Entrevista concedida pelo ex-presidente norte-americano Bill Clinton ao jornalista William Waack , para o programa Milênio, da Globo News. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30.
William Waack — Eu soube que, na infância, o senhor se impressionava quando diziam que adultos só dormiam 5 horas por noite.
Bill Clinton — Mas eu cometi um erro. Há muitos indícios de que pessoas que dormem pouco vivem menos e que a mente é prejudicada por isso. E devo dizer que, quando deixei a presidência, pensando em retrospecto, percebi que, até aquele ponto, cometi a maioria dos meus grandes erros porque estava cansado demais.
William Waack — É mesmo?
Bill Clinton — Seu raciocínio fica prejudicado. Psicologicamente… Talvez seja um ato divino, mas se você está no meio de uma crise inevitável, na qual ninguém é capaz de dormir uma noite tranquila, você tende a ficar num nível mais alto de vigília, mas há inúmeros indícios de que a privação do sono debilita a saúde das pessoas e também reduz a produtividade de toda uma empresa, ou de outros empreendimentos.
William Waack — Leva a erros.
Bill Clinton — E nós deveríamos… Na virada do século. Isto é muito interessante. Na virada do século XIX para o século XX, o americano médio dormia cerca de 9 horas por noite. E, na virada do último século, a média caíra para 6,5 horas. Portanto, vale a pena pensar se deveríamos fazer mais. É um pouco tarde para mim. Mesmo se eu começasse a dormir 9 horas por noite, a minha média ainda seria baixa.
William Waack — Vamos ao nosso assunto, senhor presidente. O senhor está no Rio para o Clinton Global Initiative. Parece-me que a era de grandes ideias e grandes soluções chegou ao fim. Entendo que o senhor sugere que as pessoas se reúnam, se concentrem em medidas práticas e se comprometam. Isso significa que, na nossa época, não existem mais grandes sonhos?
Bill Clinton — Não, mas significa que, para se ter grandes sonhos, transformá-los em grandes projetos e conseguir um grande apoio para eles será cada vez mais necessário um nível de confiança e participação que envolva a sociedade civil, a iniciativa privada e o governo. E, cada vez mais, grandes projetos serão realizados através de redes.
William Waack — Contatos pessoais.
Bill Clinton — Sim, contatos pessoais, sejam ao vivo ou virtuais. Vou lhe dar um exemplo. Quando o tsunami atingiu o sul da Ásia, muitos americanos nem conheciam os pequenos países atingidos, mas doaram US$ 1 bilhão, além da ajuda do governo, aumentando o nosso impacto. A contribuição média foi de US$ 56, porque foi a primeira crise na qual houve uma arrecadação pela internet. Depois, quando o terremoto atingiu o Haiti, nosso vizinho, os americanos doaram US$ 1 bilhão, e a contribuição média caiu para US$ 26 e minha mulher teve participação nisso. O Departamento de Estado criou o projeto pioneiro de doações por mensagem de celular. E todo mundo doou. Você digitava certos números e enviava US$ 10 se fosse americano e US$ 5 se fosse canadense, e há muitos haitianos no Canadá também. Então, acho que ainda faremos coisas importantes, mas, cada vez mais, elas serão feitas através de redes de colaboração entre pessoas e países, envolvendo não só governos como também a sociedade civil e o setor privado.
William Waack — Fiz essa pergunta porque houve uma época em que o senhor, Fernando Henrique Cardoso e Tony Blair estavam envolvidos em abordagens mais teóricas para problemas do dia a dia, a chamada Terceira Via. Ela acabou?
