Linha de estudo

Transdisciplinaridade pode levar abertura ao Direito Tributário

Autor

  • Marcos de Aguiar Villas-Bôas

    é advogado conselheiro da 1ª Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e ex-assessor para assuntos tributários da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Doutor em Direito Tributário pela PUC-SP e mestre em Direito pela UFBA.

18 de dezembro de 2013, 7h00

Nas breves linhas que aqui dispomos, não é possível explicar tudo o que a transdisciplinaridade representa após esses 43 anos de desenvolvimento, se contados a partir do momento em que Jean Piaget lhe nomeou. Para uma compreensão básica, vale a pena conhecer a Carta de Transdisciplinaridade, redigida em 1994, após o 1º Congresso Mundial de Transdisciplinaridade, por Lima de Freitas, Edgar Morin e Basarab Nicolescu[1].

A Carta de Transdisciplinaridade é iniciada por meio de um preâmbulo no qual se afirma a impossibilidade de “qualquer olhar global do ser humano” tendo em vista a amplitude que tomou o saber. Chegou-se um momento do conhecimento com tantas disciplinas e tanta profundidade, que um olhar global, totalizante, é considerado impossível. Não é esse o objetivo do pensamento transdisciplinar. Ele não pretende juntar todas as disciplinas e conhecer todas de uma vez, num eito açodado, motivo pelo qual não é uma proposta que leva a totalizações impossíveis, que ela mesma combate, e à falta de rigor científico.

Deste modo, a abertura do Direito Tributário não significa estudá-lo aleatoriamente, sem método, procurando conciliá-lo com todo tipo de saber. A abertura representa uma necessidade de enfrentamento dos problemas concretos e se valendo, de modo integrado e inter-relacional, dos conhecimentos produzidos por outras disciplinas, o que passa por propostas de Política Tributária e debates sobre Direito Tributário e moral, como aquele que vem ocorrendo hoje na Europa relativamente aos limites do planejamento tributário.

De outro lado, apesar de não ter pretensões totalizantes, o artigo 1º da Carta de Transdisciplinaridade é contundentemente contrário ao pensamento reducionista, ou seja, aquele voltado para definições que não levem em consideração as demais partes e as suas complexas interrelações. Edgar Morin explica que os princípios da emergência e da imposição se contrapõem e se conciliam em um sistema dinâmico e complexo, de modo que, em alguns momentos, a soma das partes excede o todo, mas, em outros, não. É, portanto, um caminho que primeiramente se aproxima da Filosofia Analítica, para logo em seguida se distanciar, mexendo nas bases sobre as quais o Direito Tributário brasileiro vem sendo construído.

Trata-se de proposta que conforma reducionismo e holismo, que não fica nem somente com as partes, nem olha diretamente e apenas para o todo, pois busca uma visão complexa do mundo e das suas interconexões, sugerindo uma dialética infinita entre partes e todo. Importante notar que J. C. Smuts, cuja obra sobre o holismo foi publicada em 1926, não reduzia o conhecimento ao todo, pois já tinha uma proposta de interrelação entre todo e partes. Alguns pensadores reducionistas, mais tarde, foram aqueles que utilizaram indevidamente a obra de Smuts para limitar o holismo ao conhecimento pelo todo. Considerando, então, a interrelação entre todo e partes, nota-se que os sistemas dinâmicos e complexos, a exemplo do direito, não são, portanto, lineares e sequenciais, porém circulares ou até espirais.

A transdisciplinaridade pretende uma evolução no conhecimento humano atual, que foi construído por Galileu Galilei, Francis Bacon, René Descartes, Isaac Newton e outros autores da sua época. A despeito do legado de racionalidade, de busca por estudos metódicos, com rigor científico, com a utilização de conhecimentos lógico-formais etc., que nos levaram a inúmeros avanços nas mais variadas disciplinas; o caráter cartesiano, reducionista e mecanicista desse pensamento trouxe inúmeros problemas políticos, econômicos, sociais e ambientais, além de ter atravancado o avanço das disciplinas. Fritoj Capra demonstra bem isso nos seus livros, citando como exemplos a quebra desse pensamento tradicional que precisou ser feita para que a Matemática deixasse de se resumir às equações lineares e passasse a estudar as complexas (não-lineares), e a Física Clássica caminhasse para a Física Quântica.

O caráter egoístico do homem atual, unidimensional, voltado muitas vezes para uma acumulação de conhecimento, mas não de desenvolvimento de um ser interior, torna o mundo cada vez menos cooperativo e menos afetivo. Essa luta, quase sempre determinada por um fim de acumulação de capital, leva a uma desigualdade cada vez maior, que provoca um desequilíbrio insustentável. Daí ser necessário perceber que essa cumulação almejada por quase todos nos dias de hoje pode ser, logo em seguida, a sua própria desgraça. Essa concepção de mundo leva a um maior equilíbrio tributário, provocando os governos a não mais procurarem acumular capital, por meio da arrecadação, para pagamento de suas altas despesas estatais e práticas escusas. Sugere mais cooperação entre Fisco e contribuintes, complexa relação-base do Direito Tributário, pouco estudada no Brasil sob um viés pragmático.

