Ideias do Milênio

"Falta confiança na situação interna dos Estados Unidos"

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20 de dezembro de 2013, 7h00

Entrevista concedida pelo ex-presidente norte-americano Bill Clinton ao jornalista William Waack , para o programa Milênio, da Globo News. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30.

J. P. Engelbrecht
Aos 67 anos, Bill Clinton parece muito mais jovem do que a maioria dos homens da sua idade. Ele até parece ter se tornado mais jovem, desde que sofreu uma operação de coração aberto há dez anos com uma rara complicação nos pulmões depois da operação. Saiu da Casa Branca no começo de 2001, mas nunca deixou a política e não é só pelo fato da mulher dele, Hillary, ter sido senadora, secretária de Estado, pré-candidata a presidência e ao que se comenta de novo candidata à presidência. Clinton é uma personalidade política por seu próprio mérito, entre os quais está o de ter o seu nome ligado a um período de grande prosperidade e incontestável primazia dos Estados Unidos entre as potências. Amigo de todo mundo, sempre simpático e sorridente em público, ele reinventou-se como personalidade global através de uma iniciativa que pretende fomentar a cooperação entre governos, iniciativa privada e ONGs, é a Clinton Global Initiative, que se reuniu pela primeira vez na América Latina no Rio de Janeiro no dia 9 de dezembro. Permeia essa iniciativa uma espécie de otimismo, do qual o rosto de Clinton foi sempre uma reconhecida expressão. “É melhor colocar as pessoas para tratar de maneira prática de problemas do que deixá-las simplesmente discutindo tudo em uma mesa redonda e no dia seguinte já se esqueceram do que falaram”, costuma dizer Clinton. O ex-presidente americano nos recebeu no Copacabana Palace, palco do encontro da Global Initiative, durante sua décima primeira viagem ao Brasil, país no qual diz ele sempre encontrou ideias originais para resolver problemas.

William Waack — Eu soube que, na infância, o senhor se impressionava quando diziam que adultos só dormiam 5 horas por noite.
Bill Clinton — Mas eu cometi um erro. Há muitos indícios de que pessoas que dormem pouco vivem menos e que a mente é prejudicada por isso. E devo dizer que, quando deixei a presidência, pensando em retrospecto, percebi que, até aquele ponto, cometi a maioria dos meus grandes erros porque estava cansado demais.

William Waack — É mesmo?
Bill Clinton — Seu raciocínio fica prejudicado. Psicologicamente… Talvez seja um ato divino, mas se você está no meio de uma crise inevitável, na qual ninguém é capaz de dormir uma noite tranquila, você tende a ficar num nível mais alto de vigília, mas há inúmeros indícios de que a privação do sono debilita a saúde das pessoas e também reduz a produtividade de toda uma empresa, ou de outros empreendimentos.

William Waack — Leva a erros.
Bill Clinton — E nós deveríamos… Na virada do século. Isto é muito interessante. Na virada do século XIX para o século XX, o americano médio dormia cerca de 9 horas por noite. E, na virada do último século, a média caíra para 6,5 horas. Portanto, vale a pena pensar se deveríamos fazer mais. É um pouco tarde para mim. Mesmo se eu começasse a dormir 9 horas por noite, a minha média ainda seria baixa.

William Waack — Vamos ao nosso assunto, senhor presidente. O senhor está no Rio para o Clinton Global Initiative. Parece-me que a era de grandes ideias e grandes soluções chegou ao fim. Entendo que o senhor sugere que as pessoas se reúnam, se concentrem em medidas práticas e se comprometam. Isso significa que, na nossa época, não existem mais grandes sonhos?
Bill Clinton — Não, mas significa que, para se ter grandes sonhos, transformá-los em grandes projetos e conseguir um grande apoio para eles será cada vez mais necessário um nível de confiança e participação que envolva a sociedade civil, a iniciativa privada e o governo. E, cada vez mais, grandes projetos serão realizados através de redes.

