais limites e adotar a progressividade nos casos em que a lei permite, principalmente para desestimular a especulação.

Aliás, não faz sentido imaginar que a onda especulativa dos últimos dois ou três anos possa autorizar uma homologação de valores irreais, pois especulação não costuma ser permanente ou irreversível.

Por outro lado, é justo que se criem reduções ou mesmo isenção para imóveis de baixo valor, usados por seus proprietários, desde que só tenham um único imóvel.

Grandes fortunas
Estamos ainda perplexos com a não regulamentação até hoje do artigo 153, inciso VII, que depende de simples lei complementar. Não há qualquer razão para seu adiamento.

Até 2007 , mais ou menos, sustentava-se que a regulamentação causaria grande fuga de capitais para outros países, prejudicando nossa economia. Tal possibilidade não existe mais ou é muito pequena, pois a economia está totalmente globalizada. Praticamente não existe mais sigilo bancário e a troca de informações de natureza fiscal entre os países é uma realidade.

Administração tributária
Ainda que se chegue a um sistema merecedor desse nome, justo e equilibrado, isso não é suficiente. Será preciso que a forma de administrar os recursos seja revista.

Por exemplo: a Previdência do serviço público não pode continuar mantendo a aposentadoria por tempo de serviço, profundamente injusta sob o ponto de vista social e econômico. Pessoas com menos de 50 anos, físicamente aptas ao trabalho, afastam-se muitas vezes com proventos elevados e passam a concorrer no mercado de trabalho com outros profissionais.

Com o aumento da nossa expectativa de vida, criam-se enormes grupos de aposentados que, não recolhidos aos seus aposentos, disputam o mercado de trabalho e, em muitos casos, em situação privilegiada até mesmo face aos contatos obtidos quando na ativa.

Outrossim, o produto do imposto não pode ser aplicado em nada que não seja o interesse público. Este há de ser definido pelo Congresso, na análise das propostas orçamentárias, impedindo-se emendas que se desviem das normas constitucionais, especialmente as do artigo 37.

Conclusão
Peço desculpas aos leitores por lhes trazer em época festiva assunto que talvez atrapalhe o gosto do peru ou o sabor da champanhe. Mas também peço que os crentes que incluam essas idéias – se as aprovarem – em suas preces. Boas Festas!

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    é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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