Leis defeituosas

PEC dos Recursos nada inova e pode até piorar sistema

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20 de dezembro de 2013, 9h25

Objetiva-se com a Proposta de Emenda à Constituição 15/2011 (ora denominada PEC do Peluso, ora PEC dos Recursos) acrescentar o parágrafo único ao art. 96 da Constituição Federal com a seguinte redação: “Art.96 – (…) Parágrafo único. Os órgãos colegiados e tribunais do júri poderão, ao proferirem decisão penal condenatória, expedir o correspondente mandado de prisão, independentemente do cabimento de eventuais recursos”.

A proposta de emenda, vale dizer, em nada inova, uma vez que os “órgãos colegiados e tribunais do júri” não estão manietados, frente aos textos constitucional e infraconstitucionais vigentes, de expedir mandados de prisão, “ao proferirem decisão penal condenatória”.

A faculdade revelada pelo núcleo “poderão”, versando prisão cautelar, já está prevista na conjuminância do art. 5º, incisos LIV[1] e LXI[2], e art. 93, inciso IX[3], ambos da Constituição Federal com o art. 312 do Código de Processo Penal, de acordo com o qual "a prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria” (redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011, grifou-se).

Isto é: presente um dos requisitos legais (“garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal”), “independentemente do cabimento de eventuais recursos” (quais sejam: a interposição de recursos especial e extraordinário), “poderão (…) órgãos colegiados e tribunais do júri” expedir mandados de prisão preventiva, antes do trânsito em julgado da lide penal, assim como os juízes de primeiro grau podem decretá-la, antes mesmo da deflagração do processo-crime.

Desde que fundamentada a decisão, a prisão provisória não ofende, conforme pacífico entendimento jurisprudencial e doutrinário, o princípio da presunção de inocência[4]. Daí porque reputo, de um lado, ser inócua a aprovação da emenda, visto o aparelho normativo já dispor sobre a matéria.

Doutro lado, inadmissível a ideia primitiva, que deve ser enterrada de vez, embora ainda contida no relatório da proposta, de tornar obrigatória a ordem de prisão pelos “órgãos colegiados e tribunais do júri”, “ao proferirem decisão penal condenatória (…), independentemente do cabimento de eventuais recursos”.

Trata-se, induvidosamente, de tentativa de afrontar o Legislativo o primado da dignidade da pessoa humana, da presunção de inocência e os precedentes do Supremo Tribunal Federal.

O cabeçalho do substitutivo da emenda (“Altera a Constituição Federal, para antecipar o momento do trânsito em julgado das decisões judiciais, nas hipóteses que especifica”) traz a ideia da execução antecipada da pena, não estampada, entretanto, no texto proposto do parágrafo único do art. 96, CF.

Convém recordar que, a teor do art. 637 do Código de Processo Penal e do verbete da Súmula 267 do Superior Tribunal de Justiça, até a intervenção definitiva do Supremo Tribunal Federal, a imposição da custódia cautelar, por carecer de efeito suspensivo a interposição dos recursos especial e extraordinário, ao término do julgamento dos recursos de apelação, era a regra:

Art. 637, CPP: “O recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância, para a execução da sentença”;

Súmula 267, STJ: “A interposição de recurso, sem efeito suspensivo, contra decisão condenatória não obsta a expedição de mandado de prisão”.

O guarda maior da Constituição Federal, ao julgar o Habeas Corpus nº 84.078/MG, relatado pelo ministro Eros Grau, produziu leitura consoante a Carta de 1988 do pilar da dignidade da pessoa humana e do princípio da presunção de inocência, considerando inconstitucional a “execução antecipada da pena” decorrente, tão só, do esgotamento das instâncias ordinárias. Eis passagem da longa ementa do julgado:

“HABEAS CORPUS. INCONSTITUCIONALIDADE DA CHAMADA "EXECUÇÃO ANTECIPADA DA PENA". ART. 5º, LVII, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. ART. 1º, III, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. (…) 8. Nas democracias mesmo os criminosos são sujeitos de direitos. Não perdem essa qualidade, para se transformarem em objetos processuais. São pessoas, inseridas entre aquelas beneficiadas pela afirmação constitucional da sua dignidade (art. 1º, III, da Constituição do Brasil). É inadmissível a sua exclusão social, sem que sejam consideradas, em quaisquer circunstâncias, as singularidades de cada infração penal, o que somente se pode apurar plenamente quando transitada em julgado a condenação de cada qual”.

O ministro Eros Grau, acompanhado da maioria de seus pares, lançou voto conclamando os seus pares a bem refletir, pois lhes “incumbe impedir, no exercício da prudência do direito, para que prevaleça contra qualquer outra, momentânea, incendiária, ocasional, a força normativa da Constituição. Sobretudo nos momentos de exaltação. Para isso fomos feitos, para tanto aqui estamos”, acrescendo, neste contexto, ao reafirmar, no voto, o repúdio ao corrente desapego à Lei maior, sempre movido por intoleráveis casuísmos, in verbis: “a prevalecerem razões contra o texto da Constituição melhor será abandonarmos o recinto e sairmos por aí, cada qual com o seu porrete, arrebentando a espinha e a cabeça de quem nos contrariar. Cada qual com o seu porrete!”[5].