William Waack — Contatos pessoais.
Bill Clinton — Sim, contatos pessoais, sejam ao vivo ou virtuais. Vou lhe dar um exemplo. Quando o tsunami atingiu o sul da Ásia, muitos americanos nem conheciam os pequenos países atingidos, mas doaram US$ 1 bilhão, além da ajuda do governo, aumentando o nosso impacto. A contribuição média foi de US$ 56, porque foi a primeira crise na qual houve uma arrecadação pela internet. Depois, quando o terremoto atingiu o Haiti, nosso vizinho, os americanos doaram US$ 1 bilhão, e a contribuição média caiu para US$ 26 e minha mulher teve participação nisso. O Departamento de Estado criou o projeto pioneiro de doações por mensagem de celular. E todo mundo doou. Você digitava certos números e enviava US$ 10 se fosse americano e US$ 5 se fosse canadense, e há muitos haitianos no Canadá também. Então, acho que ainda faremos coisas importantes, mas, cada vez mais, elas serão feitas através de redes de colaboração entre pessoas e países, envolvendo não só governos como também a sociedade civil e o setor privado.

William Waack — Fiz essa pergunta porque houve uma época em que o senhor, Fernando Henrique Cardoso e Tony Blair estavam envolvidos em abordagens mais teóricas para problemas do dia a dia, a chamada Terceira Via. Ela acabou?
Bill Clinton — Não. Quando eu trabalhei com o presidente Cardoso, fizemos mais que coisas teóricas. Os EUA apoiaram o Brasil quando o país teve problemas na crise financeira de 1998, apoiamos o México, que estava em apuros em 1995, e tentamos estabelecer não só uma área de livre comércio, mas uma área de cooperação genuína em assuntos econômicos, sociais e de segurança nas Américas. E acho que é importante que os governos continuem fazendo isso. Quando eu era presidente, criamos a Cúpula das Américas. Coloquei os países latino-americanos — ou pelo menos defendi isso — na rede de líderes da Ásia e do Pacífico, porque acho que essas redes de cooperação serão vitais no século 21. Realizaremos grandes feitos, mas a vantagem do que nós fazemos na Global Initiative, neste encontro na América Latina, é possibilitar que algo que começa pequeno se torne astronômico quando provamos que funciona. Digo que na minha fundação tentamos agir mais rápido, mais barato e melhor. Se funcionar, será adotado. Um exemplo é a luta mundial contra a Aids, algo em que tenho pensado muito após a morte do meu amigo Mandela. Deixei a Casa Branca um ano depois de ele terminar seu mandato. Nós rodávamos o mundo implorando dinheiro, porque não existia o fundo contra Aids, tuberculose e malária, nem o fundo que o presidente Bush criou. Então, por necessidade, a minha fundação bolou uma forma de cortar drasticamente os preços dos remédios, negociando grandes volumes. Eis o que aconteceu.

William Waack — O senhor ganhou um prêmio por isso.
Bill Clinton — Mas a melhor forma de descrever isso é que hoje há 10 milhões de pessoas sendo tratadas. Mais da metade delas graças a essa negociação — 75% das crianças. Um corte drástico nos preços. O governo do presidente Obama triplicou o número de pessoas recebendo tratamento para Aids desde que assumiu, gastando menos dinheiro. Porque continuamos fazendo os preços caírem. Isso é um feito importantíssimo, mas começou com passos pequenos, envolvendo o governo, o setor privado, instituições internacionais, como o Fundo Global, a Fundação Gates e outros grupos da sociedade civil. Acho que coisas importantes acontecerão, mas de uma forma diferente.

William Waack — Deixe-me voltar a um ponto no qual o senhor tocou em sua resposta, relacionado a contatos pessoais e nos governos e ao seu papel pessoal na América Latina. Estamos numa época em que a confiança pessoal precisa ser reconstruída, independentemente da posição ideológica deste ou daquele país. Todos estão irritados com a espionagem da NSA. Então vivemos uma época em que provavelmente as relações pessoais ajudarão. Ou não há mais salvação?
Bill Clinton — Concordo com você. O grande sociólogo americano Robert Putnam disse que o progresso no mundo moderno requer o que ele chama de capital social: redes (que tento construir), regras e confiança. Mas, sem confiança, é difícil criarmos regras, porque ninguém vai segui-las. E é difícil envolver as pessoas em redes com aqueles que têm conhecimentos e perspectivas diferentes. A perda da confiança pessoal é um problema grave e temos que recuperá-la. O maior legado de Mandela não foi só convidar seus carcereiros para sua posse, o que foi importante, pois mandou um recado para seus partidários, mas foi colocar os líderes dos partidos políticos que o tinham prendido em seu gabinete. Mandela teve 62% dos votos. Ele podia ter montado seu gabinete só com políticos de seu partido. Não precisava ter feito isso, mas ele sabia que o país precisava e disse: “Somos novos nisso. Vocês têm experiência. Precisamos trabalhar juntos e eu confio na responsabilidade de vocês. Confio que não usarão sua posição para minar o movimento pela igualdade.”