Bill Clinton — Não. Quando eu trabalhei com o presidente Cardoso, fizemos mais que coisas teóricas. Os EUA apoiaram o Brasil quando o país teve problemas na crise financeira de 1998, apoiamos o México, que estava em apuros em 1995, e tentamos estabelecer não só uma área de livre comércio, mas uma área de cooperação genuína em assuntos econômicos, sociais e de segurança nas Américas. E acho que é importante que os governos continuem fazendo isso. Quando eu era presidente, criamos a Cúpula das Américas. Coloquei os países latino-americanos — ou pelo menos defendi isso — na rede de líderes da Ásia e do Pacífico, porque acho que essas redes de cooperação serão vitais no século 21. Realizaremos grandes feitos, mas a vantagem do que nós fazemos na Global Initiative, neste encontro na América Latina, é possibilitar que algo que começa pequeno se torne astronômico quando provamos que funciona. Digo que na minha fundação tentamos agir mais rápido, mais barato e melhor. Se funcionar, será adotado. Um exemplo é a luta mundial contra a Aids, algo em que tenho pensado muito após a morte do meu amigo Mandela. Deixei a Casa Branca um ano depois de ele terminar seu mandato. Nós rodávamos o mundo implorando dinheiro, porque não existia o fundo contra Aids, tuberculose e malária, nem o fundo que o presidente Bush criou. Então, por necessidade, a minha fundação bolou uma forma de cortar drasticamente os preços dos remédios, negociando grandes volumes. Eis o que aconteceu.
William Waack — O senhor ganhou um prêmio por isso.
Bill Clinton — Mas a melhor forma de descrever isso é que hoje há 10 milhões de pessoas sendo tratadas. Mais da metade delas graças a essa negociação — 75% das crianças. Um corte drástico nos preços. O governo do presidente Obama triplicou o número de pessoas recebendo tratamento para Aids desde que assumiu, gastando menos dinheiro. Porque continuamos fazendo os preços caírem. Isso é um feito importantíssimo, mas começou com passos pequenos, envolvendo o governo, o setor privado, instituições internacionais, como o Fundo Global, a Fundação Gates e outros grupos da sociedade civil. Acho que coisas importantes acontecerão, mas de uma forma diferente.
William Waack — Deixe-me voltar a um ponto no qual o senhor tocou em sua resposta, relacionado a contatos pessoais e nos governos e ao seu papel pessoal na América Latina. Estamos numa época em que a confiança pessoal precisa ser reconstruída, independentemente da posição ideológica deste ou daquele país. Todos estão irritados com a espionagem da NSA. Então vivemos uma época em que provavelmente as relações pessoais ajudarão. Ou não há mais salvação?
Bill Clinton — Concordo com você. O grande sociólogo americano Robert Putnam disse que o progresso no mundo moderno requer o que ele chama de capital social: redes (que tento construir), regras e confiança. Mas, sem confiança, é difícil criarmos regras, porque ninguém vai segui-las. E é difícil envolver as pessoas em redes com aqueles que têm conhecimentos e perspectivas diferentes. A perda da confiança pessoal é um problema grave e temos que recuperá-la. O maior legado de Mandela não foi só convidar seus carcereiros para sua posse, o que foi importante, pois mandou um recado para seus partidários, mas foi colocar os líderes dos partidos políticos que o tinham prendido em seu gabinete. Mandela teve 62% dos votos. Ele podia ter montado seu gabinete só com políticos de seu partido. Não precisava ter feito isso, mas ele sabia que o país precisava e disse: “Somos novos nisso. Vocês têm experiência. Precisamos trabalhar juntos e eu confio na responsabilidade de vocês. Confio que não usarão sua posição para minar o movimento pela igualdade.”
William Waack — Como recuperar a confiança depois do que aconteceu? As pessoas estão irritadas. Não só no Brasil. Alguns aliados antigos seus, como os alemães, estão reclamando muito.
Bill Clinton — Sim, mas acho que a resposta para a recuperação da confiança aqui é esclarecer qual é a política e chegar a algum tipo de acordo. Por exemplo, foi divulgado que parte da coleta de dados na Alemanha foi apoiada pelo governo alemão.
William Waack — Como aconteceu na Espanha, na Inglaterra e na França.