A questão de gravidade singular que se desenvolve, no âmbito penal, se animada a tese da execução antecipada da pena, independente do trânsito em julgado, diz com indagação sempre presente nos votos do ministro Marco Aurélio Mello:

“A pergunta que sempre fica no ar é a seguinte: de que maneira então, presente o sistema processual como um grande todo, presente o princípio da não-culpabilidade, chegar-se a ato extremado como é o do cerceio da liberdade de ir e vir, enclausurando-se aquele que se mostra inconformado com a decisão condenatória, se, reformada esta, não há a possibilidade de se devolver a liberdade perdida?”[6].

Não há possibilidade de se devolver a liberdade perdida, ainda que, como exposto no relatório da proposta de emenda, “com respeito à área cível, o índice de provimento de recursos extraordinários no STF, de 2009 a 2011, é de aproximadamente 4%, enquanto que, em matéria criminal, o percentual gira em torno de 2,7 %” (grifou-se).

Se no bojo dos “2,7 %” dos recursos extraordinários providos pela Suprema Corte, em sede criminal, houver um só réu preso ilegalmente, cuja execução antecipada da pena derivou do acionamento do resultado da PEC nº 15/2011, jamais se poderá devolver a liberdade subtraída, de forma arbitrária, a esse cidadão, mormente, levando-se em conta as condições desumanas – no do sistema prisional brasileiro.

Insta citar que a proposta em votação, em sua análise, considerou, apenas, o índice de aproveitamento dos recursos extraordinários, reclamos de conhecimento limitadíssimo, sendo que, no Superior Tribunal de Justiça, relativamente aos recursos especiais, no campo criminal, onde violações a leis infraconstitucionais, não raro, são acolhidas, a cada sessão de julgamento, e cujo acolhimento pode implicar absolvição, redução da pena corporal com consequente mudança de regime prisional, declaração de extinção da punibilidade e de nulidades ex radice do processo etc., o tal “índice de aproveitamento” ultrapassa, em muito, o apresentado.

De resto, embora se reconheça, “a desdúvidas, que nossa proposta não é, nem jamais buscou ser, a panaceia de todos os males do sistema processual. Apenas buscamos trazer, ao texto constitucional, instrumento capaz de impedir outras distorções do sistema processual penal”, a inegável boa intenção nela contida não contribuirá para solucionar o denominado “colapso do sistema recursal brasileiro”.

A interposição de recursos extraordinário e especial, na seara penal, não abarrota as prateleiras, respectivamente, do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, inviabilizando a prestação jurisdicional célere assegurada na Carta de 1988.

A advocacia pública, esta sim, que de tudo recorre, por regramentos internos e imposições legais, como faz lembrar a professora de Direito Constitucional da UERJ Ana Paula Barcellos, é a maior clientela do STF e do STJ:

“Como se sabe, o maior cliente dos Tribunais Superiores é o Poder Público. Ocorre que o Poder Público, por outras razões que não seriam afetadas pela PEC, não sofrerá execução imediata da decisão. Ou seja: a providência será pouco útil para agilizar a fruição pelo vencedor nessas hipóteses”[7].

Colapso
A aprovação da proposta em votação resultará em efeito contrário ao pretendido, gerando colapso ainda maior no sistema recursal, porquanto o número de impetração de Habeas Corpus, que já é elevadíssimo, justificadamente, se multiplicará, na busca de se alcançar o restabelecimento da legalidade aviltado por decisão colegiada outrora passível de recurso dotado de efeito suspensivo.

Para finalizar, o Movimento de Defesa da Advocacia (MDA), em maio de 2011, em manifestação dirigida ao eminente senador relator, enquanto ainda tramitava a proposta de alteração dos arts. 102 e 105 da Constituição da República, externou pontos de preocupação com os quais comungo e os incorporo aqui, cabendo-se destacar, de pronto, como premissa, que, “em caso de crimes graves ou de réus de alta periculosidade, estando presentes os motivos autorizadores da prisão preventiva, nada impede (aliás, tudo recomenda) que o juiz ou mesmo o Tribunal decrete a prisão preventiva, ainda que pendente de julgamento eventual Recurso Especial ou Extraordinário”.

Não será com execução antecipada de penas, de modo obrigatório, sem a correspondente fundamentação constitucional exigida (art. 93, inc. IX), que o Poder Judiciário se tornará mais ágil e que o mal de impunidade deixará de grassar no consciente coletivo. Não está no Judiciário a principal causa de tais mazelas.

Como já teve oportunidade de declinar o senador Francisco Dornelles, a proliferação de leis defeituosas produzidas no âmbito legislativo e de medidas provisórias mal redigidas baixadas pelo Executivo, que culminam em ações e mais ações judiciais despejadas todo dia no Judiciário, questionando-as, afiguram-se males graves a desaguar no quadro de colapso recursal delineado.


[1] “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

[2] “Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”.

[3] “Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”.

[4] Art. 5º, inciso LVII: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

[5] STF, Pleno, DJe de 26/2/2010.

[6] STF, 1ª Tuma, HC nº 83.541/RJ, DJ de 1/10/2003, grifou-se.

[7] Em http://www.conjur.com.br/2011-mar-26/pec-recursos-acaba-direito-ampla-defesa-ives-gandra; acessado em 3/12/2013.

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