William Waack — Como recuperar a confiança depois do que aconteceu? As pessoas estão irritadas. Não só no Brasil. Alguns aliados antigos seus, como os alemães, estão reclamando muito.
Bill Clinton — Sim, mas acho que a resposta para a recuperação da confiança aqui é esclarecer qual é a política e chegar a algum tipo de acordo. Por exemplo, foi divulgado que parte da coleta de dados na Alemanha foi apoiada pelo governo alemão.

William Waack — Como aconteceu na Espanha, na Inglaterra e na França.
Bill Clinton — Exato. E há um motivo para isso. Se for cumprido o que nossa política de segurança determina — e ela determina que não se invada o conteúdo de uma conversa telefônica pelo celular ou o conteúdo de um e-mail a menos que haja indícios de que a comunicação foi para um grupo envolvido com terrorismo ou crime organizado. Então, por exemplo, se há milhões de registros de celulares e e-mails e 10 organizações terroristas que planejam operações na América Latina, na Europa ou nos EUA e você rastreia telefonemas ou e-mails para essas organizações, a forma como o sistema deveria funcionar nos EUA é a seguinte: nosso governo tem que apresentar no tribunal indícios disso antes de poder ouvir o conteúdo do telefonema ou ler o e-mail. E deve ser um sistema protegido contra violação. Alguns países europeus têm uma proteção melhor contra violação e um alerta mais eficiente quando ocorre a violação, porque investem mais nisso. Temos que fazer o mesmo. Mas estou dizendo tudo isso porque o que faz com que as pessoas percam a confiança é não saber o que está havendo. Então acho muito importante dizermos ao Brasil e à América Latina: “Vocês são o nosso futuro”. Eu fiz todo o possível para construir redes de cooperação com a América Latina. A minha teoria é que estamos caminhando para um mundo de muitas incertezas. Devemos tentar trabalhar para o melhor, que é um mundo unido, mas devemos estar preparados para o pior. Se tudo der errado nas outras partes do mundo e se os EUA, a América Central, o Caribe, a América do Sul, o México e o Canadá estivermos unidos, ficaremos bem. E nossa confiança um no outro não pode ser destruída. A forma de recuperar a confiança é ser transparente.

William Waack — Quero retomar o que disse sobre estarmos caminhando para um mundo de incertezas. O senhor foi o 42º presidente americano numa época em que os EUA eram o primeiro entre iguais graças aos dividendos da paz após a Guerra Fria. Não quero que comente sobre as políticas do presidente atual, não quero colocá-lo nessa posição, mas gostaria que falasse sobre o papel do seu país hoje. Muitos analistas dizem que os EUA não são mais tão poderosos, que não podem mais impor, forçar nem participar de acordos em lugar algum sem a colaboração de outros, possivelmente até de antigos rivais. É assim que vê o papel dos EUA hoje?
Bill Clinton — Acho que, relativamente falando, essa visão está correta. Ou seja, se no mundo atual as oportunidades estão democratizadas, mesmo que ainda sejam desiguais, ou seja, se todo mundo tem acesso à tecnologia e é capaz de gerar riqueza, eles têm de se esforçar, não você, que é a única superpotência militar, por exemplo. Depende deles, não de você, que tem a melhor tecnologia da informação. A Coreia do Sul tem uma velocidade de download muito maior do que a média americana. Só como exemplo. Quando eu era presidente, sabia que isso ia acontecer. Falei ao povo americano que ia acontecer: “Precisamos construir o mundo no qual gostaríamos de viver, um mundo no qual não seremos a única superpotência econômica, a única superpotência política e militar. Um mundo com oportunidades e responsabilidades divididas.” E ainda acho isso. Acho que os EUA são muito importantes. Ainda há muitas coisas que não podem acontecer sem a gente, mas isso é diferente de impor nossa vontade. Também acredito que às vezes simplificamos nossa história. Não conseguimos impor nossa vontade no Vietnã. E não impusemos nossa vontade em vários outros lugares. É preciso compartilhar o futuro, e nós vamos compartilhá-lo. A questão é: vamos compartilhar mais coisas negativas ou positivas? Essa é a questão em aberto. Há forças negativas e positivas nessa interdependência. A tarefa de todo líder e de todo cidadão, todo empresário, todo líder da sociedade civil, é aumentar as forças positivas e reduzir as negativas. Só é possível fazer isso por meio das redes, e não há como manter redes sem confiança. É por isso que devemos encarar este momento como uma oportunidade. Ninguém estava mal intencionado, pelo que sei, em qualquer governo, para fazer o que foi feito, mas temos que recuperar a confiança e, para isso, temos que confiar. Foi isso que Mandela mostrou. Aquelas pessoas seriam loucas de não confiar em Mandela, afinal ele confiou nelas, que o mantiveram preso por 27 anos.