A transdisciplinaridade traz um complexo debate sobre as regras aristotélicas da lógica, propondo um avanço no princípio da não-contradição, que continuaria a ser aceito dentro de um único nível de realidade. No entanto, o pensamento transdisciplinar reconhece a existência de diferentes níveis de realidade e de percepção, sempre interrelacionados, de modo que num nível poderá ser “A” e noutro nível poderá ser “não-A”, conclusões retiradas especialmente da obra do romeno Stephane Lupasco, já aplicada com sucesso em diferentes ciências há décadas, a exemplo da Antropolgia por meio de Gilbert Durand. Aliás, a Física Quântica, instaurada por Max Planck entre os últimos anos do século XIX e os primeiros do século XX, e a Teoria da Relatividade de Einstein, apresentada alguns anos depois, são apenas alguns exemplos que já poderiam ter influenciado mais cedo os cientistas jurídicos a construírem noções como complexidade e submissão dos conceitos aos referenciais.

A transdisciplinaridade é tolerante, aberta. Ela não se propõe a esquecer da aproximação disciplinar, sendo-lhe complementar. Não tem pretensão de conhecer a totalidade, como dito, mas apenas de se abrir para o interrelacionamento entre as disciplinas.

O seu artigo 4º pode ser considerado o núcleo da Carta de Transdisciplinaridade e, pela importância que tem para o Direito Tributário Brasileiro, merece transcrição:

“O ponto de sustentação da transdisciplinaridade reside na unificação semântica e operativa das acepções através e além das disciplinas. Ela pressupõe uma racionalidade aberta por um novo olhar, sobre a relatividade das noções de definição e objetividade. O formalismo excessivo, a rigidez das definições e o absolutismo da objetividade comportando a exclusão do sujeito levam ao empobrecimento.”

Parece-nos que esse ponto é crucial para o Direito Tributário brasileiro, já tendo sido objeto de controvérsias entre inúmeros autores: o de ele ser excessivamente formalista ou não. Ora, um Direito Tributário calcado de forma contundente na lógica e um pouco menos na semântica, desenvolvido sobre o pensamento fechado de Kelsen, nos soa como formalista. Mas a proposta deve ser esquecê-lo, demonizá-lo? De modo algum! Essa também não é a proposta genérica da transdisciplinaridade para a superação do reducionismo. Importante lembrar que a Carta da Transdisciplinaridade é uma espécie de manifesto escrito por três dos principais pensadores do mundo, após debates com muitos outros, tratando do conhecimento humano de modo global. A conclusão a que eles chegaram após o congresso e que vem sendo tomada pela Unesco para construção da educação do futuro, foi a de que, apesar de todos os seus pontos positivos, o legado cartesiano e reducionista, que se desenvolveu conjuntamente com o mecanicismo presente na Física Clássica, e, segundo entendemos, na Filosofia Analítica aplicada ao Direito Tributário, é hoje inadequado, por si só, para a solução dos problemas complexos que se mostram.

O artigo 5º reforça a ideia acima, pois prega um diálogo entre as ciências exatas, entre as ciências humanas, entre umas com as outras, assim como com a arte, a literatura, a poesia e a ciência espiritual. Isso mesmo. Estudos realizados pela Física Quântica, como os de Amit Goswami, nos levam, cada vez mais, a crer na prova científica de um plano espiritual. A transdisciplinaridade tem como foco não apenas o transhumano, mas também o transespiritual. Ela, então, busca conciliação entre física e metafísica, o que causaria arrepios em Kelsen e regozijo em Platão.

Na mesma linha, a ciência não deve ser feita desvencilhada das manifestações artísticas. Essa aproximação “desmecaniza” a ciência pautada na certeza, na eficiência metódica, no rigor obtido por meio do fechamento, e traz de volta a afetividade, tão carente hoje entre os seres humanos. Uma ciência mais artística promove maior criação e confere ternura aos seus fins.

A transdisciplinaridade é pragmática, considera o contexto, buscando visões históricas, adequadas a cada tempo. É uma proposta epistemológica, um método que busca soluções para casos concretos atuais, reconhecendo a multiplicidade e a historicidade dos pensamentos e dos métodos, o que impõe a sua atualização constante. Métodos e teorias são históricos e finalísticos, ou seja, servem em um determinado momento e para certas finalidades. Eles devem cambiar de acordo com o tempo e os fins.

O pensamento transdisciplinar almeja resultados transnacionais, uma busca pela dignidade humana em termos globais, sustentando “o reconhecimento pelo direito internacional de um pertencer duplo — a uma nação e à Terra”. O fim dessa ideia é flexibilizar as barreiras entre as nações, levando a uma maior integração do ser humano enquanto ser planetário. Assim, deixa-se de pensar nos benefícios próprios, naquilo que é melhor apenas para cada país, voltando-se para propostas que tragam resultados positivos a todos que vivem neste planeta.

Esse tipo de visão indica uma maior cooperação entre os chefes de Estado na solução dos graves problemas mundiais, como os econômicos, sociais e ambientais. No Direito Tributário, indica, por exemplo, uma maior integração das legislações, evitando bitributações e desconstituições de planejamentos tributários (lícitos), em lugar de cada país pensar apenas em aumentar a sua própria arrecadação.

Enfim, essas são apenas algumas ideias bem resumidas e preliminares a serem desenvolvidas futuramente. Elas têm o único intuito de incrementar os debates epistemológico, metodológico e pedagógico do Direito Tributário no Brasil. Talvez a sua transdisciplinarização seja uma saída para a construção de teorias mais preocupadas com os efeitos que o sistema jurídico brasileiro provoca e aqueles que deveria provocar. Talvez essa seja uma boa proposta para um Direito Tributário mais aberto e integrado às teorias complexas hoje estudadas pelo mundo. Talvez seja um meio para se alcançar o fim no qual todo estudioso deveria se pautar: trazer melhorias concretas para todos os seres humanos, sobretudo para aqueles que mais necessitam.


[1] Disponível em http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001275/127511por.pdf.
Acesso em 16 de agosto de 2013.

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