Dificuldade de absorção

A evolução do estudo do Direito Tributário no Brasil

Autor

  • Marcos de Aguiar Villas-Bôas

    é advogado conselheiro da 1ª Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e ex-assessor para assuntos tributários da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Doutor em Direito Tributário pela PUC-SP e mestre em Direito pela UFBA.

17 de dezembro de 2013, 7h12

A evolução do estudo do Direito Tributário no Brasil é algo que nos chama a atenção pela sua dificuldade de absorção das novas técnicas de conhecimento e teorias que surgem ao redor do mundo. Paulo de Barros Carvalho conta em suas aulas uma interessante história sobre o convite feito por Lourival Vilanova ao professor Luis Antônio Marcuschi para que falasse em Recife (PE) a operadores do Direito na década de 1990. O tema da sua palestra seria a interpretação, de modo que lhe foi entregue o livro “Hermenêutica e Aplicação do Direito” de Carlos Maximiliano, considerado até hoje por muitos “a bíblia” da hermenêutica jurídica no Brasil. O objetivo era dar conhecimento ao professor, que não era da área jurídica, a respeito da visão geral que a sua plateia de juristas tinha sobre o tema da palestra.

Chegado o grande dia, apesar de demonstrar o seu respeito pela obra e levantar os seus aspectos positivos, o professor Marcuschi, que havia se doutorado em Letras na Alemanha e se pós-doutorado no mesmo país, se mostrou extremamente surpreso com tamanho atraso da concepção que se tinha no meio jurídico sobre como funcionava a atividade interpretativa. O professor afirmou ser aquela concepção, vigente dentre a maior parte dos juristas brasileiros, antiquada para a sua época e já ter caído em desuso noutros campos do saber.

Desde os textos de Nietzsche, Heidegger e Gadamer, para só ficarmos com esses, a atividade interpretativa já havia passado a ser compreendida como construção de sentidos a partir de, e não extração de sentidos de, ou busca de sentidos existentes no objeto, ou mesmo busca pelo sentido verdadeiro. A partir das considerações de Marcuschi, seria possível tirar algumas conclusões que viriam a mudar, para muitos, até mesmo a definição de direito: a importância do sujeito seria vital no processo interpretativo, que fatalmente daria contribuições de acordo com a sua pré-compreensão e com os seus valores, não lhe cabendo unicamente aplicar a norma posta na lei. Toda a visão da Escola da Exegese e de outras escolas calcadas numa ideia de direito posto, totalmente positivado, seguro, pronto para aplicação, caía por terra, ainda que muitas décadas depois de publicados os escritos dos filósofos citados.

Esse relato histórico nos remete a algumas questões. A influência das escolas legalistas, a despeito de todos os benefícios trazidos para a ciência jurídica, causou também inúmeros prejuízos. A busca por um direito certo, de normas claramente redigidas, com respostas únicas, que conferisse acima de tudo uma sensação de segurança, levou os juristas a fecharem os olhos para inúmeras evoluções que aconteciam no conhecimento humano, normalmente provocadas nessa época, em se tratando de pensamento ocidental, na Europa e nos Estados Unidos.

Ainda hoje, os autores procuram conciliar a Teoria Pura de Kelsen com teorias hermenêuticas mais avançadas, o que nos parece extremamente complicado. Até na sua obra póstuma, “A ilusão da justiça”, Kelsen abominava qualquer incursão axiológica no seio da ciência jurídica. É curioso como os defensores de Kelsen citam essa obra como o exemplo de que ele dava importância aos valores, apesar de que a proposta dele, durante todo o livro, é criticar a ética de Platão e afirmar que esse nunca fez ciência, ao menos naquilo que havia ficado escrito. A Teoria Pura de Kelsen, ainda seguida por muitos autores, nunca fez concessões à análise de fatos e valores! A sua noção de norma hipotética fundamental, um fundamento lógico e ideal para o sistema jurídico, nada ajuda a explicar as relações entre o sistema jurídico, o sistema intersubjetivo (interação social) e o sistema intrassubjetivo (psíquico).

Por outro lado, o português António Rosa Damásio, um dos mais respeitados neurolinguistas do mundo, autor de “O erro de Descartes”, afirma ser impossível, por maior que seja o esforço, qualquer raciocínio destituído de valores. Sobretudo no caso do fenômeno jurídico, essencialmente teleológico, parece-nos um engano estudá-lo sem atentar para o fato de que qualquer assertiva teórica realizada já estará repleta de valorações e para o fato de que um dos principais labores do jurista é exatamente lidar com os valores prevalecentes numa sociedade e realizar propostas para que sejam efetivados.

Miguel Reale tratava dos valores ainda nas décadas de 1940 e 1950, tendo proposto, na década de 1960, uma dissociação inclusiva entre normas (Normativismo), fatos (Sociologismo) e valores (Moralismo), mas esses últimos vieram a ser estudados com mais afinco no Direito Tributário há pouco tempo, existindo ainda certo preconceito pela sensação de subjetivismo que eles causam.

Outro singelo exemplo que pode ser citado é o do estudo do direito enquanto fenômeno comunicacional. Esse tema passou a ganhar corpo em países estrangeiros por volta da década de 1940 do século passado, tendo tido, talvez, o seu estopim no ano de 1953, quando foi publicada a obra “Tópica e Jurisprudência” de Theodor Viehweg. Passaram-se 60 anos desde então, Viehweg se tornou um dos autores mais estudados pelos filósofos do direito no mundo, porém ainda é pouco utilizado pelos juristas brasileiros de um modo geral, não sendo diferente com os tributaristas.

Tercio Sampaio Ferraz Jr., que teve contato com Viehweg ao se doutorar na Alemanha, trouxe as ideias do autor alemão ainda ao final da década de 1960 para o Brasil, desenvolvendo a sua importante pragmática comunicacional jurídica, por meio da qual já chamava, naquela época, a atenção de todos para o fato de o estudo do direito ter sido fortemente calcado nos aspectos lógico e semântico, mais no primeiro do que no segundo, sendo que ficou quase esquecido o plano pragmático da linguagem, a expressão do direito como fenômeno comunicacional, como jogo de envio e recepção de mensagens normativas.

Mais especificamente no Direito Tributário, o seu estudo enquanto fenômeno comunicacional passou a ser realizado faz poucos anos e ainda de forma bastante incipiente. A teoria de Viehweg pautada nos problemas, amplamente difundida e que foi crucial para recuperar a visão retórica do direito, conferindo maior importância ao contexto, ainda é pouco utilizada para um avanço no Direito Tributário, que está pautado quase unicamente na análise da linguagem sob um ângulo lógico-semântico.

A teoria da argumentação jurídica, consequência direta da obra de Viehweg estudada amplamente pelo mundo por meio de autores como Robert Alexy e Neil MacCormick, que publicaram as suas obras-primas sobre o tema no ano de 1978, é praticamente esquecida por boa parte dos autores do Direito Tributário Brasileiro, salvo raras exceções como Humberto Ávila.

Quais seriam as causas para a doutrina tributária no nosso país caminhar tão distante da filosofia e da ciência mais atualizadas do direito ocidental? Será que essas teorias aqui mencionadas são realmente de menor relevância para o Direito Tributário Brasileiro? Muitas respostas poderiam ser atribuídas, como o fato de não haver, em outras épocas, a mesma rapidez na comunicação e, consequentemente, na difusão do conhecimento que há hoje. Mas será que, com os fenômenos da globalização e da internet, algo mudou de lá para cá?

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