William Waack — Acha que existe confiança suficiente na situação interna dos Estados Unidos hoje? Durante a sua presidência houve uma paralisação do governo e enfrentou muitos problemas para costurar apoios bipartidários. Hoje nós acompanhamos incrédulos os EUA se aproximando do abismo e pensamos: “Não é possível. Os americanos não vão saltar no abismo”. Mas ficamos com a impressão de que a famosa capacidade de construção de consenso está em falta agora. Ou só estamos pensando no presente e esquecendo os problemas de 20 anos atrás?
Bill Clinton — Não. Estamos em vias de, espero, recuperar essa confiança. Conseguimos recuperá-la parcialmente porque eu provei que, revertendo a política econômica dos últimos 12 anos anteriores à minha posse, teríamos mais crescimento, mais empregos e mais igualdade. Foi a primeira vez desde os anos 70 que todos os segmentos da economia americana estavam indo bem. E hoje ainda estamos vivendo o período da ressaca dessa crise financeira. De forma que a renda média das famílias americanas ainda está mais baixa do que era quando deixei o governo. Mas tivemos um ótimo mês de novembro e acho que vamos reverter isso. Essa perda de confiança começou por volta no final dos anos 70. Tivemos todos os conflitos dos anos 60, principalmente por direitos civis e contra a guerra do Vietnã e, no início dos anos 70, sobre o papel da mulher e todas as questões que outros países enfrentam hoje. Mas o que acho que mais nos afastou foi a ascensão desse movimento militante antigoverno que controlou por tempo demais o Partido Republicano, para quem o governo é um mau administrador, ou é inerentemente ruim. Pagar impostos é equivalente a alguém assaltar você. E não há nenhum país de sucesso que não tenha um bom governo e um bom setor privado trabalhando juntos. A outra coisa foi uma grande mudança no setor privado relacionada às corporações, que começou nos anos 70. Quando nós dois éramos jovens e eu estava na faculdade, todo estudante de Direito aprendia que uma corporação é uma estrutura artificial, uma criatura do governo. O governo permite sua criação para obter certas vantagens, como cobrar impostos e tudo mais. Agora, a Suprema Corte diz que uma corporação é como uma pessoa e tem direitos individuais e, ao mesmo tempo, eu aprendi que uma corporação tem obrigações mais ou menos iguais perante seus acionistas, seus funcionários, seus clientes e a comunidade da qual faz parte. Hoje aprendemos que os acionistas estão aqui e os funcionários, clientes e a comunidade estão aqui. Essas duas coisas serviram para, juntamente com a competição da globalização, romper os antigos vínculos, e nós estamos, no mundo todo, tentando criar novos vínculos. Não dá para ir muito longe dizendo: “Eu devo vencer e você deve perder.” Temos que procurar soluções boas para todos. E estamos tendo dificuldade com isso há algum tempo. Eu acredito que melhoraremos interna e externamente nos próximos quatro ou cinco anos. Tivemos problemas terríveis nos anos 90 e depois o povo americano ficou do meu lado e tivemos cinco anos bons, mas isso não impediu os conflitos políticos. Acho que estamos tentando construir um novo mundo depois do fim da Guerra Fria.

William Waack — Tenho tempo para uma última pergunta. A família Clinton terá mais um representante na presidência?
Bill Clinton — Eu não sei. Não sei. Espero que os americanos se preocupem mais… O povo se preocupa. Espero que a imprensa americana se preocupe mais, por pelo menos mais um ano, com formas de crescermos economicamente e reduzirmos a desigualdade. Acho que nos preocupamos demais com a política. Agradeço a sua pergunta, mas sei que Hillary concorda comigo. Se ela concorrer, vou apoiá-la, e acho que ela seria uma ótima presidente, mas não sei se vai concorrer. Você pode não acreditar, mas é verdade. Eu não sei.

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