Bill Clinton — Exato. E há um motivo para isso. Se for cumprido o que nossa política de segurança determina — e ela determina que não se invada o conteúdo de uma conversa telefônica pelo celular ou o conteúdo de um e-mail a menos que haja indícios de que a comunicação foi para um grupo envolvido com terrorismo ou crime organizado. Então, por exemplo, se há milhões de registros de celulares e e-mails e 10 organizações terroristas que planejam operações na América Latina, na Europa ou nos EUA e você rastreia telefonemas ou e-mails para essas organizações, a forma como o sistema deveria funcionar nos EUA é a seguinte: nosso governo tem que apresentar no tribunal indícios disso antes de poder ouvir o conteúdo do telefonema ou ler o e-mail. E deve ser um sistema protegido contra violação. Alguns países europeus têm uma proteção melhor contra violação e um alerta mais eficiente quando ocorre a violação, porque investem mais nisso. Temos que fazer o mesmo. Mas estou dizendo tudo isso porque o que faz com que as pessoas percam a confiança é não saber o que está havendo. Então acho muito importante dizermos ao Brasil e à América Latina: “Vocês são o nosso futuro”. Eu fiz todo o possível para construir redes de cooperação com a América Latina. A minha teoria é que estamos caminhando para um mundo de muitas incertezas. Devemos tentar trabalhar para o melhor, que é um mundo unido, mas devemos estar preparados para o pior. Se tudo der errado nas outras partes do mundo e se os EUA, a América Central, o Caribe, a América do Sul, o México e o Canadá estivermos unidos, ficaremos bem. E nossa confiança um no outro não pode ser destruída. A forma de recuperar a confiança é ser transparente.
William Waack — Quero retomar o que disse sobre estarmos caminhando para um mundo de incertezas. O senhor foi o 42º presidente americano numa época em que os EUA eram o primeiro entre iguais graças aos dividendos da paz após a Guerra Fria. Não quero que comente sobre as políticas do presidente atual, não quero colocá-lo nessa posição, mas gostaria que falasse sobre o papel do seu país hoje. Muitos analistas dizem que os EUA não são mais tão poderosos, que não podem mais impor, forçar nem participar de acordos em lugar algum sem a colaboração de outros, possivelmente até de antigos rivais. É assim que vê o papel dos EUA hoje?
Bill Clinton — Acho que, relativamente falando, essa visão está correta. Ou seja, se no mundo atual as oportunidades estão democratizadas, mesmo que ainda sejam desiguais, ou seja, se todo mundo tem acesso à tecnologia e é capaz de gerar riqueza, eles têm de se esforçar, não você, que é a única superpotência militar, por exemplo. Depende deles, não de você, que tem a melhor tecnologia da informação. A Coreia do Sul tem uma velocidade de download muito maior do que a média americana. Só como exemplo. Quando eu era presidente, sabia que isso ia acontecer. Falei ao povo americano que ia acontecer: “Precisamos construir o mundo no qual gostaríamos de viver, um mundo no qual não seremos a única superpotência econômica, a única superpotência política e militar. Um mundo com oportunidades e responsabilidades divididas.” E ainda acho isso. Acho que os EUA são muito importantes. Ainda há muitas coisas que não podem acontecer sem a gente, mas isso é diferente de impor nossa vontade. Também acredito que às vezes simplificamos nossa história. Não conseguimos impor nossa vontade no Vietnã. E não impusemos nossa vontade em vários outros lugares. É preciso compartilhar o futuro, e nós vamos compartilhá-lo. A questão é: vamos compartilhar mais coisas negativas ou positivas? Essa é a questão em aberto. Há forças negativas e positivas nessa interdependência. A tarefa de todo líder e de todo cidadão, todo empresário, todo líder da sociedade civil, é aumentar as forças positivas e reduzir as negativas. Só é possível fazer isso por meio das redes, e não há como manter redes sem confiança. É por isso que devemos encarar este momento como uma oportunidade. Ninguém estava mal intencionado, pelo que sei, em qualquer governo, para fazer o que foi feito, mas temos que recuperar a confiança e, para isso, temos que confiar. Foi isso que Mandela mostrou. Aquelas pessoas seriam loucas de não confiar em Mandela, afinal ele confiou nelas, que o mantiveram preso por 27 anos.
William Waack — Acha que existe confiança suficiente na situação interna dos Estados Unidos hoje? Durante a sua presidência houve uma paralisação do governo e enfrentou muitos problemas para costurar apoios bipartidários. Hoje nós acompanhamos incrédulos os EUA se aproximando do abismo e pensamos: “Não é possível. Os americanos não vão saltar no abismo”. Mas ficamos com a impressão de que a famosa capacidade de construção de consenso está em falta agora. Ou só estamos pensando no presente e esquecendo os problemas de 20 anos atrás?
Bill Clinton — Não. Estamos em vias de, espero, recuperar essa confiança. Conseguimos recuperá-la parcialmente porque eu provei que, revertendo a política econômica dos últimos 12 anos anteriores à minha posse, teríamos mais crescimento, mais empregos e mais igualdade. Foi a primeira vez desde os anos 70 que todos os segmentos da economia americana estavam indo bem. E hoje ainda estamos vivendo o período da ressaca dessa crise financeira. De forma que a renda média das famílias americanas ainda está mais baixa do que era quando deixei o governo. Mas tivemos um ótimo mês de novembro e acho que vamos reverter isso. Essa perda de confiança começou por volta no final dos anos 70. Tivemos todos os conflitos dos anos 60, principalmente por direitos civis e contra a guerra do Vietnã e, no início dos anos 70, sobre o papel da mulher e todas as questões que outros países enfrentam hoje. Mas o que acho que mais nos afastou foi a ascensão desse movimento militante antigoverno que controlou por tempo demais o Partido Republicano, para quem o governo é um mau administrador, ou é inerentemente ruim. Pagar impostos é equivalente a alguém assaltar você. E não há nenhum país de sucesso que não tenha um bom governo e um bom setor privado trabalhando juntos. A outra coisa foi uma grande mudança no setor privado relacionada às corporações, que começou nos anos 70. Quando nós dois éramos jovens e eu estava na faculdade, todo estudante de Direito aprendia que uma corporação é uma estrutura artificial, uma criatura do governo. O governo permite sua criação para obter certas vantagens, como cobrar impostos e tudo mais. Agora, a Suprema Corte diz que uma corporação é como uma pessoa e tem direitos individuais e, ao mesmo tempo, eu aprendi que uma corporação tem obrigações mais ou menos iguais perante seus acionistas, seus funcionários, seus clientes e a comunidade da qual faz parte. Hoje aprendemos que os acionistas estão aqui e os funcionários, clientes e a comunidade estão aqui. Essas duas coisas serviram para, juntamente com a competição da globalização, romper os antigos vínculos, e nós estamos, no mundo todo, tentando criar novos vínculos. Não dá para ir muito longe dizendo: “Eu devo vencer e você deve perder.” Temos que procurar soluções boas para todos. E estamos tendo dificuldade com isso há algum tempo. Eu acredito que melhoraremos interna e externamente nos próximos quatro ou cinco anos. Tivemos problemas terríveis nos anos 90 e depois o povo americano ficou do meu lado e tivemos cinco anos bons, mas isso não impediu os conflitos políticos. Acho que estamos tentando construir um novo mundo depois do fim da Guerra Fria.
William Waack — Tenho tempo para uma última pergunta. A família Clinton terá mais um representante na presidência?
Bill Clinton — Eu não sei. Não sei. Espero que os americanos se preocupem mais… O povo se preocupa. Espero que a imprensa americana se preocupe mais, por pelo menos mais um ano, com formas de crescermos economicamente e reduzirmos a desigualdade. Acho que nos preocupamos demais com a política. Agradeço a sua pergunta, mas sei que Hillary concorda comigo. Se ela concorrer, vou apoiá-la, e acho que ela seria uma ótima presidente, mas não sei se vai concorrer. Você pode não acreditar, mas é verdade. Eu não sei.